Lá fora, o sol fosco se avizinha ao gris do céu enquanto os janeiros de longe e perto me provocam sensações diferentes, mas também associáveis: a dor, a perda, a morte, a esperança e uma inexplicável tranqüilidade. Talvez a tempestade pareça uma estrangeira frente às multidões que povoam o verão. Pode ser que seja breve ou não, intensa ou não. Lá fora, os mortos adentram gavetas, jazigos e covas, enquanto felizmente as crianças nascem e soltam suas delicadas lagrimas calouras. Lá fora, as pessoas passam apressadas dentro do ir e vir que não explica bem o sentido da vida. E também lá fora somos dinheiro, lascívia, compulsão, carência, fraqueza, tormenta, egoísmo, solidão, fama, ingenuidade, angústia e tantos outros subjetivos e adjetivos que mostram, ao mesmo tempo, a complexidade do ser humano e a impossibilidade de um único rótulo, uma classificação. As grandes cidades, o subúrbio, a periferia, as comunidades carentes, o sertão indigente, a terra perdida – tudo temperado a misturado com pequenos sentimentos de alegria e prazer efêmeros, não menos efêmeros do que aquela mesma esperança, aquele mesmo jeito de pensar nos outros por um momento e não se sentir apenas um indivíduo. Lá fora é um janeiro, não tão janeiro quanto outros mais. Eu não sei mais onde meus pais dormem, sequer se dormem ou apenas pulam e dançam incessantemente dentro da minha cabeça. Eu não sei mais onde o Buja dorme, onde o Xuru dorme; João Carlos, Cláudio e Luiz Magno também. Há uma nova ordem, um novo governo e tudo o que é novo necessariamente traz um pequeno temor, mesmo que a confiança seja total: meu tio Mendel, que também não sei mais onde dorme, de algum jeito chegou ao poder que tanto mereceu. Lá fora, os brasileiros rezam, urram, choram e se apertam dentro da ingratidão dos transportes populares. Lá fora, um carnaval se espalha em chamas de samba e, num abrir e cerrar de cortinas, as pessoas vão esquecer de suas dores e mazelas para se deliciarem com o samba retumbante no peito, feito os que meu amigo Nelson escreve e canta, escreve mas não mostra. Lá fora, um campeonato de futebol se aproxima e isso é bom: saudável cachaça, paixão inebriante que ajuda a passar horas quase confortáveis enquanto a vida mostra seu desfile non sense. Quero reler o monodrama do grande poeta até encontrar H. Quero rever John Coltrane solando como se pudesse ser Deus. O barulho do circulador de ar me conforta, enquanto o som de antigamente ecoa na sala como se fosse de agora: a Califórnia do Oingo Boingo. Mais tarde, quero rever meus velhos amigos que nunca vejo como gostaria, porque os desejos são sempre escassos: compromissos, compromissos e compromissos que, somados, mal dão chance ao binômio inspiração-expiração. Lá fora, antes de bebericar o chope do fim da tarde, hei de passar pelos congestionamentos de carros, ônibus e gentes como nunca se imaginou um dia, agora tão comuns que chegam a ser vulgares. O telefone mudo me agrada, por ora. A caixa de correio vazia me apraz. Duas mulheres bonitas conversam num corredor, mas não me atenho a detalhes. Lá fora, feito aqui, existe vida, do jeito que tem que ser, com dissabores e palitadas de alegria. Os humanos são feitos para o erro; nós, feito bobos, um dia ensaiamos o que deveria ser perfeição que, quando perfeita é, vira perversão. Mais tarde, um show de realidades será a grande ficção que a tevê nos oferece a olhos e anseios nus. Mais tarde, notícias sobre um mesmo fato serão contadas de maneiras diferentes, conforme o gosto de cada freguês. E lá fora? Mendigos farão das marquises seus solares, casais hão de namorar aos pés da areia, famílias vão chorar nos necrotérios dos hospitais; enquanto isso, estaremos incansavelmente dedicados ao amanhã, ao depois, ao daqui a pouco, sob impecável obsessão, às vezes nos esquecendo que deveríamos ser mais solidários, mais humanos e poderíamos deixar um pouco de lado essa coisa de futuro que, num certo lance, faz a vida virar um cheque pré-datado. Lá fora é aqui dentro ou o avesso, tanto faz.
Paulo-Roberto Andel, 06/01/2011
3 comments:
Vc não está aqui de passagem. Definitivamente não está.
Meu amigo!
és uma mente que passeia com tanta facilidade em magníficos texto.
Esse eu tive que ler duas vezes, pois ele abrange tanta verdade que vivemos nos dias atuais mas com um jeito um jeito pensador de se expressar.
Parabéns grande!
Todo o agradecimento, queridos!
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