Translate

Sunday, April 06, 2014

433 - Vila Isabel x Leblon

Depois de uma manhã triste, conversei durante algum tempo no Whatsapp. Antigamente usávamos o telefone ou as conversas de bar; agora são tempos modernos. De toda forma, foi divertido, pequeno bálsamo diante das mazelas da vida.

Aconteceu que resolvi almoçar fora. Pareceu mais prático do que ir ao mercado, voltar e preparar. O restaurante da rua dos Inválidos estava vazio; quem não mergulhou de cabeça nas praias ensolaradas já estava em bares ou casas no ritmo da decisão do campeonato carioca de futebol. São tempos modernos onde as arquibancadas ficam em segundo plano. O prato bom como sempre. Pensei em voltar para casa e passar o dia recolhido, mas resolvi dar uma volta.

Apesar de não ser um homem abonado e de não saber dirigir, ainda costumo atravessar as veias abertas do Rio de Janeiro, viver a cidade em seus diferentes formatos. Para viagens mais longas, táxi e metrô geralmente resolvem. O resto consigo fazer de táxi, mesmo que os maus motoristas tenham preconceitos estúpidos em termos de aparência do passageiro ou da corrida a ser feita.

Pois bem: inicialmente pensei em ir à Fnac para ver livros e discos. Quando cheguei perto da rua do Riachuelo, cogitei pegar um táxi mas, logo que atravessei a rua, veio um ônibus 433, o eterno, um percurso de dez minutos para ir até o Rio Sul - discos na Saraiva, jazz da ATCO, lembranças de Fred pedindo um Color Surprise no Bigburger. Embarquei.

Estranho o fato de uma bonita nissei passar a roleta e ficar em pé com tantos assentos disponíveis - alguns moderninhos, senhores, gente antenada. O motorista parecia um tanto impaciente com as pessoas que embarcavam. Ainda gosto de ônibus: sempre gostei de viagens coletivas, lembram-me o Maracanã dos tempos dignos. Tudo passa rápido demais.

A pequena viagem também. Praia do Flamengo, Oswaldo Cruz, Enseada de Botafogo, o Atlântico Sul em seu esplendor namorando o Pão de Açúcar.  No primeiro ponto a nissei desceu sozinha. Veio o segundo, em frente ao velho Mourisco imaginário que os jovens desconhecem.

O ônibus parou.

Abriu-se a porta traseira.

O Brasil subiu os degraus do coletivo.

Num rompante, pela porta de trás e sobe uma garotada de oito ou dez anos de idade.

Era coisa de chorar: todos visivelmente entorpecidos, garrafa de tíner à mão.

Sentaram-se em vários lugares, inclusive cercando um casal no último banco que, apavorado, saltou imediatamente. Do meu lado, ninguém: acho que minha cara, meu cabelo e meu tamanho não são atraentes para pequenas intimidações. Um dos garotos, o menor de todos, talvez uns sete anos, entrou com a mão debaixo da camiseta: era tão pequena que o dedinho não simulava nem uma pistolinha de brinquedo.

Um dos meninos gritou, com sua voz de taquarinha rachada: "Piloto, vamos que eu tenho hora pra chegar em casa". Os passageiros apavorados. Prometi a mim mesmo que só agiria em caso de necessidade extrema - e não era o caso.

O motorista não se levantou. De longe, começou a gritar para que descessem e que não prosseguiria viagem com os garotos. Então vi uma cena triste demais: eles se entreolharam cabisbaixos, mesmo muito doidos, e lentamente começaram a descer. Duas meninas junto. Tive medo de que uma delas parecesse grávida. Olhavam-se com o ar da rejeição que sofrem desde cedo. Pensei: se fossem violentos mesmo, teriam reagido imediatamente. Encolheram-se e voltaram para a casa que o Estado e a sociedade lhes oferece: a calçada.

O ônibus atravessou no túnel e parou no ponto do Rio Sul. Saltei. Pensei na minha tristeza da manhã. Num segundo, passou-me pela cabeça que eu evitei que mais um garoto fosse humilhado nas ruas por ser pobre, socialmente destroçado e fiz de tudo para que tivesse uma vida melhor. Se não consegui o que queria, esforço não faltou.

Todas as crianças eram negras. Por mais que o preconceito pudesse indicar, não eram violentas. Não entraram no ônibus para cometer delitos.

Dentro do Rio Sul, dois menininhos brincavam com o pai na porta da Taco. Riam. Quinhentos metros atrás, dez crianças saboreavam o ballet da morte. Não sei dizer quantas sobreviverão ao massacre das ruas, a uma nova Candelária a conta-gotas que acontece diariamente, a tantas desgraças.

Mesmo alijada das condições mínimas de sobrevivência e completamente drogadas, aquela garotada não questionou uma ordem firme. O que poderiam ser com carinho, estudo, comida, roupa, brinquedos?

Não consegui ver disco algum. Logo voltei para casa. Nada de táxi: um 126, as garotas voltando da praia. 

Nós tratamos muito mal o futuro. Depois é fácil demais colocar toda a culpa em um ou dois. Ou no PT.

@pauloandel

No comments: