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Saturday, August 22, 2020

chuva, fome e sofrimento

Sábado, oito da manhã, um frio demasiado para o Rio de Janeiro, que frequentemente vê seus habitantes com casacos a quaisquer vinte graus que surjam pelo caminho. 

Depois de um dia inteiro de chuva.

Para as finalidades artísticas, o Rio em gris é bonito, diferente. Historicamente a cidade é vendida mundo afora em azul turquesa, sol de rachar e biquínis minúsculos, mas muitos sabem que não se resume - e nem pode se resumir - a isso. 

Já gostei mais do gris, quando eu era suficientemente imaturo para entender a dor do mundo, embora já sofresse com a dor alheia. Acampei muitas vezes perto de zero graus, corri loucamente por Copacabana em manhãs e tardes de chuva. Ainda menino estúpido, cansei de entrar no mar com chuva e raios - não era a minha hora de morrer. 

Para uma parte das pessoas, o frio tem a ver com chocolate quente, fondue, vinho, drinks, ainda que a cidade vazia e triste persista. Ok, é direito de cada um. 

Mas quem já parou para pensar que, numa tarde-noite como a de ontem, mais a madrugada e esta manhãzinha, teve muita gente que sofreu pra cacete no Rio? 

Quem parou? 

Um frio de cortar a alma, calçadas molhadas, ratos fugindo dos bueiros, ruas desertas, quem poderia ter paz diante disso? E mesmo quem não vive a desgraça das calçadas pode viver sua tragédia em barracos de papelão e madeirite, também com chuva e ratos para todo lado. Nem falei dos terríveis e ameaçadores deslizamentos numa cidade recheada de morros. 

Eu não tenho paz. É minha maior indignação. E por isso dormi mal. E por isso acordei mal. 

É inaceitável que, com tantos recursos, haja cada vez mais gente morando nas ruas, sofrendo, entrando em estágio de decomposição social a céu aberto. 

Tudo culpa de uma brutal desigualdade e distribuição distorcida de renda, que é problema não apenas dos desgovernos federal e estadual, mas municipal também. 

O descaso, a indiferença, o desprezo.

Há quem acredite que tamanha desgraça é produto de questões divinais, ou da vagabundagem que gosta de ficar na rua à espera da morte (um raciocínio que chega a ser engraçado de tão tosco). "Eles gostam de ficar ali, não querem trabalhar". Tosco. Sofrer ao relento exige uma resistência psíquica e física superior à necessária em boa parte dos empregos. 

Dia desses, a crise, falsos amigos e um ladrão quase me levaram a não ter uma casa. Confesso que tive vontade de socar algumas das pessoas que emitiram opiniões a respeito, mas não guardo mágoas. Apenas não esqueço; afinal, não tenho culpa de ainda ter uma ótima memória. Mas eu tive sorte, porque muitas portas foram batidas na minha cara, mas outras se abriram inesperadamente, de modo que se a situação está longe de ser resolvida, já começou a ser contornada.

Depois de uma faculdade concluída, três pela metade, dois mestrados abandonados, trinta livros escritos e quase vinte e cinco anos de carteira assinada, eu quase fui parar na rua. Mas dei sorte. Apesar das decepções, tive alguns amigos de verdade. Se com tal arcabouço eu passei por este risco, imagine quem não o teve? 

No passado, apesar de muito esforço, seria um completo ridículo eu dizer que consegui pequenas vitórias apenas por meus esforços. Ninguém consegue isso, por melhor que seja. Não existe uma pessoa vitoriosa no mundo sem o suporte de terceiros. Uma única que seja. Se escrevi livros, é porque lá atrás meus pais me sustentaram bem, com enorme sacrifício pessoal. Se me formei, idem. Onde eu morava antes de pagar aluguel? Na casa paga por eles, ora. Se consegui montar um microcomércio de novo foi porque tive receitas de um trabalho que, lá atrás, foi subsidiado por eles, financiando casa, comida e estudo. E sinceramente, não conheço uma única pessoa que tenha obtido pequenos e grandes sucessos sem o apoio familiar, ao menos pessoalmente, seja de famílias naturais ou postiças. 

O mundo não é feito só de dualidades. Sem sombra de dúvidas, há casos em que a situação de rua poderia ter sido evitada pela própria vítima, mas são tão poucos em função da realidade da opressão econômica e social que podem ser considerados irrelevantes. A realidade é opressão, humilhação, exclusão e descaso. 

São vinte para as nove. As pessoas sofrem demais nas ruas do Rio de Janeiro. São milhares e milhares e milhares. Só no centro da cidade são centenas e centenas, na Cruz Vermelha, na Lapa, nas imediações do Forum, na Candelária - tão conhecida como palco de tragédia que não se encerra -, na Almirante Barroso, no Largo da Carioca.

Lembro do frio da juventude e a fresta da janela do quarto me dá o gris de hoje. Lembro de quando eu era um corredor, um jogador da praia, um dos garotos que via a praia mais bonita do mundo pintada de prata. Há uma beleza efêmera que sempre guardarei comigo, mas o fato é que nós, cariocas, brasileiros, deveríamos parar de fingir que este problema gravíssimo não está por toda parte e, dentro do possível, agir. 

Moradia digna é direito universal e não um favor. É inaceitável termos milhares de cariocas à espera da morte nas ruas ou parecendo em moradias degradantes. Ter isso em mente não é princípio de assistencialismo ou caridade, mas algo que anda cada vez mais escasso nas cabecinhas do Brasil: senso de justiça. 

Longe de querer estragar o fondue, o vinho e o queijo dos amigos que possam ler estas linhas, trata-se apenas de um convite à reflexão e, se possível, à ação. Mesmo combalido financeiramente, comecei a ajudar um amigo ontem para impedir que se tornasse mais um 'número' em situação de rua. Não somos números. Somos pessoas, temos sentimentos e sofremos. E muitas vezes nossas fortunas, confortos e excelentes salários vieram muito mais de outros fatores do que até da nossa própria competência. 

Há muita gente sofrendo. Não se iluda com falácias meritocráticas. Essa tragédia pode chegar a qualquer família, ainda que haja um desenho óbvio e predominante pelos componentes da desigualdade social, do racismo, da falta de empatia, do desprezo ao próximo, de características que nada têm a ver com a formação natural do povo do Rio de Janeiro. 

Quase nove horas da manhã. Um silêncio enorme nas ruas sem veículos e transeuntes. Calçadas molhadas e mãos estendidas à própria sorte. Ou corpos desmaiados de tanto cansaço e sofrimento. Não basta uma moedinha para aliviar a consciência e tentar uma moral com Deus. É preciso mais, muito mais. 

@pauloandel