Friday, January 28, 2011

IRONWEED
















A esquina da rua do Senado com Mem de Sá continua com o mesmo abandono de anos à trás, ou talvez décadas. Quando havia Maracanã e, posteriormente, UERJ, todo dia era dia de passar por ali, muitas vezes num romântico 434 ou seu primo menos requintado, o 464. Mais tarde, quando meu pai era vivo e já não tinha plena motilidade, coisa do fim do século, uma cena não saiu mais de minha vista: certa moradora de rua ficava sobre seu colchão de casal, com molas, em frente às portas do finado supermercado Nova Olinda, ali vitimado por um incêndio e, noutros lugares, por alguma crise econômica ou interesse similar. Ela parecia sorridente por vários dias, embora não andasse mais e precisasse se arrastar para os movimentos corporais mais simples. Diante do sofrimento daquela mulher, em contradição ao seu sorriso, padeci muitas vezes em poucas dezenas de horas: lembrava de meu pai, era triste com sua aposentadoria compulsória, mas tinha certo alívio em saber que ele poderia contar comigo, como aconteceu pelos oitos anos a seguir. Uma dia, ela sumiu - e o colchão também. Ver a dor e a miséria do mundo me traz um doloroso sentimento de impotência; não aceitar nem compactuar com nada daquilo, mas nada poder fazer de verdade para atenuar ou melhorar a situação. Ter exata consciência do quanto somos pequenos e passageiros diante do mundo, utilizando o intervalo entre as horas de dor para beber, comemorar gols ou até mesmo sorrir. Somos pequenos e isso é um fato, mesmo que muitos insistam em não ver o óbvio. Tão contundente em ver o sofrimento dos comuns pelo mundo talvez seja, com mínima importância, rever um grande ex-amor ao vivo e atestar que o ex é realmente ex e nada mais, com total desprovimento de tudo o que um dia significou. O nada é assustador. A dor dos outros só não é assustadora para os medíocres, os individualistas, os que mergulharam na decadência do próprio umbigo sujo enquanto pensam na próxima vitrine. Alguma coisa daquela esquina me apavorou por hoje de manhã: saber que nunca mais a mendiga se recuperou, saber que meu pai é uma lembrança, tal como o velho letreiro do Nova Olinda que parece querer beijar o chão imundo. Havia também um restaurante num sobrado, a peso, com bons salgados; o dono era um velhinho simpático, hoje a porta está lacrada. Tudo parece fim. Mais à frente, muitos trabalhadores são apenas corpos cansados numa fila para comprar biscoitos Globo, como reza a tradição do verão. Não sei dizer ao certo, mas alguma coisa me traz “Ironweed”, de Babenco, à cabeça. Talvez “Blue Velvet”, de David Lynch. Talvez o fato de rever a UERJ depois de tantos anos, talvez começar de novo. A esquina continua abandonada e, agora, agravada pelo vazio. Sigo meu caminho debaixo do violento sol que nos atordoa. Faltam poucos passos para entrar em minha sala de trabalho, começar mais um dia de atendimentos, deixar as dores de lado e me vestir como um robô, alheio ao mundo que não seja estritamente profissional, científico. Ouvir The Vails lembra realmente algo de Tom Waits com Thom Yorke, também tem algo de “Ironweed” e isso me leva aos vinte anos longe daqui, aos afagos da Ana, a sessões de cinema gratuitas tendo o imortal Maracanã ao fundo. Uma esquisita e ilógica sensação de que algo bom virá, temperado pelo que já foi longe. O aniversário da Patrícia reforça as lembranças do muito ontem. Janeiro se despede em quase silêncio. Os tempos voam rasantes. Antes da esquina abandonada, noutra rua vi um senhor que tinha certo jeito de meu pai ao sentar à cadeira. Não tinham a menor semelhança física, apenas a postura era a referência. Por um detalhe, parei e quase chorei. É preciso caminhar em frente, mesmo que o nunca mais seja a maior das realidades e a vida pós-vida não me pareça nada além de uma promessa. “Ironweed” é a vida real, ou melhor como ela deveria não ser.


Paulo-Roberto Andel, 28/01/2011

Wednesday, January 26, 2011

Monday, January 24, 2011

Friday, January 14, 2011

O OUTRO LADO DO RIO
















(Clique na imagem para ampliá-la)


Foto: Ricardo Valença Ferreira, Parque da Cidade de Niterói, 1997. Câmera descartável.

Friday, January 07, 2011

PARA ALEX E SHARON














queria saber
e dizer
onde vocês moram
agora
afora a sentença
que me atormenta
à cabeça
por ora
o mundo escorre
do lado de fora
são grãos e vãos
num renascendo
enquanto a promessa
não aflora
e algum sentimento
me apavora
mas também conforta
porque o dado rola
e ele sempre oferece
uma chance
de tentar saber
onde vocês se meteram
nessa hora
e uma lágrima que
não demora
é também
alegria amiga
que não se apaga
e revigora


Paulo-Roberto Andel, 07/01/2011

Thursday, January 06, 2011

LÁ FORA
















Lá fora, o sol fosco se avizinha ao gris do céu enquanto os janeiros de longe e perto me provocam sensações diferentes, mas também associáveis: a dor, a perda, a morte, a esperança e uma inexplicável tranqüilidade. Talvez a tempestade pareça uma estrangeira frente às multidões que povoam o verão. Pode ser que seja breve ou não, intensa ou não. Lá fora, os mortos adentram gavetas, jazigos e covas, enquanto felizmente as crianças nascem e soltam suas delicadas lagrimas calouras. Lá fora, as pessoas passam apressadas dentro do ir e vir que não explica bem o sentido da vida. E também lá fora somos dinheiro, lascívia, compulsão, carência, fraqueza, tormenta, egoísmo, solidão, fama, ingenuidade, angústia e tantos outros subjetivos e adjetivos que mostram, ao mesmo tempo, a complexidade do ser humano e a impossibilidade de um único rótulo, uma classificação. As grandes cidades, o subúrbio, a periferia, as comunidades carentes, o sertão indigente, a terra perdida – tudo temperado a misturado com pequenos sentimentos de alegria e prazer efêmeros, não menos efêmeros do que aquela mesma esperança, aquele mesmo jeito de pensar nos outros por um momento e não se sentir apenas um indivíduo. Lá fora é um janeiro, não tão janeiro quanto outros mais. Eu não sei mais onde meus pais dormem, sequer se dormem ou apenas pulam e dançam incessantemente dentro da minha cabeça. Eu não sei mais onde o Buja dorme, onde o Xuru dorme; João Carlos, Cláudio e Luiz Magno também. Há uma nova ordem, um novo governo e tudo o que é novo necessariamente traz um pequeno temor, mesmo que a confiança seja total: meu tio Mendel, que também não sei mais onde dorme, de algum jeito chegou ao poder que tanto mereceu. Lá fora, os brasileiros rezam, urram, choram e se apertam dentro da ingratidão dos transportes populares. Lá fora, um carnaval se espalha em chamas de samba e, num abrir e cerrar de cortinas, as pessoas vão esquecer de suas dores e mazelas para se deliciarem com o samba retumbante no peito, feito os que meu amigo Nelson escreve e canta, escreve mas não mostra. Lá fora, um campeonato de futebol se aproxima e isso é bom: saudável cachaça, paixão inebriante que ajuda a passar horas quase confortáveis enquanto a vida mostra seu desfile non sense. Quero reler o monodrama do grande poeta até encontrar H. Quero rever John Coltrane solando como se pudesse ser Deus. O barulho do circulador de ar me conforta, enquanto o som de antigamente ecoa na sala como se fosse de agora: a Califórnia do Oingo Boingo. Mais tarde, quero rever meus velhos amigos que nunca vejo como gostaria, porque os desejos são sempre escassos: compromissos, compromissos e compromissos que, somados, mal dão chance ao binômio inspiração-expiração. Lá fora, antes de bebericar o chope do fim da tarde, hei de passar pelos congestionamentos de carros, ônibus e gentes como nunca se imaginou um dia, agora tão comuns que chegam a ser vulgares. O telefone mudo me agrada, por ora. A caixa de correio vazia me apraz. Duas mulheres bonitas conversam num corredor, mas não me atenho a detalhes. Lá fora, feito aqui, existe vida, do jeito que tem que ser, com dissabores e palitadas de alegria. Os humanos são feitos para o erro; nós, feito bobos, um dia ensaiamos o que deveria ser perfeição que, quando perfeita é, vira perversão. Mais tarde, um show de realidades será a grande ficção que a tevê nos oferece a olhos e anseios nus. Mais tarde, notícias sobre um mesmo fato serão contadas de maneiras diferentes, conforme o gosto de cada freguês. E lá fora? Mendigos farão das marquises seus solares, casais hão de namorar aos pés da areia, famílias vão chorar nos necrotérios dos hospitais; enquanto isso, estaremos incansavelmente dedicados ao amanhã, ao depois, ao daqui a pouco, sob impecável obsessão, às vezes nos esquecendo que deveríamos ser mais solidários, mais humanos e poderíamos deixar um pouco de lado essa coisa de futuro que, num certo lance, faz a vida virar um cheque pré-datado. Lá fora é aqui dentro ou o avesso, tanto faz.


Paulo-Roberto Andel, 06/01/2011