Há anos, muita gente diz que eu carrego Deus comigo mas não nos encontramos. Eu não consigo vê-lo nos cheiros de rua triste e faminta, com gente se decompondo a céu aberto com seus corações nas mãos. Ele não existe. Talvez ele não exista. É um tema de profunda contradição. Justamente por isso, há indícios de Deus na prática humana. Por exemplo, nas artes. Deus não existe, mas quando Michael McDonald canta ele é uma expressão de Deus. O mesmo vale para as canções entoadas por Cartola - Deus não existe mas criou aquilo. Viva a contradição. Ausente, Deus está por todo canto: nos sopros de Pixinguinha, que se consagraram no salão nobre do Fluminense - cujo uniforme todo branco, hoje quase impossível, é também uma representação divina -; nas fotos de Sebastião Salgado, nos pianos de McCoy Tyner e Tom Jobim; na beleza dos sorrisos das atrizes Fernanda Vasconcellos e Nathalia Dill - esta em cartaz na TV atualmente, ajudando o mundo a ficar mais leve - ela me lembra Juliana em algo que não sei dizer, nem cabe agora. Alessandra? Não. Gabriella? Sim. Katia? Também.
Ao mesmo tempo em que descreio de Deus num mundo cheio de ódio, guerras e desilusão, ele se faz contradição e aparece em várias sessões da tarde, como num biscoito de polvilho nas mãos de um garotinho aprendendo a andar em Copacabana, ou de mãe e filha de mãos dadas num trem da Central a caminho do culto que lhes fará bem, distante dos pastores tubarões voadores que saqueiam a alma de pessoas boas e ingênuas.
Inexistente, Deus insiste em seus indícios. Sem vê-lo, desconfiei muitas vezes dele na praia de Copacabana pela manhãzinha, deserta, ainda segura. E nos sábados à tarde no grupo de escoteiros nos anos 1980, quando éramos pobres e ricos juntos de verdade dividindo comida, canções e abraços nos acampamentos. Também desconfiei de Deus quando passei no vestibular, porque sabia que de certa forma ele garantiria a sobrevida da minha família, o que acabou acontecendo por vários anos, até que me tornei um viajante solitário, mesmo casado.
Eu procuro e não encontro Deus nas lágrimas diárias dos familiares dos mortos pela violência, essa estupidez que nos corrói. Também não o encontrei no mundo corporativo por onde vivi quase trinta anos, cheio de mesquinharias e maledicências, mas me livrei daquele fel. Hoje sou um homem maduro, falido e infeliz à espera da morte, e tão contraditório quanto Deus, escrevo quase que diariamente, trabalho, produzo coisas que não dão dinheiro mas deixam as pessoas felizes.
Por muitos anos, entre os 1980 e 1990, eu achei que Deus pudesse estar entre os silêncios e o vento de Arraial do Cabo, ainda com sua entrada a asfaltar, cheio de belezas de areia e mar, com ruas calmas. Não, não encontrei, mas tive momentos felizes por lá e beijos gloriosos. Tive risadas com amigos queridos, hoje desaparecidos pela tonelada de obrigações do dia a dia.
Os amigos que vão embora são fruto da ausência de Deus, ou suas vindas representam a mão de Deus? Quem sabe dizer com razão absoluta, sem fanatismo?
Tudo é contradição. Ao mesmo tempo em que estou muito mais próximo do fim do que do começo, sinto que o mesmo fim parece longe porque há muito a ser feito. Acho que dá. Será? Será que vamos conseguir vencer? Deus está num canto da sala cheia de entulho, livros e discos?
Sinto dores mas tenho certa saúde. Sinto amores inúteis e tudo bem. Sinto que a minha cidade está cada vez mais opressora e excludente, mal o sol tendo raiado - e ainda bem que perderemos 12 graus nos próximos dias, porque ninguém aguenta mais derreter em vão.
Não são nem cinco e meia mas sinto uma fome dos diabos. Daqui a pouco vou escrever sobre o Fluminense - time para o qual torço contra, segundo os mais desalinhados, porque não acredito que Fernando Diniz chegue à unha de Deus. Eu torço contra o time que me fez escrever 25 livros...
Agora estou um pouco tonto e posso cochilar a qualquer momento. Espero que a Marina esteja vindo bem para o trabalho. Espero que o mundo seja menos opressor para as pessoas, que as crianças não morram em Gaza e que todos os criminosos de guerra sejam punidos. Sonho com um sanduíche em breve. Em ter uma casa, em pagar as dúvidas e ter saúde para escrever mais livros. Tenho o sonho beat de alguns livros atrás, pois. E procuro por Deus em vão porque sei que essa é a única chance de reencontrar meus pais.
Lá fora o azul do céu está mudando de tonalidade. Nada de novo debaixo do sol. Os primeiros banhistas começam a chegar à orla de Copacabana, imaginários ou não.
(Livre inspiração sobre "Obrigado, Deus", de Ricardo Soares, originalmente publicado em todoprosa.blogspot.com)
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