"Na hora da sede você pensa em mim/ Lá, Laiá/ Pois eu sou seu copo d'água/ Sou eu quem mata a sua sede/ E dá alívio a sua mágoa"
Luiz Américo
Voltava para casa na quarta-feira
de Cinzas, o cheiro de rua triste, dejetos por coletar, o vazio de gente, o
asfalto sem carros e motores, um calor infernal.
E sentia dores nas costas, no
joelho, esse estranho e fascinante processo que é o envelhecimento.
Não ser mais como antigamente,
passar a administrar lesões, dores permanentes, nenhuma delas maior do que as
que se sente na alma por conta da ruindade inequívoca que o ser humano médio
exerce diariamente pela atmosfera.
Subia a rua Henrique Valadares,
nenhuma banca de jornais aberta, nenhum bar disponível. Rumo ao lar, tentar
descansar, esquecer as injustiças, a escrotidão e a falsidade que são,
infelizmente, marcas do nosso tempo moderno.
Então vi de longe um morador de
rua. Um sofrido. Um mendigo. Pouco me importa que seja o “vagabundo que não
quer nada”, tão decantado pelas respeitáveis pessoas que se travestem de
transeuntes bípedes. Sempre falo dos mendigos. Eles são a medida exata do
fracasso da nossa sociedade, que respira mil religiões e empurra esse legado de
miséria na conta-corrente de Deus (ou, para quem preferir, na modesta prestação
mensal do novo helicóptero do “homem de Deus”).
De longe, o mendigo se abaixava e
levantava. Parecia aflito. Seus gestos não denotavam o uso de entorpecentes
como crack, até naturais se pensarmos a dor que essas pessoas carregam 24 horas
em seus não-teto, não-casa, não-comida, não-roupa, tudo enquanto algum imbecil
engravatado sorrirá ao saber que “existe gente assim, pois não se preparou”.
De longe, sem poder correr com
dores e o suficiente para que algum grito fizesse efeito, andei mais
rapidamente para saber o que poderia fazer para ajudá-lo. Em vão: ele andava
mais rápido do que a minha saúde permite (atentado por minha ex-namorada que me
considera um velho inútil em suas palavras estupidificadas).
Persisti por cem, duzentos
metros. Ele era bem mais rápido: a dor das ruas exige-lhe agilidade que não
tenho mais, uma pena.
Abaixou-se uma, duas, três cinco
vezes, aflito. Não procurava comida. Mais à frente, ainda sob minha vista, voou
numa lata de lixo e pegou um pequeno copo azulado.
Um copo de água. Um gole. Um
resto.
A aflição do mendigo não era “pedir
para beber cachaça” ou para “vagabundear”.
Era sede.
Estava morrendo de
sede.
No coração de uma grande capital,
berço do mundo contemporâneo, somando forças diariamente para ganhar os
corações do mundo (e seus generosos investimentos), um sem-casa podia estar
simplesmente em desespero de sede. Morrendo de sede, agoniado, desesperado.
Quando percebi o que era,
apressei ainda mais meu passo limitado, inutilmente: o desespero dele era muito
maior do que a minha condição de ajudá-lo. E passou correndo pela Cruz
Vermelha, disparou, continuou se abaixando e esgueirando em busca de um reles
copo de água.
Ninguém tem tempo para prestar
atenção nisso.
É carnaval.
A culpa é da Dilma. Do Lula. Do
Obama. É mais fácil a sociedade apontar um ou mais culpados do que encarar a
própria escrotidão no espelho.
O mendigo correu na direção do
que pode ser o túnel do Catumbi.
Minutos mais tarde, banho tomado,
remédio na coluna, lembrei novamente como sou um privilegiado nesse mundo de
merda: tenho emprego, salário, alguma saúde, alguma instrução.
Pensei em minha mãe, chorei e fui
infeliz para sempre. Poucas coisas são piores do que ser adulto e, finalmente,
compreender o esplendor da indiferença humana. Uma pessoa pode estar morrendo
de sede no centro do Rio de janeiro.
Os imbecis têm a sentença pronta:
“E daí?”
Para Ivan Lessa,
@pauloandel
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