Ontem, tarde da noite, estive refestelado no sofá enquanto girava incessantemente os canais da tevê. Houve um estalo, e lembrei-me de que ocorria a votação da CPMF transmitida pela TV Senado - sempre um bom programa para se rir ou chorar, dependendo de cada caso. Deixo claro que acompanhar a trajetória dos nobres parlamentares é fundamental, por mais inacreditáveis que sejam seus argumentos para votar nas questões á, bê ou cê, "pelo povo".
Certa hora, apareceu o Presidente Sarney, hoje Senador, em seu discurso. Naquele instante, esqueci-me das bazófias senatorais - até porque a CPMF, que desagrada mil vezes mais a classe empresarial (e dela cobra) do que o "povo" propriamente dito. Assisti um pouco e mudei de canal, sem prestigiar o cinismo do Sr. Virgílio e a posterior "comemoração da vitória", como se a vida de milhões de pobres nada valesse.
Sarney ficou na cabeça. Lembrei dos tempos de presidência. Confusos, por sinal.
Alguém me contou que a eleição era de mentirinha, somente no Congresso, e todos sabíamos que Tancredo venceria - o Brasil era caótico, mas Maluf era demais. Eu voltava da praia quando alguém gritou num bar da Domingos Ferreira:
- O Tancredo venceu!
Nada perto da ampla movimentação meses antes, por conta das manifestações pelas eleições diretas.
Tumulto mesmo foi quando Tancredo passou, era noite de 21 de abril. Entrou o Brito na televisão e comunicou. O enterro parou o país, era gente de todo lado. Menos pela boa trajetória de vida e mais pelo que significava aquele momento, Tancredo entrou para a história. E Sarney, que nem pensava em ser vice-presidente poucos meses antes, ocupou a cadeira.
Veio a febre do Plano Cruzado e a esperança de se controlar a inflação. Graças ao dinheiro doado por meu querido tio, que viria a falecer um ano e meio depois, consegui até fazer uma faculdade particular com os preços das mensalidades sob "congelamento" - se a memória não falhar, eram quatrocentos e sete mil cruzeiros em fevereiro, e passaram para quatrocentos e sete reais durante o ano todo. pelo menos, até a eleição, quando o "descongelamento" de preços foi para o espaço e a inflação voltou invencível.
Tempos de Sarney eram também tempos de Moreira Franco no Rio de Janeiro, e a promessa de acabar com a violência em 180 dias. O resultado, todos sabemos.
Eu não arrumava emprego, a não ser temporariamente na gigante Mesbla, a mesma que depois foi posta a pique pelo Sr. Mansur. Consegui a duras penas, nem tão duras assim, passar para a escola pública de qualidade. Dureza mesmo, era no bolso.
Tudo isso me veio à tona com a simples vista do discurso do Senador.
Agora, marcante mesmo, nos tempos do Sarney, foi uma certa noite, que deve ter sido no segundo semestre, depois do fracasso na Copa do Zico. Estudava em Niterói; para voltar, pegava o velho 996, velho mesmo, modelos Mercedes Benz dos anos 60. O caminho rotineiro de sempre: Ponte, Rodoviária, Santo Cristo, Santa Bárbara, Laranjeiras e Botafogo, até saltar na praia em frente à Sears. Ali, novo ônibus, em geral o 434, para saltar na Siqueira Campos e rever a turma no Bar do Seu Manel - o Xuru, Coruja, Pedro, Henrique, Ana, João.
Numa das voltas, eu saltei do 996 e, prestes a fazer a baldeação, uma senhora me pediu ajuda. Era bem velhinha, redondinha, tinha um quê de Tia Anastácia, mas com certa dificuldade para falar. Carregava uma bolsa grande, parecia vir de longe, de viagem. Estava com um papel rascunhado, mal-traçado, que tinha um escrito de uma secretaria que parecia ser um órgão público, mas sem o endereço, e procurava pelo filho que estava no trabalho.
E começou a chover.
A primeira coisa que pensei foi em tomar um táxi, só que eu não tinha um tostão no bolso que não fosse a passagem de ônibus. Arrisquei, estiquei o braço e um sujeito parou. Expliquei o fato de que estava tentando ajudar a senhora, já eram cerca de onze da noite, ele topou colaborar. Descemos São Clemente, Real Grandeza e Voluntários, até que lembrei de um antigo arquivo que funcionava na Praia, entre Voluntários e São Clemente, justamente, e pedi ao motorista para que fôssemos para lá. Na porta, comparamos o rascunho e era exatamente o local procurado. Saltamos, o motorista veio conosco. Depois de minutos de espera à porta, fomos atendidos. Ela balbuciou e, felizmente, o filho dela estava lá mesmo, trabalhando como vigia.
Deu certo. Ainda cheguei a ver pela fresta do portão mãe e filho se abraçando.
Despedimo-nos, o taxista me deu carona até em casa - ficou até emocionado, ele disse que era do Norte, que não via a mãe desde muito tempo e queria voltar à terra. Deixou-me na Siqueira. No bar, não tinha ninguém, eu resolvi subir logo para casa. Minha mãe estava sozinha pois, naquele tempo, meu pai tinha tentado uma experiência de trabalho em São Paulo, devidamente fracassada a posteriori.
Cheguei e dei o tradicional abraço na bolinha mãe, para depois contar do fato. Ela ficou contente e emocionada, até porque durante cinquenta anos procurou a família perdida (naqueles tempos, eram trinta). E disse que tinha ficado orgulhosa de mim. Fiquei contente também. A metros dali, a velhinha também estava abraçada ao filho, feliz. No fundo, foi apenas uma boa ação, daquelas que a gente devia fazer a toda hora e que eu, compromissado com a causa pelo fato de ainda ser escoteiro, buscava a todo instante. Quando não buscava, a chance da boa ação surgia logo em frente.
Hoje, nesse meio de dezembro, uma vez que ninguém vai me dar o caminho para eu reencontrar minha mãe, e nem eu vou poder mais ver a velhinha abraçando o filho, não deixa de ser uma boa associação de idéias que a imagem do Senador Sarney na tela me traga algo tão bom - e não exatamente o que eram aqueles tempos para muitas pessoas.
Um gosto de abraço infinito, uma boa lembrança. Excelente.
Daquele tempo de escassez, talvez uma das únicas.
Paulo-Roberto Andel, 13/12/2007
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