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Friday, December 07, 2007

Pré-conceitos

Era tarde duma quarta, eu conversava ao telefone com um amigo que mora no Planalto, não necessariamente na sede do Governo Federal. Nada de i-meios ou emessêni, telefone da antiga, falar pra escutar e vice-versa. Contava-me ele das pressões que recebe, na condição de solteiro bon vivant, para celebrar um compromisso oficial, fato que o incomoda pelo preconceito que envolve este tipo de situação.
Eu compreendo.
O fato de ser solteiro, gostar de poesia e arte contemporânea rendeu-me e rende muitas pechas.
Tenho outro amigo que crê piamente em que eu seja virgem, por mais patético que isso possa ser, dado que ele não me viu com namorada a tiracolo, isso porque não somos companheiros de vigília noturna e nunca fomos - mas, além de amigo, ele ganha desconto porque também crê piamente em outras coisas que eu, nem sob o efeito dos mais potentes entorpecentes, colocaria fé. Por outro lado, cada um que regule a sua vida e saúde sexuais. Virgindade é direito, abstenção sexual ou mesmo luxúria plena, cada um que cuide de seu corpo.
Pensei em fazer uma listinha para entregar-lhe, mas soaria cafona e desrespeitoso com quem já amei - e com quem amo. Vida que segue.
Estamos em 2007 (ou, ao menos, deveríamos estar sob o ponto de vista cronológico), o velho modelo do eu-te-amo-para-sempre-e-vou-viver-junto-com-você tem seus desgastes - ainda que a mulher amada seja dádiva da natureza - e o resultado é que, num mundo de gente mal-casada, mal-namorada, mal-apaixonada e conformada com a mediocridade, poucos pares das novas gerações podem realmente falar da essência do eu-te-amo (Dara, argh). Amar é bom, mas não é para todo mundo.
Amor, sexo, casal homem-mulher. Tudo isso está envolvido pelo manto do preconceito. O casado que tem má vida sexual, o solteiro que deve ser gay por que não casa, o gay bonito que não fica com mulheres por mais que elas insistam em "regenerá-lo", as mulheres que não se separam para a família não apedrejar. A família que não conversa sobre sexo porque tem "respeito". Esqueci do sujeito que casa ou namora longamente para mostrar aos outros que não é um "encalhado", mesmo que a relação em si não seja das mais emocionantes. Melhor dizendo, uma porcaria.
Telefone desligado, pensei em preconceito. Outro. Outros.
Eu tinha uns nove anos de idade. No intervalo entre um outono e outro, mudei de um apartamento de 300 metros quadrados (onde poderia apresentar ótima forma na capa duma "revista" Caras) para um quarto-e-sala de 40. Tinha um garoto da terceira série, chamava-se Márcio, morava na Lacerda Coutinho. Encontrei-o na rua, chamei-o para jogar botão em minha nova minimansão. Ele apareceu. Lembro-me de como ele olhava aterrorizado para as paredes, para a cozinha, que eram humildes mas extremamente limpas e bem-cuidadas por minha amada mãe - estava acostumado ao gigantismo do antigo apartamento. Ficou lá em casa uns dez minutos, foi embora com cara de horror. Amada mãe até se assustou. Eu não tinha entendido muito bem, muito tempo depois é que saquei: preconceito contra a pobreza. Um sujeito de nove anos ser amigo do apartamento de outro é algo que desafia definições - e, talvez, quem sabe, possa explicar um pouco do que é o Brazyl e o Rio de Janeiro em que vivemos hoje. Primeira vez que me deparava com algo ruim desse jeito - até ali, minha vida era refrigerante, praia, botão, futebol e andar por Copacabana, desimportando quem era filho de barão ou porteiro.
Preconceito. O conceito prévio, normalmente embebido em ignorância.
Colégio, crianças, show de crueldade. Eu nem tinha onze anos, os galalaus de quinze, dezesseis enchiam a paciência porque minha voz era fina e eu tinha um metro e meio. Culpa minha dos caras serem reprovados três, quatro vezes. De vez em quando reencontro um pelo caminho, e incomoda ver que o dito fala das mesmas coisas, sem evolução, feito tivesse ficado em congelador tal como um Buck Rogers, só que sem o menor traço de heroísmo.
Era escoteiro, o pessoal dava gritinhos na rua, acho que por andarmos de uniforme. Estranho, pareciam as mesmas vozes daqueles caras que, passando de carro pela avenida Atlântica, xingavam os transeuntes em alta velocidade.
Faculdade, quando eu citava algum escritor ou poeta, alguém franzia a testa, com certa reprovação. Era o Instituto de Matemática e, em mais de uma vez, ouvi alguém dizer que ali era lugar de se calcular, não de ler. Deve ter sido uma das três maiores besteiras que ouvi na vida. Ou quatro. Oito. Teve uma outra criatura feminina de ofício que xingou meu nome aos quatro costões, e faz isso há dez anos, mesmo devidamente casada, apaixonada e feliz: tomou raiva de mim porque não a beijei e fiz certa força para não beijar. Era feia, um fato, mas não foi a principal razão do esforço: o problema mesmo era que fedia. As que eu devo ter beijado bem até hoje me chamam de Paulinho, me convidam para almoçar, nunca me xingaram. Grapete: quem bebe, repete. Deve fazer algum sentido.
Falaram mal de mim quando emagreci dez quilos e quando engordei trinta, com dez anos de diferença. Quando era moreno de praia, me chamavam de vagabundo; agora, branco, virei "esquisito".
No Brasil, o que não falta é segmentação. Gente disposta a tudo por quinze minutos de fama, a largar mão de qualquer senso ético em prol de bens materiais, luxúria e pequenas riquezas. Tudo raso, falho, trôpego. Você tem que ser bonito, rico, desejado, poderoso. Você tem que ter o mundo aos seus pés, não pode broxar, não pode falhar, não pode chorar, não pode deixar de mostrar aos outros o que tem de melhor. Você tem que ser o máximo, mesmo que isso signifique ser a maior lorota da semana, mês ou ano.
Falar de pobreza, um dos pontos-fortes do preconceito é simples. Basta procurar um nobre no meio do povo pelas grandes avenidas cariocas nestes tempos de pré-natal.
Solidariedade? Que tal começar por abraçar os mendigos, tão seres humanos como nós? Eles podem até feder, mas você não precisa beijá-los na boca.
Encheram meu saco por trinta anos. Agora é a minha vez. Arrá!
Eu não gosto de funk. Eu não gosto de viajar de avião. Eu não gosto de Arthur Virgílio. Eu não gosto de dirigir carros. Eu não gosto de bares cheios, de barulheira e da mais abominável expressão ideomática contemporânea: "galera", que não significa mais os velhos barcos. Dou gargalhadas quando falam que Ivete Sangalo é a maior cantora brasileira. Do Mainardi, quase não se fala porque ninguém o conhece. Eu não gosto dos jornais "Meia-Hora" e "Extra". Eu não gosto dos arroubos intelectuais da Luciana Gimenez. Eu não gosto da mídia que impõe a novela, o Flamengo, os vespertinos da televisão de domingo, o axé, o pagódi, os neo-sertanejos. Eu não me interesso pela carreira solo de Sandijúnior. Eu não gosto de suruba e de gente descontrolada pelo uso de drogas, legais ou não. Por isso, sou preconceituoso?
Tomara que sim.
E que o Márcio não tenha se tornado um boboca.
Paulo-Roberto Andel, 07/12/2007

1 comment:

Anonymous said...

Gostei de você!
Miza Vidigal