Entre 2002 e 2004, invariavelmente eu conversava com Seu Nelson. À época, eu tinha um sebo de CDs e LPs chamado Seboteca, que funcionava numa galeria da rua Gomes Carneiro, bem em frente ao edifício Majestic, onde um dia moraram Ivan Lessa e Lila Bôscoli - se você não sabe quem são, é melhor procurar saber.
Na galeria funcionava uma videolocadora badaladíssima. Um dos entregadores tinha o apelido de Tim Maia. Uma funcionária chamada Patrícia, gata fofinha, causava suspiros no corredor. Seu Nelson estava lá sempre em busca de filmes. Na volta, vinha à Seboteca e conversávamos sobre muitas coisas, até samba.
Certa vez, ele lamentou comigo por ter centenas de LPs em casa de um mesmo álbum. Ele não sabia como distribuir, a gravadora deu como pagamento, peguei uns poucos, minha loja era pequena. Era um assunto recorrente.
Pintura, cinema, teatro, Seu Nelson era uma potência. Às vésperas de viajar para a cerimônia do Grammy, ele apareceu na loja e brincamos: "Agora o caixa tá cheio".
- Meu filho, só deram a passagem e a estadia. Lá não tem churrasco nem feijoada.
Rimos.
O que nunca vou esquecer é de um dia em que ele entrou na loja quando eu ouvia o álbum clássico de Dave Brubeck, "Time Out". Seu Nelson vibrou, começou a contar a história da arte na capa e daí passamos a falar sobre Paul Desmond e Joe Morello. Desse dia em diante, em pelo menos uma dezena de sábados, o mestre do samba brasileiro papeava comigo sobre Charles Mingus, John Coltrane, Lee Konitz, Thelonious Monk, Lee Morgan, Chet Baker e muitos outros. Seu Nelson me deu aulas grátis de jazz, mas nunca o vi falar disso em entrevistas por motivos óbvios, e não sei dizer se os jornalistas sabiam da faceta do multi artista.
Seu Nelson passou pela pobreza, pela guerra, pelos golpes, pelas crises e todos esperávamos que, de tão presente e ativo, ele batesse os 100 anos. Foi perto. Teve uma grande vida, lutou e foi um orgulho do Brasil. Vê-lo era como ver a chegada de um príncipe desta terra. Até a luta contra o câncer ele encarou de frente, mas não deu para superar a gripezinha do calhorda. Para muitos, ele era um dos heróis do Olimpo do samba, mas para mim era mais: meu amigo de conversas de jazz, o som da liberdade que, tal como o samba, agoniza mas não morre.
@pauloandel
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