JB ONLINE - 23/9/2005
Novo dia, as mesmas filas. De segunda a sexta-feira, as filas de rotina. No banco, para pagar o que é devido. Na padaria, para exigir pães quentinhos. No engarrafamento, em horários de pico. Na lotérica, para nunca ganhar na loteria. Fila quilométrica para virar gari. Nos postos da Previdência, para aposentados e pensionistas. Nos quartéis, para defender a pátria, fazer polichinelos e aprender disciplina. Filas em Brasília, para se maltratar a língua e interrogar asneiras aos depoentes de CPIs. Fila para fazer check-in, pedir autógrafos e comprar eletrodomésticos em promoção nas Casas Bahia. No fim de semana, as filas recreativas.
Para o filme que a crítica elogiou e para um café antes do filme. No teatro, incluindo a fila do camarim, para elogiar a direção e o elenco com frases feitas que contenham ''visceral'' e ''perturbadora'' no meio. Para uma mesa no fim de tarde no Baixo Gávea. Para entrar no estádio e apanhar da outra torcida. E fila na delegacia para reclamar os pertences perdidos, e nos hospitais públicos pra quem não tem alternativa. E no IML, pra reconhecer um defunto encontrado por mais uma bala perdida. E as filas duplas, com a promessa de se voltar rapidinho: da farmácia, da locadora, do caixa-eletrônico, da banca de jornal, do bingo. A fila que anda, que tem que andar, na gíria das meninas e dos meninos. A fila do beijo de língua no maior número possível de estranhos pelo justo prazer de trocar salivas; e os trenzinhos safados nos bailes funk, que acabam em aids ou filhos. Os viciados fazendo fila para as fileiras de cocaína.
Os indigentes enfileirados por um prato de comida. Os pretos e pardos acuados e perfilados contra o muro, com as pernas abertas e as mãos na cabeça durante a revista. Filas religiosas, pra receber o corpo de Cristo ou consertar paralíticos. Fila para subir o Corcovado, pra andar de bondinho. E as filas de supermercado, onde o primeiro é sempre um cretino que espera pacientemente chegar sua vez pra na hora não se decidir entre dinheiro, cartão ou tíquete.
Onde o próximo sempre é uma dona-de-casa em crise que esqueceu de pegar mortadela, cotonete, rabanete, iogurte, um quilo de pá, acém ou patinho, e que leva uma hora pra voltar, com a promessa de que só vai demorar um minutinho. E atrás dela uma senhora antipática ocupada em proteger a bolsa e julgá-lo pelos tênis velhos ou pelo cabelo esquisito; ou um sujeito com cara de homicida disposto a ficar duas horas em pé para pagar por um pé de alface, um punhado de acerolas e um pedaço de gengibre; ou uma gordinha impaciente a um passo de fazer todo mundo refém, motivada pela demora e pela crise de abstinência de bacon e batata-frita.
E aqueles que conversam, que puxam assunto, que começam com um inocente comentário meteorológico e, quando se vê, já estão tentando lhe vender uma propriedade em Mauá, um bagulho do bom ou um seguro de vida. Não deixa de ser irônico. Saímos das cavernas, atravessamos guerras, descobrimos curas, inventamos o avião, a privada, a descarga e o chuveirinho, pisamos na Lua e prorrogamos o tempo de vida pra isso: Pra mofarmos nas filas.
3 comments:
Daqui a pouco mais de um mês fara 4 anos esse texto mestre Paulo. E a cada dia só fazemos ficar mais tempos nessas eternas filas. Bom final de semana mestre e tudo de bom.
Muito bom o texto!!!Saúde e paz!
Meu caro Andel, passeando pelo seu blog, deparei-me novamente com esse texto. daí parei, pensei e lembrei: ora, ora, ora e ora, o Fernando de Castro é sobrinho do Tarso de Castro, tão passo-fundenses quanto eu. É filho do Mucinho, dos tantos amigos da minha adolescência. Grandes de Castro. Abraços, Pedro.
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