Tardinha de 1986, perto de novembro. Era o cinza, sem chuva e sem perspectiva de celeste. Acho que tinha lanchado alguma coisa, pois estava escovando os dentes, coisa de garoto de dezoito anos sem dinheiro no banco, sem parentes importantes, mas alojado em Copacabana. Morávamos no 143 da Siqueira Campos ou o 598 da Figueiredo Magalhães, conforme o gosto do freguês. Super Shopping Center de Copacabana, construído por Collor pai, berço da minha juventude.O telefone tocou, minha amada mãe atendeu e, com preocupação, me chamou para que eu assumisse os vocais:
- Paulo-Robeeeeeerrrrrrtoooooooo, não tou entendendo, é alguém do Brizola. Veja aqui por favor.
Tadinha da minha mãe, tinha razão para se preocupar. Por conta dos nazifascistas de 1964, ela teve que correr comigo dos bandidos fardados de soldados em pleno AI-5, noutro novembro bem mais pesado: o de 1968. Nunca mais se esqueceu disso. Imagine uma garota de 23 anos fugindo da própria casa com seu filho de oito dias no colo porque, “em nome da moral, da pátria e da família”, estavam à caça de um comunista: meu tio Mendel, posteriormente expulso do Brasil, para onde jamais voltou. E depois os idiotas viriam latir que não existiu ditadura, tortura ou falta de respeito para com a cidadania. Piada. Em minha casa sempre votamos em Leonel Brizola. Contudo, minha mãe, pessoa de formação humílima, mas de grande sagacidade, bom-humor e inteligência, não tocava nestes assuntos, ainda mais se tinha alguém no telefone falando de política ou do Brizola – nome que causava calafrios nos representantes da miopia político-intelectual do país.
Peguei o telefone.
Segue aqui uma breve lembrança do que conversamos.
- Alô?
- Oi, tudo bem, com que estou falando?
- É o Paulo. Eu sou o filho da Dona Lourdes.
- Oi, Paulo. Eu falei com a tua mãe, mas acho que ela ficou com medo de falar alguma coisa e te chamou. Muito prazer. Eu sou a Neusinha.
- (Silêncio).
- Acho que você já ouviu falar de mim, por causa de uma música que tocava muito na rádio, mas enfim, bem... eu sou Neusinha Brizola. Peguei o telefone de vocês em uma lista. Deixa eu explicar: tou ligando porque, como você sabe, está chegando o momento das eleições e eu estou pedindo votos para o melhor candidato, Darcy Ribeiro. Bom, você também deve conhecer o meu pai, Leonel Brizola. Essa luta é muito importante porque precisamos manter uma resistência no Rio de Janeiro: tem esse Plano Cruzado enganando todo mundo e a gente sabe que, depois das eleições, eles vão fazer tudo o que não prometeram. Darcy é um intelectual, é uma pessoa séria, tem um passado de trabalho (...), eu queria pedir o teu voto se você for eleitor, e se puder chamar mais pessoas para ajudar na nossa campanha.
- Sim, claro. (A seguir, silêncio total de quem tinha reconhecido que a voz era dela mesma, Neusinha, e que estava embasbacado com a situação em si, não com os propósitos dela).
- Olha, Paulo, avisa pra sua mãe que isso é muito importante para todos nós. Com certeza o Rio de Janeiro precisa disso.
- Eu vou falar sim (voz de vergonha).
- Ah, e se você quiser, pode aparecer qualquer hora aqui em casa, venha falar disso com a gente.
- Tá, mas ir na sua casa? (Voz de quem tinha vergonha de ir à casa de alguém que não conhecia pessoalmente e que poderia não saber o endereço, embora eu soubesse que era na Avenida Atlântica).
- Sim, claro, é aqui na Avenida Atlântica (ela não imaginou mesmo que eu soubesse); venha que vai ser legal, muita gente boa, Brizola pra frente. Apareça! Beijo.
Quando encerrou a ligação, é claro que minha mãe espiava de rabo de olho, querendo saber o que era aquilo. Tentei explicar com calma para que ela entendesse. Minha mãe tinha sido tão fuzilada pela ditadura que não lhe parecia “normal” que pessoas telefonassem para pedir votos.
Mais tarde, fui jogar bola na praia, trave do Juventus. Contei pros amigos. Alguns se espantaram, outros riram. “Essa é maluca mesmo”, “Vai lá, cara, vai que tem uma festa maneira?” e outras pérolas típicas dos jovens daquele ano de Copa do Mundo, criados para “não se envolverem politicamente”. Mais à noite, meu pai ouviu a história e riu baixinho.
Quando lembro desse esboço de diálogo, que deve ter durado uns dez minutos se muito, acho graça.
Vejam.
Semanas depois, naquele mesmo ano, o Rio de Janeiro perdeu uma oportunidade histórica, que era a de eleger um craque como Darcy Ribeiro para governador. Imaginem se poderíamos nos dar ao luxo de uma situação dessas hoje.
Iria entrar Moreira Franco, com a opulência do governo federal.
Depois, noutro âmbito, viriam o Collor e o FHC.
Dia desses mesmo, e isso já vai para 25 anos, a filha do governador (e meu eterno candidato) me telefonava para pedir voto de maneira bem-humorada e límpida, bem diferente das redes sociais impregnadas por ódio, vistas ano passado na disputa presidencial, as “redes do Zé”. E o que dizer do medo da atriz aterrorizando o horário nobre, tentando vender uma farsa contra Lula?
Dia desses mesmo, a gente tinha chance de ter um Darcy Ribeiro como governador!
Fui eleitor de Brizola durante o resto de sua vida, tal como meus pais fizeram também até o fim. Sou eleitor de seu neto.
Talvez a Neusinha não saiba, mas os cinco minutos que conversamos no telefone quando eu mal tinha dezoito anos foram um reforço definitivo para toda a minha vida política que, naquela época, já se desenhava.
Nesta semana, ela faleceu. Neste momento, está sendo enterrada em São Borja, cidade gaúcha, ao lado de seus pais.
Pensando naquele telefonema, tudo me fez sentir um baque.
Mas certas coisas não mudam.
Porque o sobrenome Brizola está mais vivo do que nunca.
Paulo-Roberto Andel, 29/04/2011
2 comments:
Legal ! Sabia disso não!!! Muuuuito legal a historia...
Beijo
Que texto lindo! Valeu Paulo e viva Brizola, sempre!
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