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Saturday, April 27, 2024

Andando na Lua

[parecia que a gente pisava na Lua, só que ela era feita de areia

A gente era de Copacabana. Pobre. No máximo o dinheiro do lanche e do ônibus. Então descobrimos o Leblon. Só para olhar as coisas, as gentes nos bares badalados, as garotas. Tinha um Gordon lá também, Cazuza vivia ali. Noutra vez ele estava em pé no balcão do boteco, acho que na Ataulfo de Paiva mesmo. Ele cantava alto, talvez um blues, todo mundo ria. Era o Rio. 

Muita gente ia pro Leblon. Outras galeras iam pro Baixo Gávea, que tinha uma grande concentração da turma ligada ao heavy metal e o rock também. No fim da noite, os ônibus circulares ficavam lotados. Claro, todo mundo descia em Copacabana, o astro-rei. Gente das coberturas, dos apês da Atlântica e dos quitinetes. Não havia distinção. 

Inventamos um jeito de prorrogar a noite. Simplesmente dava duas ou três da manhã, todo mundo tinha arrumado sua vida, a gente ia pra Delfim Moreira e voltava a pé até a Figueiredo Magalhães. Pela praia, na areia, na beira-mar.

Parecia que a gente pisava na Lua, macia, feira de areia fofa e clarinha. Vínhamos devagar, para saborear o passeio em pleno Atlântico Sul. De ônibus era mais rápido, só que a gente no fundo queria ficar mais tempo juntos, naquela beleza de visual.

Silêncio, silêncio, nossos risos. Às vezes éramos cinco, oito, doze, somente a gente e mais ninguém. O barulho misterioso do mar sereno do Leblon e Ipanema. Gente mesmo só tinha no Arpoador, mas não íamos até lá. Era virar geralmente na Francisco Otaviano e navegar Copacabana. 

Ninguém namorava entre nós. Garotos e garotas de quinze e dezesseis anos, na flor da juventude. Flertes havia, namoro não. Tinham inventado o negócio de ficar, que era um sucesso da época, então namorar estava careta por um tempo. Ninguém assumido também, só muito mais tarde. 

Engraçado que em Copacabana a gente não ia muito pela areia. É que o calçadão e a calçada eram verdadeiros acontecimentos, laboratórios humanos, gente doida de todas as regiões, idades e sexualidades. Não precisava de muita grana mesmo, tínhamos um programa de auditório a céu aberto, fervendo da Alaska até pelo menos a Santa Clara. Três da manhã, a turma do Juventus ainda fazia resenha na esquina da Domingos Ferreira. Deixávamos as garotas uma a uma em casa, nos despedíamos na porta do Shopping dos Antiquários. 

Geralmente era a pré-manhãzinha de domingo. Os Globinhos já estavam na luta, preparando a tonelada de jornais para serem entregues a domicílio. Meu amigo Silvio, gente boa, trabalhou lá até ingressar no TI. Ele era muito legal, nunca mais nos vimos. 

Sem tiro nem facada, a gente era pobre mas andava feliz pela areia da Lua de Ipanema. Foram dezenas e dezenas de vezes, até que, tal como diria o poeta Renato Russo, viramos pássaro novo longe do ninho - daí, voamos. 

@p.r.andel

Friday, April 26, 2024

Casilhas

Está lá há décadas, aos pés do Shopping dos Antiquários. Era o bar reserva da minha turma. Nosso aquário natal era o Sniff's, alguns metros depois, já dentro da galeria.

Uma vez ou outra o pessoal dos escoteiros passava lá. Eu, calouro de faculdade, voltava de Niterói e saltava na porta depois da baldeação, 996 até a Praia de Botafogo - Sears! - e 434 ou 435, o que viesse primeiro, até a Siqueira Campos.

Macedo, que foi nosso chefe no grupo e uma pessoa, digamos, excêntrica, gostava do boteco. Em certa ocasião, sabe-se lá por que, desandou a falar sobre a importância da higiene íntima masculina entre bebuns discutindo o jogo do Flamengo. Mais: declarou quantas vezes fazia a assepsia peniana diária e começou a questionar os interlocutores sobre suas estatísticas de combate ao esmegma. Entre risos, alguém foi curto e grosso: "Quer lavar pra mim?". Ele ficou put0 por alguns instantes, mas acabou rindo também.

Nosso grande ano pelo Casilhas foi em 1986 por dois motivos: a ascensão midiática do pagode com Zeca Pagodinho, Almir Guineto, Jovelina Pérola Negra e grande elenco, mais a Copa do México. Dois motivos para a realização de inúmeros churrascos, quase todos resolvidos na hora. Vai ali nos Supermercados Leão, compra carvão e bebida, alguém busque a churrasqueira, a carne a gente vê depois. Linguiça, asinha de frango, uma carninha e risos, muitos risos. Charlie, o também excêntrico gringo que morava nos arredores - e que desconfiávamos ser um mercenário de tanto que ia ao Paraguai, sem trazer qualquer muamba - passava pela calçada com uma estonteante negra de um metro e oitenta, para disparar seu brado clássico "OH, SCOTEIRRRRSSSSS". 

Um churrasco acabou triste, também por dois motivos, um à vista e outro a prazo. Copa do Mundo, Brasil e França. Perdemos nos pênaltis. Na outra Copa, ainda criança, eu nem fiquei triste pois achei que o time de 1986 seria o mesmo, uma doce ilusão. Muita coisa havia mudado. Mas a gente tinha confiança e o Brasil fez um partidaço, perdeu vários gols - Zico de pênalti, Muller na trave no último minuto da prorrogação (foi isso?) e acabou castigado. Ficaram as boas lembranças dos golaços de Josimar e Careca, Júnior no meio e o jovem Branco voando. Terminado o jogo, não teve samba. Continuamos comendo, mas com o silêncio que só o nunca mais proporciona. Nunca mais fizemos churrascos lá, nem em outro lugar. Anos mais tarde, aquela turma ia se separar para sempre.

Pelo Casilhas, volta e meia passava Ramiro, famoso não pedinte em situação de rua que vivia pela Siqueira Campos. Era silencioso e muitas vezes era visto picando papel, como se aquilo fosse uma terapia. Certa vez, do nada, acertou um soco num cliente na porta do bar e foi embora, sem falar nada. À primeira vista era uma agressão, mas a vítima era fascista. Vá entender. Mr. Éter, outro ícone das ruas do bairro, também passava por lá e bebia a purinha - na verdade era engambelado com água da torneira, o que pode ajudar a explicar sua longevidade depois de anos mergulhado em éter. 

O bar continua. João não está mais no balcão. Aos sábados tem calçada cheia, mesas e cadeiras - uma evolução - mais churrasco. Os personagens passam, mas certas coisas nunca mudam. É Copacabana, meu nobre. 

@p.r.andel

Thursday, April 25, 2024

saco cheio pacaraio

Estou de saco cheio.

Estou de saco cheio. 

Definitivamente estou de saco cheio.

Não é que eu tenha muito a perder. Na verdade, eu já morri. O que falta é finalizar. Enterrar, terminar, tchau e depois de duas semanas ninguém se lembra de mim ou de você.

Mesmo morto, eu estou com saco bem cheio é porque acho que o Brasil podia dar certo e o Rio de Janeiro podia dar certo. 

Mas não dá.

Eu tô de saco cheio de ver tanta gente chorando de fome na rua ou então desmaiada, maltrapilha, porque não tem absolutamente nada. Não aguento mais. 

Eu estou de saco cheio de ver em mil janelas anúncios de "vende-se" e "aluga-se quando eu não tenho onde morar. 

E estou de saco cheio de ver mil portas de lojas fechadas, com anúncios cujas negociações nunca mais vão se concretizar. 

Acabou. O comércio de rua de vários bairros do Rio simplesmente morreu. 

Eu tô de saco cheio do ódio, da ganância, da indiferença e do desprezo. Do desdém.

Eu tô de saco cheio do mau caratismo, da inveja, da maldade e da violência. Eu tô de saco cheio de ver gente arrogante, que se julga certa ao humilhar e menosprezar os outros, mas mal serve para respirar. Devia pagar imposto sobre respiração. 

E também tô de saco cheio de tanta gente boa que não tem uma mísera oportunidade de fazer coisas boas legais, progredir, porque todo esse sistema é opressor, excludente e humilhante ao extremo. 

Eu tô de saco cheio de andar na rua e ver o asfalto vazio. Sem carros como se fosse um feriado, simplesmente porque as pessoas não têm dinheiro pra botar gasolina nos carros velhos. E depois fico com mais saco cheio, porque minha única diversão é a televisão e quando ligo, ouço sobre PIB, emprego desenvolvimento, investimentos, mas nada disso coloca um único ovo a mais na minha geladeira vazia. 

Eu tô de saco cheio de ver as pessoas colocando as contas dos problemas alheios na falta de fé. Fulano sofre porque não tem fé, o fulano sofre porque não tem Deus, faça-me o favor. Será que Deus não tá olhando as pessoas que são humilhadas todo dia na SuperVia, nem está olhando todas aquelas que descem a Rua do Lavradio na hora do final do expediente pegando biscoito para almoçar, por que não têm dinheiro para outra coisa? Aí na TV o sujeito diz que biscoito recheado faz um mal horrível, mas não estão nem aí com o poder de compra do trabalhador, que obriga o biscoito. 

Eu tô com um saco tão cheio que até o meu time de futebol, que é uma das minhas pouquíssimas alegrias, volta e meia me dá aborrecimento e me tira a vontade de ir ao estádio, não pelo time em si, mas pelo que acontece em torno dele. Gente ruim, escrota, vendida, negócios escusos.

Eu tô de saco cheio daquelas pessoas que desaparecem e te deixam a ver navios, para depois te procurar quando precisam de alguma coisa pontual. Inclusive tem a eleição chegando e você já sabe: sempre tem alguém querendo te falar de um grande candidato, de uma grande maravilha, de um grande projeto que vai do nada a porra nenhuma e só serve para colocar gente empregada em gabinete. 

De forma alguma negando a importância da política das instituições, pessoal. É só uma constatação. Metade da Alerj está alinhada à milícia. Eu não sei nem dizer o que que tem na Câmara dos Vereadores, mas deve ser bem pior, vide o que fizeram com Marielle e Anderson. 

Eu tô de saco cheio de passar na rua e ver pessoas que acabaram de ter problemas, procurando ou a polícia ou a Guarda Municipal ou algum representante de instituição, e serem tratados com desprezo como se não fossem nada, porque ali não está um rico ali, não está alguém com sobrenome famoso, não está alguém que mora na orla do Rio de Janeiro e é assim que a maior parte das pessoas trata as outras nessa porra dessa terra, se você não tem dinheiro. Se você não tem um grande sobrenome e se você não mora na orla do Rio de Janeiro, você é ninguém. É exatamente assim que é uma parte das pessoas te trata. 

Nem a internet escapa. E aquele fulaninho ou fulaninha que nunca dá apoio a nada do que você faça, nunca compartilha nada contigo, não pergunta nem como você está durante anos, não interagem, mas basta que você publique qualquer coisa que minimamente a contraria e ela vem cheia de pedras, né? Como a figura defensora da moral e da ética contra a maldade do mundo. É hipócrita que chama essa gente, né?  Ou é escrota? 

Eu tô com saco cheio de ser um excluído na minha própria cidade. E o pior é que diante de toda essa porcaria que a gente vive, de toda essa miséria e de todo esse descaso, eu ainda sou privilegiado mesmo passando por momentos desesperadores. Isso não quer dizer que eu estou bem; pelo contrário, eu estou muito mal, mal como nunca estive. Quer dizer que tudo é uma merda muito pior do que se pode imaginar. 

Você no meio da tragédia, no prédio em chamas e a pessoa vem falar para você "seja positivo", "pense coisas boas" , "fique bem". 

Dá vontade de mandar tomar né? 

Você ali na merda sofrendo, chorando, desesperado, sem uma única mão que possa te ajudar, a pessoa vem e fala "fique bem". Vá pra puta que pariu. É melhor não falar nada e ser escrota raiz mesmo. 

É isso. Essa é uma quinta-feira de abril de um ano ruim e que provavelmente vai piorar. Não é negativismo, nem palavras atraindo "coisa ruim",  mas apenas analisando friamente a realidade dos fatos que aí estão. Por educação ou por conveniência, muita gente prefere varrer para debaixo do tapete e fingir que não existe. 

Ou você não conhece ninguém que atravessa de um lado do para o outro da rua, só para não passar num grupo de pessoas em situação de rua? 

Você não conhece ninguém que já tenha dito que nunca viu uma pessoa comendo lixo na rua? 

Pois essa a mistura da alienação com a indiferença, com descaso, com dane-se o outro. 

A cidade é maravilhosa na geografia e em parte dela.

A outra parte é só humilhação para milhares de pessoas, debaixo das miras de fuzis, com riscos de estupro de morte, tortura etc.

Chamam isso de democracia, tá bom? 

Chega, pessoal. Pouco importa se eu já morri ou não, ninguém se importa com isso. O que importa é que eu continuo de saco cheio vivo ou morto, eu vou continuar de saco cheio vivo o morto, eu nunca vou aceitar essa situação que vive a minha cidade, o meu estado e até certo ponto o meu país.

Fomos trucidados por nós mesmos. 

Fuzilados por aqueles que acham que a solução é destruir o outro e manter tudo como está. Resultado: o que era péssimo, piorou. 

Daqui a pouco esses espíritos de porco vão ressuscitar algum mito para tentar dizer alguma coisa que nos leva do nada a lugar nenhum. 

Ou melhor, pode até levar, né? Das investigações policiais até a quadrilha.

Tuesday, April 23, 2024

Pequenininho

Minha mãe me chamou de pequenininho por sua vida inteira. Era assim que ela me via quando eu era bebê, e a imagem ficou para sempre, mesmo quando eu já era muito maior do que ela. Sei como é: tenho amigos que conheci ainda crianças quando eu era adolescente, e agora eles são quarentões mas ainda os vejo como garotos. 

Pequenininho. É o que sou. O que sempre fui. Minúsculo.

Saio à rua, olho para os prédios e vejo como sou uma formiguinha perto deles. Mesmo quando passa um ônibus ou um caminhão grandão. Na barca da Praça XV eu me sinto minúsculo. 

Eu sou pequenininho. Um número. Um CPF pobretão e triste nessa terra de tanta mágoa e indiferença.

Minúsculo. Vejo tanta gente sofrer pela rua e não tenho capacidade de ajudar a mudar suas vidas. Tanta fome, tanto choro e olhares tristes, vazios, a caminho da fila do ônibus ou do trem.

Pequenininho. Sem pai nem mãe, sem perspectivas, com a lâmina de uma adaga me lambendo o pescoço e, até esta linha, sem saber como escaparei de tragédias. 

Sozinho. Pequenininho. Sem ninguém pra me ouvir, me acudir, nada. Se morro agora, só vão descobrir quando feder. E o pior: literalmente não tenho onde cair morto. 

O que eu tenho é meu corpo e minha cabeça, que sonha o impossível e cria coisas, todas elas sem valor comercial mas artístico algumas vezes. Minha cabeça pequenininha, cabecinha de Santo Onofre como dizia minha mãe. Ela me amava. Meu pai também gostava de mim, do jeito dele. Meu irmão acho que não gosta de mim, senão não tinha sumido. Agora ninguém mais gosta. Ninguém. Nunca fui tão ninguém. Tão pequenininho. A formiguinha na beira da pia com louça suja, sonhando com uma migalha de alimento. 

Acho que sou pequenininho porque a gente se ilude a vida inteira achando que cresceu, que amadureceu e envelheceu, que passou a fazer só coisas de adultos, mas a verdade é que somos crianças para sempre. O corpo muda, o tempo passa, mas à medida que envelhecemos, mais o passado é importante. O começo, os sonhos, as pequenas coisas, a minúscula e efêmera felicidade. A saudade. 

A cada dia eu penso mais na criança e no jovem que fui. Não é que fosse tudo bom, porque estava longe de ser, mas quando você é jovem sempre tem a perspectiva do futuro - a chance to heaven! 

Eu tinha carrinho, eu brincava e jogava bola. Eu lanchava e via desenhos com minha mãe - ela ficava muito feliz comigo, me chamava de seu tesouro, de seu reizinho. Ela gostava de mim mesmo. Nós éramos bem pobres mas tínhamos algum conforto - e eu tinha a praia, o futebol, o sonho. Às vezes lanchávamos no Bob’s. Quando o caixa estava bom, comprávamos pizza da Bella Blú. Eu jogava botão e tinha dias bons nos acampamentos escoteiros. Meus pais tinham 40 anos - eles eram jovens demais. 

Eu só conheci a felicidade pequenininho. Eu só tenho a esmola de felicidade quando me sinto pequenininho, parte de um mundo de fantasia onde não havia ódio, maldade nem ganância. Onde todo mundo podia ter uma casinha, roupas, uma televisão e comida. Onde ninguém vivia dois anos chorando todo dia em desespero pela miséria. 

Saiu um gol bonito na televisão. Brusque x Mirassol. O futebol me faz ficar pequenininho, feliz num Maracanã que já não existe.  No estádio eu sempre fui pequenininho, sonhando que todo mundo do meu lado era meu amigo. A mão do meu pai me puxando provava que eu era pequenininho. E como já se passaram quase cinquenta anos, certo é que sou um grãozinho de areia diante do tempo. Pobre, triste e desesperado grão de areia, procurando por uma casa que não existe, pessoas queridas que estão mortas e um futuro que sequer repete o passado.  


O goleiro que lavava carros

São três horas da manhã do dia de São Jorge e me lembro de Ortiz. Talvez só eu lembre porque talvez eu seja o único sobrevivente daquele tempo. Não, eu sou o único mesmo. 

Em 1976 meu pai tinha uma loja no centro de São João de Meriti. Chamava-se Heduwi. Eu sabia que as três sílabas do nome eram referência a três sócios, mas não cheguei a conhecê-los. Na loja trabalhei pela primeira vez, empacotando compras e fazendo contas. Eu tinha oito anos de idade. 

Aquele ano seria um dos mais tristes da minha vida por causa do Natal, mas não quero falar disso agora. A própria loja faliu no fim de 1976. Um duro golpe para meu pai. Justamente nos tempos de grande badalação da Máquina Tricolor, ele nem tinha como saboreá-la por tantos problemas pessoais. 

Eu ia para a loja quase todos os dias. Ela era grande e tinha várias coisas, de roupas a produtos capilares. Perto de nós, morava o Seu Dalmo numa casa bem grande e numa rua sem asfalto, lembro bem. Uma vez fomos visitá-lo e ele fez um sanduíche de queijo para mim. Foi a primeira vez que me lembro de ter visto um cortador de queijo. Seu Dalmo era legal. 

O Ortiz. Ele não tinha esse nome, nunca teve, foi uma invenção minha. Ele era atarracado, louro e usava uma faixa na cabeça, era igualzinho ao Ortiz, goleiro do Atlético Mineiro. Lavava carros. Ele sempre carregava uma lata bem grande de óleo Castrol GTX para carregar água, e ela era tricolor. Tudo era Fluminense pra mim em meus sonhos de criança, vivendo dias difíceis com meu pai falindo. Alguém disse que o Ortiz tinha sido um homem de posses, mas perdera tudo por causa do alcoolismo - imagine o meu desespero ao ver meu pai bebendo tanto por desgosto. Enfim, o homem que lembrava o goleiro ia e vinha quase todo dia com sua grande lata, que era seu instrumento de trabalho. 

A véspera de Natal de 1976 foi a última vez que estive na loja. Ela fechou de vez dias depois. Nunca mais voltei ao Centro de São João de Meriti, nem vi Seu Dalmo, nem o Paulista, um vendedor corintiano que estava sempre por lá e, claro, tirando uma onda com seu time. Foi no chaveiro do Paulista que vi pela primeira vez o escudo do Corinthians e achei bonito. Semanas antes, falecera o Sr. Santana, que sempre levava pão de queijo para mim e minha mãe. Também me lembro que a primeira vez que bebi um refrigerante tirado de máquina foi perto da loja, na rua da Matriz. Foi um copo de Pepsi, achei delicioso. 

São várias lembranças de uma época difícil da minha vida, mas que estão muito presentes. Sou a única pessoa viva das citadas acima, eu era uma criança. Ali perto, ainda nasceria uma garota bonita chamada Patricia, que eu só iria conhecer trinta anos depois, na faculdade, não na UERJ.

Ortiz, nunca mais. O que terá sucedido? Não sei dizer. Só sei que lembro e lembro. Eu sou o único sobrevivente dessa miscelânea toda de quase 50 anos atrás. Até quando, não sei.

@p.r.andel

Monday, April 22, 2024

A minha MTV

Em 1990, eu era um garoto estudante de faculdade, sem parentes importantes, vindo da própria capital, duro, cheio de sonhos e tentando buscar um emprego. 

Tempos difíceis: a Era Collor não perdoava ninguém. O desemprego e a fome eram regra. 

Mas aí apareceu a MTV Brasil na televisão e as coisas mudaram para melhor. Pra mim, melhoraram paca. Imagine: eu não tinha grana pra comprar discos, mas podia ver e ouvir N artistas. 

A linguagem do videoclipe, que já existia há vários anos, ficou definitivamente popularizada no Brasil. Ela já vinha do Fantástico e de programas como o saudoso BB Video de Eládio Sandoval e Billy Bond, mas a MTV veio como um furacão varrendo tudo, trazendo acesso aos trabalhos musicais de números artísticos que não tocavam em rádio no país, sem contar a multidão de artistas nacionais que passaram a aparecer na TV justamente por conta de seus clipes. Aquele pessoal descolado interessante divertido, gatas extraordinárias apresentando as atrações sempre com uma perna mais inclinada do que a outra. 

A MTV colou bem no Rio de Janeiro. Chegou praticamente junto com o Rock in Rio 2 e nos tempos das melhores edições do Hollywood Rock. Teve de tudo: Nirvana (com Kurt Cobain ensandecido), Alice in Chains, Red Hot Chilli Peppers e outros shows antológicos, como o auge de Titãs e Paralamas tocando juntos. Foi na MTV a explosão do Manguebeat com Chico Science e Nação Zumbi mais Mundo Livre S.A., e Skank, Pato Fu, Planet Hemp, Cidade Negra, Raimundos e grande elenco. E o Capital Inicial? A partir do Projeto Acústico MTV, a banda deu uma guinada tão grande em sua carreira que se tornou muito mais popular do que em sua primeira fase. 

O Acústico gerou registros espetaculares de nomes como os próprios Titãs, Paralamas, Cássia Eller, Lobão, Marcelo D2 e outras feras. 

Apesar da sua audiência modesta, a MTV formava a opinião definitivamente e ditava as regras. Se nem todo mundo ouvia, todo mundo sabia do que se tratava. 

À medida que fez a travessia do século XX para o XXI, a MTV aos poucos foi diminuindo a sua cota musical e fazendo mais programas de auditório. De toda forma, eles eram sempre interessantes, fossem pelos debates, pela vanguarda e pela quebra de paradigmas, vide o beijo gay ao vivo no Beija Sapo, atração comandada por Daniela Cicarelli. 

Em sua última grande fase a MTV ainda revelou um monte de jovens humoristas para o país, numa safra de nomes como Marcelo Adnet, Dani Calabresa, Paulinho Serra e mais um monte de gente com programas interessantíssimos no canal que ainda tinha a música, mas não como o principal carro-chefe. Depois, atolado em dívidas, o grupo Abril liquidou o canal no Brasil por questões financeiras. 

Tempos depois, entrou uma nova MTV no ar, mas ela mas ela não tem nada a ver com o espírito da MTV Brasil original. Só tem o nome. Vida que segue. 

O que deixa saudade mesmo é aquele tempo de grandes bandas, de VJs fabulosos - Marina, Thunderbird, Gastão, Sabrina etc -, de programas divertidíssimos e de muita informação musical que hoje se perdeu no mundo da internet, né? Onde tudo é diluído e para você achar determinados conteúdos, tem que fazer um verdadeiro trabalho de arqueologia.  A MTV não, ela te dava tudo de bandeja. Vinte anos de música, sorrisos e vanguarda. 

Wednesday, April 17, 2024

Disappointed

Public Image Ltd., 1989


What friends are for?

What friends are for?

What friends are for?

What friends are for?

What friends are for?

What friends are for?


Promises, promises

Old tired, worn out second hand sentences

One thing, with you is certain

You're a really sad person, so sad


Disappointed a few people

When friendship reared its ugly head

Disappointed a few people

Well, isn't that what friends are for?


What friends are for?

(What friends are for?)

What are friends for?


You, you're just a really bad person

Who won't, you won't, listen to anyone

No not you, with those half moon eyelids

Just babbling on, your useless defenses, so sad


Disappointed a few people

When friendship reared its ugly head

Disappointed a few people

Well, isn't that what friends are for?


What friends are for?

(What friends are for?)

What are friends for?


This erratic haphazard, fluttering

This toing and frowing, like a confused moth

The collusion, illusion, it's all ad infinitum

You're a really sad person, you're really so sad


Disappointed a few people

When friendship reared its ugly head

Disappointed a few people

Well, isn't that what friends are for?


What friends are for?

(What friends are for?)

What are friends for?


Fools and horses

Running their courses

And brow beaten down

Like dust on the ground


You cheat easily, like sweet charity

And all of the bastards, the world despises

Springing surprises in newer disguises

You cheat easily, like all charity


Tuesday, April 16, 2024

cotidiano

 

os artistas tentando

esculpir amor 

frente

ao mundo em chamas 

com cheiro de 

carne queimada,

solidão e fracasso 

- os artistas insistem! 

Sunday, April 14, 2024

Janjão

(Publicado originalmente em julho de 2022)

Há muitos anos, mais de vinte, eu saía do trabalho a pé para casa e Seu Janjão me cumprimentava com um oi, um aceno de mão ou algo simples. Ele morava com a família num sobrado a metros do meu prédio, e lá ficava com sua cadeira na porta. Praticamente de segunda a sexta, todas as semanas, todos os meses em fins dos anos 1990. Nunca falamos nada além dos cumprimentos, mas eu achava legal que um vizinho me reconhecesse e se preocupasse em dar um oi. Parecia coisa boa das cidades do interior. Ele me lembrava o Seu Madruga, ahaha.

Era uma época difícil: meu pai parou de andar, o mundo desabou mais uma vez e lá estava eu sob os escombros. Amigos deram as costas, a injustiça era a sina. Ia e voltava do trabalho para casa. Tudo era racionado para que pudéssemos sobreviver (nada diferente de agora, exceto por não ter mais família). A internet estava começando e ainda viria muito ódio pelo caminho. 

Muitas e muitas vezes eu vinha pelo caminho amargurado, triste, mas perto da portaria o Seu Janjão acenava e eu me sentia melhor. Eram dias em que as pessoas basicamente só falavam comigo por motivo de trabalho. Pelo menos eu tinha a MTV para me distrair. Dureza. 

Em algum feriado em casa ou folga repentina, alguém bateu à porta numa tarde de sol. Não esperava ninguém, achei estranho, fui espiar. Era um garoto, pedindo colaborações para o velório do Seu Janjão, que morrera de manhã. Fiquei paralisado. Peguei a carteira, dei o que tinha, o rapaz agradeceu e foi batendo em outros apartamentos. Passei o resto da tarde pensando naquele senhor educado, que nunca soube meu nome mas fazia questão de me cumprimentar. Aquilo me entristeceu profundamente.  

Dias depois, voltei à rotina de trabalho. Vinha da Rua do Senado, pegava o último trecho da Mem de Sá e logo o começo da Rua de Santana. Perto de casa, nenhum aceno ou oi. Não havia um cumprimento. Perdi para sempre o amigo que se preocupava comigo, mesmo que sequer tenhamos sido amigos de ofício, claro. O que importava era a generosidade, o apreço, o velho sentimento de fraternidade. 

@p.r.andel

Para voltar no tempo

Neste exato instante eu gostaria de encontrar com meu amigo Fred e partir para o supermercado, não qualquer um, mas Supermercado Leão. Lá chegando, a gente compraria pão francês, Coca-Cola ou Pepsi - dependendo do Fredão - e pasta de pão Alouette de ervas finas, tudo para fazer sanduíche quando chegássemos na casa dele e, depois, jogarmos um carteado daqueles de gastar à tarde, quando você tem 18 ou 19 anos de idade e, claro, não tem emprego nem ocupação afora o estudo. 

Queria também que o Gustavo nos ligasse e, de repente, aparecesse  com aquela sacola cheia de discos que ele carregava, LPs maravilhosos e capas antológicas, e tome Kraftwerk, Rolling Stones, Level 42, Yes, Genesis e tudo mais que você possa imaginar. 

Eu queria também estar na casa do Ricardinho bem tarde da noite, enquanto ele Fred se digladiassem numa batalha de Atari - Enduro, Pitfall, Space Invaders. Nunca joguei nada, sempre fui uma pereba em diversões eletrônicas e nem participava, mas gostava de ver. Sempre gostei. Geralmente a gente saia de lá à meia-noite, talvez uma da manhã e vinha solitariamente pela Santa Clara, até entrar na Boca do Lobo, ganhar o Bairro Peixoto deitado em silêncio esplêndido, depois voltar para casa. 

Acho que eu queria mesmo era estar por volta das seis da tarde de sábado no Bar Sniff’s, depois da reunião dos escoteiros. A gente sempre se reunia por lá para bater papo, trocar ideias. Os frequentadores mais velhos sempre nos escutavam e nos davam atenção, a gente ria com as galhofas e piadas típicas dos anos 1980 e ficava ali até nove ou dez da noite, nem saía, era nossa diversão muitas vezes. 

Sei lá, eu queria agora descer e caminhar tranquilamente pela Figueiredo Magalhães até chegar na praia, depois caminhar ao lado do Atlântico Sul até chegar na Francisco Otaviano, subindo toda e encarando as pedras do Arpoador. Quantos poetas fizeram isso, né? Cazuza deixou isso registrado em “Faz parte do meu show”. 

Há uns 15 anos ainda tive chance de pegar os últimos momentos do Cirandinha, lanchei lá várias vezes com colegas dos tempos de escola. A comida era impecável e o ambiente refinado. Muitas senhoras marcavam chás para se reunir e conversar, enfim, encontrar as velhas amigas. A gente se sentia bem em casa, seria bom estar lá agora. 

Quer saber? O que eu queria mesmo, mesmo, bem lá no fundo, era ser bem pequeno para passear com meu pai quando ele me dava a mão. A gente caminhava pela rua muitas vezes. Nós não tínhamos destino, a gente simplesmente saia de casa, dava uma volta por algum lugar do universo Copacabana, lanchava alguma coisa e retornava. Foi assim que eu descobri os nomes das ruas, dos prédios e dos lugares. Geralmente era aos sábados à tardinha. E quando você tem a mão do seu pai para segurar, viver é muito mais fácil. 

Querer tudo isso é impossível. É voltar ao passado, ressuscitar quem já se foi e ter a verdadeira chance de voltar para casa. Eu sei que é impossível, que viver é melhor que sonhar, mas numa noite melancólica e silenciosa talvez só o sonho possa me estender os braços. 


Sunday, April 07, 2024

Me dá um Barão?

Eu era garoto, tinha uns dez anos. Certamente minha vida foi melhor do que a de 90% das outras crianças, mas esteve longe de ser fácil. 

Estávamos muito pobres, meus pais batalhavam demais. 

Surgiu o Barão, em meio à inflação. Era um sonho. Eu quero um Barão. Você me empresta um Barão? A nota de 1.000 cruzeiros estrelada pelo Barão do Rio Branco. 

Foi uma das cédulas mais queridas pela população, embora a maioria não tivesse nada.

O Barão me traz à tona um tempo distante, longe de ser fácil mas que me dá saudade. Não é saudosismo, mas saudade. É que essa coisa dos sete aos catorze anos passa com velocidade astronômica, a gente não aproveita direito e, quando vê, tudo voa longe. 

No tempo do Barão, meu grande sonho era o lanche no Bob's da Domingos Ferreira. Às vezes meu pai me levava lá. Minha mãe preferia o da Avenida Copacabana, ao lado do Externato Santo Antônio. Tudo se foi. 

Ou ganhar um time de botão cristal Gulliver. O do Fluminense era lindo, verde vivo, com o escudinho envolto por um círculo amarelo. Wendell, Miranda, Moisés, Edinho e Carlinhos; Pintinho, Cléber e Rubens Galaxe; Doval e Zezé. Faltou alguém. 

Ou ganhar uma linda bola de couro com 32 gomos e me sentir um craque feito aqueles que apareciam no "Gol: o grande momento do futebol", programa da Band apresentado por Alexandre Santos, só com gols, gols e gols maravilhosos. Tinha Ademir da Guia, Leivinha, Ailton Lira, Edu Bala, Sócrates, Palhinha, Serginho e também as feras do Rio: Luisinho, Tita, Nunes, Cláudio Adão, Roberto, Zico, Luisinho das Arábias. 

Sonhar com os times de vidrilha da loja de brinquedos Dom Pixote, que ficava na Santa Clara, bem em frente às Massas Suprema com seus inigualáveis pasteizinhos. 

Outro sonho de garoto: ir à Kayat Sports da Figueiredo Magalhães (que não sei ao certo se era do Seu Carlson Gracie ou não) e comprar o escudo tricolor bordado, lindo, mais um número 5 verde, do Edinho, daqueles de grudar na camisa passando ferro. Com o escudo e o número, era só comprar uma camiseta Hering branca e fazer a camisa de futebol mais bonita do mundo. O problema era que dinheiro não era nada fácil e conseguir um Barão...

A gente jogava bola na vila, quase todo dia. Na praia também, até o início da noite. Quando escurecia, não dava pra ver mais nada. Ver a praia de Copacabana hoje toda iluminada é engraçado: os mais jovens nem sabem que a iluminação só começou em fins dos anos 1980, talvez 1988 se não me engano. 

Morria de medo de tirar uma nota vermelha. Podia perder a bolsa de estudos. Não podia errar. 

Sempre que dava, via desenhos animados com minha mãe. Flintstones, Pepe Legal, Papa Léguas, Corrida Maluca. Até hoje vejo no YouTube. Só falta a mãe do lado. 

[A dor de ser órfão é tão grande que não há como descrever, apenas sentir

Às vezes a gente jogava botão no Shopping dos Antiquários, debaixo da escada rolante. Só fiquei chateado um dia, quando os amigos não queriam que eu participasse do campeonato porque "ganhava tudo". Eu podia até ganhar, mas minha grande alegria era jogar. Até hoje me sinto bem só de mexer nos botões em casa. 

Quando tinha grana em casa, minha mãe fazia Strogonoff e bife à rolê. Nos tempos de maré baixa, carne moída com arroz, ou asinhas de frango. Pouco importava: com ela e meu pai em casa, eu acreditava até em felicidade plena. 

@pauloandel

Saturday, April 06, 2024

A alma aflita das ruas

Ó, seguinte: dentro do futebol tem uma turma que me conhece, já fiz bastante coisa. Agora, fora dele, meu anonimato é garantido. 

Não faço parte de correntes, de ondas ou de estilos; não tenho amigos em postos-chave da mídia para me exaltar; não tenho grana para a devida promoção; faço lançamento de chinelos e bermuda confortável. E também não me identifico como novidade porque já sou velho para isso.

O que faço é escrever. Faço porque gosto, agora sem precisar me preocupar com o editor muquirana, que pretende cortar páginas para economizar papel. E escrevo o que quero. Este livro, por exemplo, nasceu do incentivo do mestre Luiz Carlos Lacerda a postagens que fiz por aqui, contando pequenas histórias de pessoas humilhadas em meio à pandemia - gente que chora de fome, que não tem casa, que só tem a mão espalmada para ter o que comer, gente considerada invisível por muitos. E tem morte, dor, lágrimas, sexo gay e hetero, mais uma série de reflexões sobre o fato de sermos eternas crianças, mesmo estando tão longe disso. 

Enfim, para quem quiser conhecer parte do meu trabalho fora do futebol, este é meu livro mais recente. Tenho um blog há 18 anos no ar, mas banido aqui pelo Facebook sem justificativa plausível. Eu não sou nenhuma promessa da literatura do Brasil, não trago a mulher/homem amada(o) em três dias e, com exceção do próprio Bigode (que fez uma maravilhosa apresentação do Alma no Correio da Manhã), o resto não deu um pio sobre. Meu livro é humilde e independente, porque não aguento mais pagar 50% de consignação para quem não faz nada por ele. Mas desancar um livro sem lê-lo fica para os idiotas e ressentidos - somente eles têm capacidade para isso. 

Se você tem curiosidade sobre a degradação do Rio em Copacabana e no Centro durante a pandemia, que é a minha própria degradação também, taí. É barato e vai pelo Correio para todo o Brasil. 

Blog otraspalabras. http:// paulorobertoandel ponto blogspot ponto com. 

Encomendas WhatsApp 21 99634-8756.



Wednesday, April 03, 2024

Copacabana sussurra

VOLTEI a Copacabana. Eu sempre volto. Na verdade meu coração e espírito sempre navegam por lá. Mesmo trinta anos depois de ter sido expulso pelo crime de ser pobre. Mesmo depois de tudo. Eu vivo intensamente as ruas abandonadas do Centro e de outros bairros, mas de alguma forma sempre estou em Copacabana. Então peguei o metrô à meia-bomba na Cinelândia e fui tranquilo para a Siqueira Campos. É sempre melhor descer pelo Aterro, ver o lindo recorte da natureza que vai até o Pão de Açúcar - a cidade tão bonita mas usufruída por tão poucos -, depois entrar no Túnel Novo e se sentir num verdadeiro túnel do tempo - eu brincava disso quando era criança - até fazer a gloriosa curva à direita que desemboca na Barata Ribeiro. Acontece que eu tinha tempo curto para chegar, então o metrô é uma garantia - cara. Queria chegar a tempo no mitológico sebo L. O. Matta, que é muito bom, com excelentes discos - as atendentes são maravilhosas, o dono não. Deu tempo de pescar um João Gilberto, era o que bastava. João foi de Copa, morou com João Donato perto da Cardeal Arcoverde, é coisa nossa. Fechada a loja em minutos, naveguei pelo Shopping dos Antiquários, reverenciei meu bar morto, espiei o prédio onde morei por 16 anos, outro que frequentei por dez e sonhei encontrar algum conhecido, mas não aconteceu. Olhei bem para as lojas, elas são totalmente diferentes do que eram há trinta ou quarenta anos, mas o shopping tem uma atmosfera inconfundível. Vi uma doceria com tortas lindas e quis comprar um pedaço para a Marina e outro para minha mãe, só que Marina está a 70 quilômetros e minha mãe, ah, talvez nunca mais ou no infinito, talvez somente dentro de mim mesmo. Voltei para o metrô e saltei na Cantagalo para encontrar meu amigo Raul. Nós abraçamos e caminhamos um pouco pela Aires Saldanha, com vários bares - um rapaz e uma garota, promoters da região, nos convidaram a entrar mas tínhamos um compromisso inadiável com o Caravelle. Agradecemos, os dois eram uma simpatia, seguimos nosso caminho. Pouco tempo depois, estávamos comendo a melhor pizza napolitana do mundo - não há como explicar, só indo e comendo, mas aquela pizza tem um sabor único, feito quando você ouve King Crimson ou lê Jack Kerouac - ou ainda mestre Ivan Lessa. Comemos, rimos, fofocamos, lamentamos a ausência dos amigos de mesa e no fundo, talvez bem no fundo, não vamos lá só para comer a melhor pizza do mundo, nem somente para lembrar de todos os ótimos garçons que nos atenderam lá por décadas a fio - todos se foram -, mas é que o Xuru morava no prédio ao lado do Caravelle e, inconscientemente, a gente carrega uma ridícula esperança que ele apareça rindo e sente à mesa. É impossível porque Xuru morreu há mais de dezoito anos, mas continua presente em nossas piadas, diálogos e sentimento. Mais cedo, no Centro, encontrei Pedro, que está conosco há quarenta anos e agora está perto do meu trabalho outra vez. Depois da melhor pizza do mundo, encaramos um sorvetinho e aí era inevitável lembrar do Solar dos Couceiro, onde nos conhecemos e vivemos grandes dias de nossas vidas. Só que tudo que é bom acaba rápido e perto das oito e meia nos mandamos porque tinha Fluminense na televisão. Nós não somos torcedores do Fluminense, mas sim peregrinos dele - o perseguimos desde sempre e provavelmente morreremos assim. Até a hora da conta falamos de muita coisa, de muita gente querida e de histórias excêntricas. Agradecemos aos garçons por tudo, Raul foi para um táxi, eu peguei um Uber e cheguei em casa quinze minutos depois, uns dez antes do jogo. O Fluminense só empatou, paciência. A Cler deve ter ficado revoltada. Cochilei um pouco depois do jogo, acordei, trabalhei um pouco, tomei uma Coca-Cola geladona em lata e agora estou aqui. Não tenho sono, tenho um monte de problemas e dores, tenho uma 45 apontada para mim, tenho esperança no novo dia que já se avizinha. Penso num novo livro, em ir ao CCBB, ao É Tudo Verdade. São três e meia da manhã e toca Nirvana numa chamada do Canal Bis. Tudo isso é apenas pano de fundo porque ainda estou hipnotizado por Copacabana, porque trinta anos depois ainda sinto saudades de Copacabana, de ficar de mãos dadas com a mulher amada perto da água na Figueiredo de Magalhães. Porque penso que até o fim dos anos 1980 a praia incrivelmente não era iluminada. Porque eu ainda lembro de Fred, Marco, Luiz Magno, Ricardinho, Gustavo e eu na mesa de carteado. Porque eu lembro da Claudia, e lembro das outras garotas que iam e vinham na casa do Fredão - ele também se foi cedo demais, assim como o Luiz. Tudo é Copacabana. São três e meia da manhã, o ventilador me refresca feito ar condicionado e alguma coisa me traz a aragem de Copacabana. Terra de meu amigo Luiz Carlos Lacerda, cineasta consagrado e aclamado. Terra do divertidíssimo DJ Zé Pedro - Crepúsculo de Cubatão, quem se lembra? Eu preciso dormir, mas Copacabana sussurra: "Espere um pouco mais, meu bem."

@p.r.andel