É só um outono lá fora. Talvez. Muitos choram seus mortos, outros subvertem a verdade e alguns cogitam encenar o raso teatro do meu-mundo-sou-eu-mesmo-e-ponto. A temperatura, nem quente de fazer suar, nem fria de agasalhar, segue seu destino entre uma e outra nuvem. Nenhuma ameaça visual iminente da tragédia de uma semana atrás, quando minha principal preocupação era evitar o molhar da roupa, depois de sair da sessão de fisioterapia. As autoridades garantem que tudo está sob controle, mas sabemos que esta verdade não tem cor. É só um outono lá fora, parecendo ter mãos vazias, mas insinuando a alguém que dias melhores estão por nascer. É só um outono lá fora, que precede um grande feriado e, com este, a inevitável promessa de morte sacramentada nas estradas rodoviárias. Dor e calmaria convivendo na mesma sala de espera. Um carnaval sem barulho, exceto nos gritos das torcidas no Maracanã, se jogo houver lá. Os bares serão mais bares e não faltará quem precise afogar as mágoas com drogas legalizadas ou mesmo as “proibidas”. Na televisão, faremos galhofas de nós mesmos: nossas idéias mal-concebidas; nosso preconceito escancarado que, por vezes, aflora; nossa eterna dúvida em relação aos nossos semelhantes, que talvez não sejam tão semelhantes assim, mas que nos fazem insistir que a nossa semelhança é superior à deles – pode ser a diferença também. Dinheiro, ah, dinheiro: faltante nos bolsos, abundante nas vitrines; fundamental para diminuir as mazelas do mundo, até que um míope mental pergunte quem vai pagar a conta, sem saber que o que se faz para o bem comum não tem preço. É só um outono lá fora, e o cinza se confunde com o azul. É só um outono lá fora e a mansidão parece algo tão distante. Risos precisam ser mais risos. Pobres precisam ser mais gente aos olhos neoliberais. Gente precisa ter mais apreço à gente. Quem me dera deixássemos de lado a eterna busca pela juventude, pela beleza, pelo corpo perfeito que não passa de falácia para se vender produtos – é que a perfeição não existe e, em busca dela, sacrificamos nossas próprias vidas em vão. É só um outono lá fora e desejo que vivamos com menos belicismo, menos hipocrisia, menos indiferença. Uma tardinha que se avizinha e as horas a se contar para nova fisioterapia. Longe daqui, os flamboyants ditam as regras. Um cinema me fará bem quando a noite vier, ou um som de jazz ou uma canção que heróis africanos entoam com rigor. É só um outono lá fora, e leio que Manoel de Barros nos brinda novamente aos noventa e três anos, assim como Carlito Azevedo nos brindou com seu Monodrama no verão que se foi. Os poetas insistem; não são fáceis de derrotar, não são acostumados ao licor da inércia. Os poetas fazem seus versos e, com eles, ajudam o mundo a ficar menos poluído do racionalismo oco dos articulistas políticos, ainda mais quando estes articulistas se diziam homens de teatro e cinema – em suma, falsos poetas. Há um outono lá fora, e ele se faz poema de versos livres, com certo toque de melancolia pelos mortos sofridos que temos chorado nesta cidade. Outro toque também lhe cabe: o de certa elegância, cujos mares freqüentei, mas sou ignorante o suficiente para não saber explicar. Há um outono lá fora, e isso me basta.
Paulo-Roberto Andel, 13/04/2010
11 comments:
Todos os outonos se repetem, não, Andel? Mais ou menos caprichoso. E como sempre, desprovido de qualquer artificialismo. Mesmo com pequeno atraso, tivemos apenas - e mais uma vez - "as águas de março, fechando o verão". Caberia à natureza conceder alvarás de ocupação do solo e de construção? Caberia à natureza, indicar onde construírem os diques ou impermeabilizarem o solo? Que parcela de culpa cabe à natureza pelo fato de sermos - por mais avançados culturalmente, seja lá isso o que for - apenas animais necessitados essencialmente da água? Alguma vez avisamos a natureza de que assim não conseguiríamos sobreviver? Pois é, talvez até a estátua, agora, deslize até o mar. Talvez. Abraços, Pedro.
Mais uma vez, Andel.
Conseguir expressar com palavras e de forma tão bonita as agonias dos nossos corações é um dom; ou seria uma cruz? Seja como for, vale sempre como uma forma mais poética para a reflexão.
Tentei ainda agora escrever uns versos tristes, pois compartilhava da mesma angústia, mas parece que não consegui, algo dentro de mim ainda me impede de expressar sentimentos tão confusos de vergonha e omissão covarde que habitam o raso teatro do meu-mundo-sou-eu-mesmo-e-ponto.
abraços
Caros poetas Pedro e Nelson, os comentários de vocês valem pelo dobro da prosa publicada. Grande brax, oxalá!
Paulo,
Não sei se me alegro diante a beleza desse texto ou me entristeço com esse inverno aqui dentro.
Pequena. É o que sou e como me sinto.
Somos todos pequenos, querida Elika. Nada somos diante da grandeza do mundo. Você, como genial, sabe disso. O gigantismo não é nosso; ele só cabe aos pascácios.
Beijoca e obrigado.
Oi Paulinho, "é só um Outono lá fora" para os que habitam o raso teatro do meu-mundo-sou-eu-mesmo-e-ponto, como você tão brilhantemente os classificou.Mas ainda existem os solidários.
Infelizmente, outras estações "infernais " poderão vir na mesma proporção que surgem incompetentes administradores no nosso estado e na nossa cidade.
Registrei também minha tristeza no meu penúltimo post.
Um beijo.
Tanta tristeza
envolvendo nosso Rio
esse povo alegre
enfrenta novo desafio
assim renova-se
mostrando com certeza
na dor toda sua beleza
carioca povo do Brasil
vamos enfrentar essa dor
renovar é preciso viver muito mais
olho no olho pra saber de verdade
qual o político sério qual é capaz
essa avalanche levou sonhos e vidas
hoje nas batucadas dos morros dores
são batidas de corações arrasados
no próximo fevereiro organizados
a vida continua para quem ficou
somos pobres mas honrados
mancha fica em quem sabotou
com castelos de areia enganados
caímos numa sádica armadilha
planejada pela velha camarilha
homens sem dignidade sem caráter
vendedores de ilusão prefeito governador
feras enjauladas em salas de veludo
assistem a tudo pelo rádio televisão
passam em voos rasantes olhando a destruição
acima deles um Cristo de braços aberto
por certo aguarda deles um dia pedido de perdão.
Antonio Campos 13/04/10.
O mundo é um ótimo lugar
(Lawrence Ferlighetti - Tradução Nelson Ascher)
"O mundo é um ótimo lugar
pra se nascer
se não te importa que a felicidade
nem sempre tenha
muita graça
se não te importa um quê de inferno
de quando em quando
justo quando tudo vai bem
pois nem mesmo nos céus
se canta o
tempo todo
..."
Meu amigo e poeta, fica uma lembrança diferente para quebrar, para instigar algumas palavras de apoio, quem sabe colocar um rótulo de preço no bem comum, ao pobre educado do neo liberal ?
Dando às folhas do outono, o caráter de renascimento. Diferente.
Um grande abraço.
Paulo,
gosto muito do texto, ao seu estilo vivo e inteligente, e do nível dos comentários.
Abraço
Amigos Carlos, Djabal, Lau, etecétera e tal (para rimar), todo o agradecimento pela presença aqui, pois!
Paulinho,
Ótimo texto! Denso, triste, mas com um quê de esperança. Há um outono lá fora, mas outras estações viram, e em todas elas pode haver sol ou chuva. Pode haver acolhimento, recolhimento, expansão ou dispersão.
Que os "sóis" sempre acabem por brilhar dentro de ti e irradiar esse seu calor e movimento.
MUUUUUUUU
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