(ou porque as coisas não dão certo coletivamente)
I
Chegou o verão. A estação dos sonhos cariocas, quero dizer, daqueles que têm disponibilidade para freqüentar praias e outros regalos da vida. A maioria se espreme nos coletivos e trens apinhados. Certa turma, com mais de dez salários-mínimos no bolso, também reclama: queriam as vias livres para desfilarem com seus “0kms”. Não há espaço. É coisa do mundo. Carro nunca deveria ter sido caro; agora que é mais fácil para assalariados, todos têm. Eu não. E acho ótimo.
A três dias do Natal, são ruas calorentas, as classes média e alta se engalfinhando por presentes para alcançar a bênção de Deus, a classe oprimida esperando a mesma ajuda do tímido Deus. Dizem que nesta época, nos dias finais do ano, as pessoas tendem a ficar mais sensíveis. Procuro, procuro, mas não acho.
O Natal, o Ano-Novo, o Carnaval, a Copa do Mundo. O resto é de intervalos para dor. Dor dos que sofrem, dor dos que se incomodam com a presença dos sofridos. Parece incrível, mas não é.
II
Meu amigo Marco, apressado por conta das atribuições e nós, sentados numa mesa de lanchonete. Posso dizer: Bob’s. Não sou pago para escrever. Faço porque gosto. Não riam com a simulação de certa propaganda. Antigamente nossa lanchonete oficial era o Gordon, mas o Plano Collor acabou com tudo.
Falávamos da dor do mundo e das pessoas, da falta de capacidade do próximo e dividir. Os apressadinhos querem falar de demagogia e paternalismo. Eu quero falar de baixa acuidade social. Ele me conta que, baseado em experiências pessoais, sabe de casos dos moradores de condomínios que, ao verem suas vizinhanças sendo ocupadas por moradores de rua que vêm buscar comida doada por instituições de caridade, reclamam com as mesmas: “Bota esse pessoal noutro lugar”.
Para alguns, isso parece o medo de encarar a realidade dura de que o mundo é cheio de infelicidade, por mais beleza plástica e natural que possua. Sempre vivemos em guerra, essa é a verdade. Mas, sinceramente, acho que é coisa bem pior.
Nazismo.
III
Já se foi a primeira década do século XXI e ainda me surpreendo com os seres humanos.
Impedir alguém de receber uma esmola, um prato de comida, parece coisa de Auschwitz.
Mas acontece.
Depois de tudo o que temos vivido nessa cidade, com direito a gente carbonizada e helicópteros derrubados por bazucas, há quem seja capaz de acreditar que a segregação e a remoção de pobres das favelas/ ruas seja solução.
Há quem creia que o que está aí é imutável, sempre foi assim, não tem o que mudar e será assim sempre. O que me parece o ponto de inflexão entre a humanidade do ser e seu avesso. Se você perdeu o senso de humanidade, babau! Não adianta rezar, não adianta fazer amigo-culto nem pedir para Papai do Céu (sem deboche). Não sendo capaz de valorizar o próximo na Terra, na vida real, onde o fará?
IV
Se você não é capaz de pensar e valorizar o próximo, como pode esperar de quem sempre foi criado como selvagem um comportamento de lorde?
V
Discurso hipotético:
“A culpa é do governo. É do Lula. Por que eu vou dar meu dinheiro para estes salafrários que não fazem nada? Sonego imposto mesmo. Se tiver que usar nota fria, eu uso. É a lei da vida. O dinheiro é meu! É muito bonito ter casa para todo mundo, ter emprego para todo mundo e hospital, mas quem vai pagar por isso? Eu? Na-na-ni-na-nã!”
Alguma vez você já ouviu alguém dizendo algo parecido com isso?
Se ouviu, uma coisa é certa: antes de estar à frente de um idiota, você está à frente de um brasileiro. O típico brasileiro que faz o país andar para trás.
VI
Dizem que capitalismo move o mundo. A julgar pelos números, atravanca. Livre iniciativa é uma das maiores mentiras da Terra, repetida por papagaios cheios de opinião e vazios de argumentos consistentes. O mais incrível disso tudo é que os sistemas liberais se sustentam defendidos justamente por quem mais é explorado por eles: trabalhadores assalariados, clientes de banco com água na garganta dos juros do “chequespecial”. Um contra-senso admirável.
Outra coisa que me chama atenção é como jornais, revistas e noticiários de televisão passaram a ser verdadeiras autoridades da verdade. “O Mainardi escreveu”, “O Jabor falou”. Os famosos “quem?”, notoriamente conhecidos por força da propaganda massiva (outra característica herdada do Reich) que os torna “gênios” de uma hora para outra, mesmo que a formação intelectual e acadêmica passem longe de qualquer graduação. Se algum desses sujeitos vociferar que estrume de cavalo é bom para a pele, imagino a orla do Leblon num domingo, em campanha para a “saúde” das pessoas. Inevitável imaginar o fedor da merda.
Depois de uma boa campanha ou passeata, nada melhor do que uma relaxadinha.
A probabilidade de alguém não telefonar para o Disk-Junkie é zero. Mas convém ressaltar: eles são contra a violência, ao menos entre a estátua do Zózimo e o costão do Leme. Fora disso, não tem “lugar bonito para passar na tevê”.
VII
Ano que vem tem eleição.
Ano que vem tem mil eventos.
O país tem mudado – e muito – para milhões de miseráveis que vivem fora das zonas televisivas. Mas ainda é pouco.
Enquanto não impulsionarmos uma verdadeira revolução supra-partidária, supra-religiosa, supra-econômica, nada mudará de vez para melhor.
Enquanto se ignorar o próximo, o humilde, o desassistido, o indigente, tratando-os como se fossem lixo, entulho de remoção, nosso caos não cessará.
Qualquer garoto de dez anos que domine bem a tabuada sabe que o modelo de “liberdade” vigente no Brasil não liberta ninguém além dos abonados: inescrupulosos, herdeiros, coça-sacos, parasitas e outros que, por terem o “seu dinheiro”, jogam titica de pombo na cabeça dos pobres e riem.
Onde está o espírito de Natal destas pessoas?
No shopping!
Há que se olhar para a cidade, o país e o mundo. Mas, sinceramente, eu gostaria que em 2009 a hipocrisia fosse menor.
No Morro dos Macacos, os direitos humanos são dez mil vezes mais desrespeitados do que em Cuba, Honduras, Venezuela e – pasmem – Irã. Macacos, Adeus, Alemão, Juramento, Borel, Providência. Al outro lado del Rio.
Nas favelas cariocas, mata-se mais do que na eterna guerra em Bagdad.
Não sejamos tolos de comparar a dificuldade financeira do artista plástico do Leblon com o sertanejo de Paraopeba. A dureza de um é não ir ao Antonio’s. A do outro é sobreviver à fome.
Não sejamos patéticos em achar que as dificuldades são iguais se bem sabemos que as oportunidades não são.
Ainda há tempo em se acordar. E isso não depende do governo, do Lula, do Cabral, de ninguém. Só nós mesmos, e nossa solidariedade que hoje mora no Rio Sul ou no Barrashópi.
VIII
Para enxergar melhor o Rio sombrio, o Brasil que se perdeu, o mundo com o dar de ombros ao próximo, vale uma dica.
“Monodrama”, de Carlito Azevedo.
Á boca-pequena, podemos confabular: um dos livros de poesia em língua portuguesa da década. Desde já, condenado a ser página eterna das nossas melhores letras em todos os tempos.
A quem ler, repare no poema que trata da junkie se espetando no Aterro do Flamengo.
Zona Sul não é só beleza e alegria da bossanova.
Por boas festas e um ano de menos cegueira coletiva.
Paulo-Roberto Andel, 22/12/2009
3 comments:
Caro Andel, somos assim, humanos, como escreveu o filósofo: infelizmente não temos como mudar as coisas que não nos mudam. Mas somos melhores que vários e muito melhores do que os muitos que se dizem melhores do que nós. Somos os nós. Abraços e, sem hipocrisia, boas festas e 2010 repleto de saúde e paz. Pedro
que o natal venha
mui lindo embrulhado
num rolo de papel laminado
trazendo nossos sonhos sonhados
curtidos a cada dia do ano e planos
para um novo ano de luz de paz somos
todos manos as vezes com manias diferentes
mas não fugimos as regras sim porque refregas?
vem bom noel de brinde muitos cálices de mel.
Antonio Campos.
Genial poeta, como sempre. Verdade pura... São pouquíssimos que conseguem dormir sem problemas de consciência. Pouquíssimos. E a hipocrisia continua movendo o mundo.
Beijos.
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