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Thursday, September 30, 2021

É preciso acabar com o America!

Recebi o texto abaixo, de autor desconhecido, via WhatsApp. 

Tomei a liberdade de reproduzi-lo aqui, pois estou escrevendo um livro sobre o America com o jornalista André Luiz Pereira Nunes, e o escrito me tocou profundamente, a ponto de pensar em respondê-lo, sendo que compreendo a dor profunda nele expressa. 

O America não pode morrer. 

Não pode. 

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Por Geraldaves de Almeida

É preciso acabar com o America!

É preciso acabar com o America. O time para o qual torci não mais existe. Trata-se de um arremedo, uma cópia mal feita. A camisa, outrora rubra, se misturou ao anêmico sangue dos botinudos que ora a envergam. Alex, Edu, Bráulio e Luisinho ficaram definitivamente na memória dos tolos saudosistas.

É preciso acabar com o America. Urge que o façam logo. Meu time agoniza lentamente em meio a um limbo em forma de espiral. É um cenário perfeito para um portador de labirintite.

O agora ex-America necessita de uma morte digna, pois seus dirigentes o tem infestado a cada ano com refugos e velharias. No início da temporada o elenco contava com 6 goleiros, vejam só, 6 goleiros! O principal, contundido, não atuou em nenhum prélio destes certames de segundo escalão que o ex-America insiste em atuar sem obter qualquer êxito. 

É preciso que algum corajoso aperte logo este botão. O antigo America necessita ser eutanasiado, pois merece uma morte indolor em respeito às suas glórias, restritas a um passado cada vez mais longínquo.

Os jovens de hoje não conhecem o America. Nunca ouviram falar. É o Mineiro, o de Natal? O clube estranhamente desapareceu do noticiário. Seu nome não aparece sequer nas páginas policiais, sinal claro de que o doente terminal necessita urgentemente do direito à inexistência oficial. 

O ex-America possuía a sede mais moderna e charmosa da América Latina. Mas o espaço veio ao chão. Dizem que no lugar erguerão um shopping center e no playground ficará acomodado o ex-America. Que triste fim! Será que ao menos a diretoria passará a emitir boletos?

A culpa de toda essa decadência seria da CBF e do famigerado Clube dos Treze, alegam alguns insistentes torcedores. Mas isso não é verdade. A culpa é do futebol moderno que preza pela elitização e a existência dos clubes de massa em detrimento da pluralidade saudável e necessária. Money, my friend!

Não há mais espaço para meu ex-time. Em lugar de vê-lo sujo, mal ajambrado e descolorido, prefiro torcer por um fóssil.

Por favor, desliguem os aparelhos e deixem o meu America morrer em paz!

Wednesday, September 29, 2021

mumm-ra

Em algum dia de setembro de 1988, eu estava na UERJ assistindo uma bela aula de Cálculo com Coscarelli, grande professor, quando Mumm-Ra me chamou para lanchar na rua ao término. Manhã bem quente. 

Seu nome era Renato, rapaz alto, bem mais alto do que eu, lembrava alguma coisa do Negrete da Legião. Gente boa. Calouro. Acho que não estava confortável no curso, estava sempre falando de fazer prova para a AMAN. 

As garotas, lindas, ficaram no hall. Descemos e fomos para a São Francisco Xavier. Na verdade, nem havia um motivo especial para isso. Grana não foi: as cantinas da UERJ eram baratíssimas. Sei lá, vai ver que queríamos ir à rua.

Paramos numa padaria, talvez perto da Santa Luiza e que não existe mais. Pedimos café e pão de queijo. E falamos de futebol e mais futebol. E que Luciene era linda. E do calor, que seria muito pior em dezembro, o que eu viria a testemunhar pelos anos seguintes. Mais futebol, era nossa vida. 

Ainda lembro de minha alegria juvenil ao atravessar de novo a São Francisco Xavier rumo ao portão principal. Ao contrário do que o Renato parecia sentir, eu tinha uma mistura enorme de orgulho com alegria em estar ali. Foi um dos poucos sonhos que concretizei de ponta a ponta, pouco importando os muitos que ficaram pelo caminho. O Ministro da Educação é um completo idiota quando diz que a universidade deve ser para poucos - na verdade tinha era que ser para todos - como eu aprendi naqueles dias!

Pegamos o elevador e voltamos para o sexto andar. Havia um intervalo grande para a outra aula. Parei no hall. O Renato seguiu para a sala, bem lá no fundo, perto da varandinha de onde se via o Maracanã e que às vezes servia para namoros inesquecíveis. Nem tudo era fácil: suicídios também. 

Aquele foi meu único café com pão de queijo fora do prédio da UERJ. Mumm-Ra era um apelido de trote, porque ele foi todo enfaixado com papel higiênico. Trinta e três anos depois, ele faz parte daqueles colegas efêmeros que o caminho nos separou. Tomara que esteja bem e não seja negacionista. Tomara que esteja razoavelmente feliz. 

Tinha uma turma da pesada lá que sumiu. Alexandre Gomes, Joaquim, Alexandre Baixinho, o Mário, gente boa e divertida que, de uma hora para outra, a gente percebe que simplesmente sumiu sem deixar rastro. Não tinha rede social, nem Whatsapp. Os encontros e as despedidas eram definitivos. 


@pauloandel

Thursday, September 23, 2021

os sinos da igreja de santo antônio

Perto do fim do expediente, eu olhava o gris no horizonte do Porto Maravilha, o vazio decadente da Praça Tiradentes, a agonia do Rio quando chegou uma mensagem no WhatsApp, dizendo que morreu o pai do meu amigo.

Nós, minúsculas bolas de água e carne que andam por esse mundo mas pensam no próximo, sentimos o soco no queixo. Em segundos, voltei a 2008 e vi meu pai morto, sereno, dois minutos depois de ter pago um empréstimo que fiz. Ou minha mãe morta, linda, durante o sono, depois de uma vida de muito sofrimento mas risos também. 

Então me lembro de que serei órfão até o fim, e que não tive filhos por decisão pessoal, depois repartida com minha companheira. E daí que tenho mais de cinquenta anos? Eu ainda choro quase todos os dias, porque meus pais foram embora muito mais cedo do que o razoável. Não viram nada do que escrevi, o que provavelmente lhes deixaria muito orgulhosos. Mas tudo isso é pequeno diante da dor do meu amigo e que também é minha, porque sou amigo e porque conheço essa facada na alma. 

Fecho a loja, ando pela calçada vazia com exceção das pessoas em situação de rua, sofrendo até não aguentar mais. São poucos carros, muito silêncio e algum frio, até chegar na Rua do Lavradio e tudo estar fechado - a economia está se reabilitando, segundo o escroque que nos envergonha na ONU. 

[eu sou uma bola com bastante água, bastante carne e não significo absolutamente nada diante do mundo. 

Olho para o alto, vejo grandes edifícios e tenho certeza da minha pequenez no mundo - somos formiguinhas deslumbradas em meio a uma grande fábrica de açúcar. 

No Armazém Senado, alguns homens aliviam suas almas com cachaça e sambas da antiga. Na outra esquina, dobram os sinos da Igreja de Santo Antônio. 

Passo pelo prédio da Polícia e não vejo a mendiga que vive ali há pelo menos vinte anos, falando sozinha, às vezes agressivamente. 

[vejo tudo ao redor para ocupar a mente e disfarçar minha insignificância diante do mundo. só os insignificantes são solidários de verdade, mesmo que não tenham nada além do pensamento para oferecer.

O prédio do DOPS é aterrorizante, mas hoje o vejo com frieza. Ali prenderam meu pai e ensurdeceram meu tio. Ali sofreram muitas pessoas. Torturados e algozes, quase todos estão mortos. Tudo é inútil, exceto os bons sentimentos, a ajuda, a honestidade, a alegria, o amor e as conversas fraternas. 

[nada tira da minha cabeça que o pai do meu amigo morreu, e com isso eu tenho morrido um pouco também. Todo dia eu morro um pouco, seja pela saudade, pela solidão, pelo Brasil, pelo Fluminense - que tem me matado bastante - pelo Rio de silêncios e sofrimento em suas calçadas escuras e desertas. 

Na última quadra antes de chegar em casa, paro no quiosque, compro dois sanduíches, sinto-me privilegiado porque cem milhões de brasileiros passam fome, mas nada tira da cabeça que, se o pai do meu amigo morreu, eu também morri um pouco porque esse é o dever dos amigos nesta terra injusta, cheia de gente indiferente que não quer saber da vida e da morte de ninguém. Mas nós somos diferentes, não por nada especial, mas porque conseguimos preservar um bem raro, chamado humanidade.

Estúpido é aquele que ridiculariza quem sofre a dor do outro. Nos últimos anos, a cada má notícia nova, meus pais morreram de novo e de novo, mas destas dores quero fazer abraços e encontros. O meu amigo sente o que eu já senti e sinto. É uma noite triste, mas tudo isso era abraçar o meu amigo com palavras para que ele soubesse da minha solidariedade. Hoje somos minúsculos mas um dia seremos a maioria, mesmo quando não estivermos mais aqui. De toda forma, há muito a ser feito, com três cores ou mais. 

Para Edgard, 

@pauloandel

Monday, September 06, 2021

trinta anos depois

Onde eu estava há trinta anos? Em Copacabana e na UERJ. Tinha o Maracanã também. Tudo isso era importante para mim, mas não significa exatamente saudade, exceto ter meus pais e o Fluminense. Depois de alguns tropeços, lutava para estabilizar as matérias (o que nem sempre era fácil pelas condições precárias em que vivia) e sonhava com um estágio que pagasse pelo menos a passagem e a conta de luz. Em casa nada era fácil, nada, nem mesmo quando eu só ia para dormir. Na UERJ era bom, tinha os colegas e toda aquela efervescência da vida universitária. Estágio era algo mais difícil do que algo que preste vindo do Bozo: esmagados pela era Collor, sem grandes perspectivas. Pelo menos consegui comprar uma calculadora científica. 

O Fluminense não ganhava nada há seis anos, mas como era bom ir ao Maracanã e às Laranjeiras. Ao contrário do que muitos pensam, embora estivesse há tempos sem um título, o Fluminense os disputava e era um protagonista, não um figurante. Tínhamos um bandeirão, a torcida era linda e não havia os pelassacos da internet. Quarta e domingo estávamos lá, mesmo com o dinheirinho contado. Eu descia com meu caderno preso numa prancheta de acrílico laranja, atravessava a rua, comprava um suculento ingresso de geral e pronto. Meu time, meu amor. 

Estudar de manhã e de noite não era fácil. Procurar emprego, idem. Quando dava uma folga, jogar botão ou uma dupla de praia. Eu tinha deixado os escoteiros e me afastei de vários colegas. Bom, compensava no fim de semana com ótimos shows gratuitos no Parque Garota de Ipanema. Passou uma turma da pesada por lá. 

Se não voltasse para casa de tarde, a saída era almoçar no restaurante de comida vegetariana na Sousa Franco (delicioso e barato, mas você ficava com fone de novo uma hora depois) e dar uma de Ivan Lessa: seguir cachorros pelas ruas de Vila Isabel. Espiar as ruas, as casas restantes, passar no que sobrou do campo do America. Gatas indo e vindo do prédio da Medicina. Não era fácil, mas tínhamos dois componentes essenciais a nosso favor: o futuro e a esperança. De manhã, matando alguma aula ou com falta mesmo, não podíamos reclamar: nossas amigas eram lindas, sempre havia um colo amigo num par de coxas estonteantes e, de certa forma, a retribuição era com as risadas que provocávamos no meio da conversa.

São cinco da manhã, eu só dormi de meia noite às duas, eu preciso falar com a Marina, eu preciso transcrever vinte minutos de um vídeo, eu preciso pagar contas e vender discos, vender livros, vender. Hoje eu sei quem eu era há trinta anos, mas não sei se saberei daqui a trinta anos sobre o agora. Não é saudade, mas reconhecer que é justo revisitar nossos momentos mais divertidos, enquanto lá fora vozes ameaçadoras cortam o silêncio da alvorada que se avizinha. 

Eu devia estar contente porque estou trabalhando mais, porque lentamente os resultados estão vindo, porque há luz no fim da estação de trem. Mas não estou. Provavelmente é porque vejo gente sofrendo demais, demais. Na verdade são cinco e vinte. 

@pauloandel.