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Thursday, September 23, 2021

os sinos da igreja de santo antônio

Perto do fim do expediente, eu olhava o gris no horizonte do Porto Maravilha, o vazio decadente da Praça Tiradentes, a agonia do Rio quando chegou uma mensagem no WhatsApp, dizendo que morreu o pai do meu amigo.

Nós, minúsculas bolas de água e carne que andam por esse mundo mas pensam no próximo, sentimos o soco no queixo. Em segundos, voltei a 2008 e vi meu pai morto, sereno, dois minutos depois de ter pago um empréstimo que fiz. Ou minha mãe morta, linda, durante o sono, depois de uma vida de muito sofrimento mas risos também. 

Então me lembro de que serei órfão até o fim, e que não tive filhos por decisão pessoal, depois repartida com minha companheira. E daí que tenho mais de cinquenta anos? Eu ainda choro quase todos os dias, porque meus pais foram embora muito mais cedo do que o razoável. Não viram nada do que escrevi, o que provavelmente lhes deixaria muito orgulhosos. Mas tudo isso é pequeno diante da dor do meu amigo e que também é minha, porque sou amigo e porque conheço essa facada na alma. 

Fecho a loja, ando pela calçada vazia com exceção das pessoas em situação de rua, sofrendo até não aguentar mais. São poucos carros, muito silêncio e algum frio, até chegar na Rua do Lavradio e tudo estar fechado - a economia está se reabilitando, segundo o escroque que nos envergonha na ONU. 

[eu sou uma bola com bastante água, bastante carne e não significo absolutamente nada diante do mundo. 

Olho para o alto, vejo grandes edifícios e tenho certeza da minha pequenez no mundo - somos formiguinhas deslumbradas em meio a uma grande fábrica de açúcar. 

No Armazém Senado, alguns homens aliviam suas almas com cachaça e sambas da antiga. Na outra esquina, dobram os sinos da Igreja de Santo Antônio. 

Passo pelo prédio da Polícia e não vejo a mendiga que vive ali há pelo menos vinte anos, falando sozinha, às vezes agressivamente. 

[vejo tudo ao redor para ocupar a mente e disfarçar minha insignificância diante do mundo. só os insignificantes são solidários de verdade, mesmo que não tenham nada além do pensamento para oferecer.

O prédio do DOPS é aterrorizante, mas hoje o vejo com frieza. Ali prenderam meu pai e ensurdeceram meu tio. Ali sofreram muitas pessoas. Torturados e algozes, quase todos estão mortos. Tudo é inútil, exceto os bons sentimentos, a ajuda, a honestidade, a alegria, o amor e as conversas fraternas. 

[nada tira da minha cabeça que o pai do meu amigo morreu, e com isso eu tenho morrido um pouco também. Todo dia eu morro um pouco, seja pela saudade, pela solidão, pelo Brasil, pelo Fluminense - que tem me matado bastante - pelo Rio de silêncios e sofrimento em suas calçadas escuras e desertas. 

Na última quadra antes de chegar em casa, paro no quiosque, compro dois sanduíches, sinto-me privilegiado porque cem milhões de brasileiros passam fome, mas nada tira da cabeça que, se o pai do meu amigo morreu, eu também morri um pouco porque esse é o dever dos amigos nesta terra injusta, cheia de gente indiferente que não quer saber da vida e da morte de ninguém. Mas nós somos diferentes, não por nada especial, mas porque conseguimos preservar um bem raro, chamado humanidade.

Estúpido é aquele que ridiculariza quem sofre a dor do outro. Nos últimos anos, a cada má notícia nova, meus pais morreram de novo e de novo, mas destas dores quero fazer abraços e encontros. O meu amigo sente o que eu já senti e sinto. É uma noite triste, mas tudo isso era abraçar o meu amigo com palavras para que ele soubesse da minha solidariedade. Hoje somos minúsculos mas um dia seremos a maioria, mesmo quando não estivermos mais aqui. De toda forma, há muito a ser feito, com três cores ou mais. 

Para Edgard, 

@pauloandel

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