Há muitos anos, quando eu nem sonhava em escrever publicamente, meu passatempo era andar pelas ruas do Centro do Rio sempre que tinha alguma folga do trabalho.
Na esquina de Carioca com Uruguaiana ficava uma loja tradicional do Ponto Frio Bonzão. Durante um certo tempo eu espiava as vitrines porque precisava de uma televisão e de um aparelho para tocar CDs. Finalmente consegui a grana e comprei uma TV bem bonita para minha mãe, ela ficou bem feliz e eu queria ver todos os jogos de futebol possíveis.
Depois reparei a loja noutras vezes, muitas, e percebi quantos garotinhos ficavam ali olhando as telas das TVs ligadas. Eles tinham caixas de balas, caixas de engraxate e, às vezes, nada além da esperança. Ficavam hipnotizados com os desenhos animados que lhes serviam de única alegria do dia, talvez. Muitas e muitas vezes. O pessoal da loja era gentil e deixava as TVs nos desenhos, só para que os garotinhos pudessem se distrair. Bom, falo de 29, 28 ou 25 anos atrás.
Terça passada, eu voltava com o Diniz da Leiteria Mineira. Passamos pelo Largo da Carioca, vazio e calorento. Num instante, olhei para a esquina e lá estava o que sobrou daquele tempo: a loja fechada, as vitrines debaixo das portas de ferro, sequer uma esperança de anúncio de aluguel. Acabou. Morreu.
Daqueles garotinhos que tinham o mundo menos amargo por causa dos desenhos animados, quem chegou até aqui? Quem conseguiu superar a miséria? Quem realmente sobreviveu e está bem? São rostos que lembro sem detalhes, olhares afetuosos que o tempo levou, garotinhos magros e muitas vezes descalços ou com chinelos gastos. Sempre me senti triste por eles. Quando fiquei sem uma televisão, já podia trabalhar e comprar uma depois de alguns meses. Meus pais fizeram tudo que podiam por mim, então sobrevivi bem por conta deles, do esforço deles. Tive boa cama, comida, brinquedos, botões e o que faltou não fez falta. E queria que eles tivessem tudo também. Quantas vezes eu matei aula só para ver desenhos animados com minha mãe em casa? Muitas.
De lá para cá, vivi muitas injustiças, traições e golpes, falsidades e injustiças. Perdi minha família e minha órbita, mas me recobrei a tempo e fiz o que fazia quando eu mesmo era um garotinho: juntar pessoas, ajudar o próximo e, sempre que possível, fazer o bem - não basta ser apenas bonzinho. Desde então, tenho vivido modestamente, mas com algumas realizações pessoais que simplesmente o dinheiro não compra. Já sofro os efeitos do etarismo e, se muitas pessoas estivessem no meu lugar durante essa travessia, provavelmente não teriam aguentado. Gente que se acha muito poderosa não aguentaria 5%.
Na esquina famosa, havia apenas um silêncio frio contrastando com a manhã calorenta. Um silêncio vazio, uma ausência e a certeza de que hoje é um novo tempo, bem mais cruel do que já foi antes. Difícil imaginar que, um dia, aquela loja fecharia para sempre.
Estou aqui. Luto. Sofro. Choro. Às vezes rio. Construo algumas coisas belas mesmo com um revólver apontado contra mim 24 horas - e desde já ofereço meu profundo desprezo aos que me ofereceram cara de paisagem em meus piores dias. Mas estão rolando os dados e amanhã tudo pode mudar. Há muito a ser feito, resta saber se dará tempo. Enquanto isso, em minha bela TV, nesse exato momento bandidos estão se matando na novela por dinheiro. Quase uma metáfora da vida cotidiana.
As poucas lojas de eletrodomésticos que sobreviveram na Uruguaiana não têm TVs ligadas em desenhos animados.
As crianças continuam sofrendo no Centro. Pagam a pena pelo crime de existirem, com todo o absurdo que isso significa.
Para quem é possível, boa noite.
No comments:
Post a Comment