I
Agora o verão precisa se
despedir, mas ainda mostra sua força. Dias de calor incessante, entrecortados
pela breve chuviscada como a que vi quando voltei do almoço.
Olho para a tela do
computador, escuto o CD de Miles Davis que toca rascante na sala branca e
silenciosa.
Por um instante parece
janeiro ou fevereiro de 1986. Não me pergunte a razão.
II
Fred havia comprado um EP dos
Smiths, capa amarelada, foto afetadíssima do escritor Truman Capote na capa.
Naquele verão de muitas histórias atrás, passávamos a tarde em sua casa, ora
vendo a sessão da TV, ora jogando cartas, escutando música ou bebendo “mellon
juice”, como gostava de dizer o anfitrião. Uma sala confortável bem no alto de
um prédio completamente Copacabana, rua Figueiredo Magalhães, vista reluzente
do mar de gente que vai e vem tentando imprimir sentido à vida. Dona Magda, a
mãe de Fred, trabalhava fora, de modo que o apartamento era nosso playground
até meia-noite, imaginem! Entretanto, foram poucas as ilegalidades da época.
Quero dizer, nem tanto.
III
A discoteca já tinha Iron
Maiden, Kiss, AC/DC, mas o fato é que tínhamos lá nossa pluralidade: também se
podia ouvir Genesis, os próprios Smiths, Level 42 e... Marina, Joana, Simone
(essa parte da história fica para outra história). Uma vez Flavia trouxe
Claudia e nossa vida mudou. Quem diria: para vê-la, Fred aceitava até ir a
Botafogo, pegar o metrô e atravessar a cidade até a Tijuca, estação Saens Peña,
as duas estudavam por lá, eu ia também. Então conversávamos e brincávamos e
éramos felizes. E foi com Claudia que Fred passou a ouvir mais música pesada,
muito além do heavy metal convencional, o que lhe deu o querido apelido de Mercyful – oh, agora vejo Luiz Magno
entrando pela sala, gritando algum excelente impropério constrangedor para as
meninas, falando de algum grande baixista tal como ele mesmo era, vociferando
contra o amor e tecendo loas ao sexo pago, tudo enquanto Renatinha não surgia.
Também vejo Jorge resmungando algo consideravelmente engraçado, Marco com cara
de assustado e Ricardinho sonolento. Gustavo trazia todos os discos do mundo e
alguém fazia piada com suas histórias hiperbólicas e maravilhosas. Onde estão
Luiz Magno e Fred, deus de alguém?
IV
Era bom ver Claudia sempre
com seus olhos brilhantes, apaixonantes, algo que Glauber Rocha chamou certa
vez de “olhar de cobra verde”, com toda a doçura que talvez não esteja à vista
nesta sentença – as melhores admirações são não evidentes à primeira letra. E suas
camisetas pretas de banda, sempre esbelta, simpática, era bom vê-la
gesticulando e falando de músicas e cantores e bandas, assim como era bom ver
Fred completamente hipnotizado com todo aquele cenário. Tempos depois, ele
também comprou um contrabaixo. Eu começava meus dias de faculdade, mas fazia
questão de sempre dar uma passadinha na casa só para ver o pessoal e depois
rumar para Niterói, depois seria o Maracanã. Quando eu matava aulas, o endereço
era certo. Posso dizer que a casa de Fred foi também a minha casa entre 1978 e
1992. Um dia, ele mudou de endereço, aquela magia se rompeu fisicamente, mas o
coração jamais a esqueceu. Treze anos depois, num estalar de dedos, lá
estávamos todos juntos de novo uma mesa da Cobal do Humaitá. Fred se assustou
quando eu bebi três chopes: - Véio, pega leve. – Cara, foram apenas três
chopes. – Tem que ir devagar.
IV
Nos dois dias mais difíceis
de toda a minha vida, Fred estava comigo: quando enterrei minha mãe e meu pai,
meus tesouros. Ambos tiveram funerais em dias de sol, assim como tinha sido com
Xuru e pode ter sido com Luiz Magno, nosso querido irmão, tão jovem e tão
distante daqui. Quando minha mãe faleceu, retomamos os velhos tempos como nunca:
dois encontros semanais para conversa fiada, lanches no Rio Sul para
recobrarmos a adolescência, CDs, livros, a vida em riste. Custo a crer que esse
retorno do amigo, tão importante frente à minha ferida que jamais cicatrizará,
tenha durado pouco mais de dois anos.
V
Certa noite de quarta-feira,
entrei no Copa D’or para fazer uma visita ao Fred. Lá estava Dona Magda, sempre
serena, mais Flavia e Claudia, ainda tão jovens, na mesma rua que um dia nos
ofereceu os raios de sol da mocidade plena. Fred ria e tentava deitar, mas não
conseguia por conta de uma dor nas costas. Jamais desconfiei que algo tão grave
ia desembocar nos próximos dias. Numa hora, sem que ninguém soubesse, olhei
para todos eles e voltei no tempo, a querida sala de estar naquele apartamento
alto no coração da cidade Copacabana. Ingenuamente, pensei até que, quando ele
saísse do hospital, poderíamos fazer as mesmas coisas de antes. Algo me veio à
cabeça como se Claudia e Fred fossem Ginger Rogers e Fred Astaire sapateando e
dançando por todos os musicais possíveis e imaginários, com ou sem chuva. A injustiça
da vida me leva à outra sentença: show no
mercy.
VI
Três ou quatro semanas
depois, marcamos um chope na Cobal em tributo a Fred, falecido tão antes do
justo e razoável. Claudia chegou toda de preto, gata todo dia, uma motocicleta
possante que não sei descrever porque sou um ignorante, mas, mesmo assim,
também capaz de admirar o belo que não posso explicar. Agora Marco tem um filho
com a idade que nós tínhamos no tempo do suco de melão e do disco amarelado dos
Smiths. Gustavo disse ter dado um esporro
em Bono Vox, no que todos pusemos fé convicta. Jorge foi Jorge, Marco foi
Marco, Ricardinho foi ícone eterno. Flavia não veio, uma pena. Anna Claudia
também.
Isso faz quatro anos e, toda
vez que eu vejo algo sobre Marillion, penso em Claudia. Basta ver alguma
garota bonita de camiseta preta e sua banda de rock preferida no peito em
qualquer bairro do Brasil, eu penso em Claudia. É só ver uma motoqueira
audaciosa e sagaz cortando as ruas da cidade como uma heroína desejável e penso
em Claudia. Meus olhos lacrimejam porque Fred não está mais aqui e eu penso em
Claudia, tantas vezes quantas forem necessárias até que meu coração encontre
uma improvável paz. Ginger e Fred, Claudia e Fred, eu e ela, todos os amigos,
todos os pequenos momentos que, um dia, deram - e dão - sentido ao melhor de nossas
vidas. Eu penso em Fred.
@pauloandel
2 comments:
Não vivi nem um décimo de tempo, conheci o Fred, e perdi, mas consigo visualizar como se estivesse lá toda essa história.
Saudades do Grande Fred, até hoje não consegui voltar a voar nos simuladores em que ele me ensinou a voar, os céus ficaram vazios demais sem ele voando com a gente, pra mim até hoje não deu. mas sei que ele está lá em cima fazendo seus loopings....e provavelmente escutando um rock bom e pensando nos amigos relembrando exatamente esse tempo bom.
valeu Paulo
Assim você me fez chorar... Não exatamente de tristeza, mas de saudades...
E temos que tomar outroSSSS choppSSSS na Cobal ou em outro lugar qualquer!
Vamos agitar logo isso!!!
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