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Friday, December 29, 2006

Um poeta recolhido

vejo um poeta na rua em silêncio
parece tão reflexivo, contido
sorve um chope com delicadeza
e senta o copo na mesa solitária
ouvi falar de seu talento, ocluso
hermético para grandes platéias
trata-se de um poeta cansado
pela denúncia das grandes olheiras
e também do cigarro mal tragado
parece fitar uma rua abandonada
tudo diferente da minha calçada
vejo o poeta, vejo-me calado afim
e o que sinto agora seria fadiga?
sede? sombra de dúvidas? distância?
descreio de tudo o que cogitei
agora entendi a distância do poeta
rascunhando num guardanapo
rabiscando um devaneio de amor
ainda não temos uma noite de carnaval
e raras são as festas da cidade
contudo, o poeta não pára
o que parece-me distância, na verdade
é sua quase única razão de viver
rabiscar, expulsar amor dum coração para um papel vulgar


Paulo Roberto Andel, 29/12/2006

O aviário

Depois de tantos anos morando pelo centro da capital, ainda sinto-me um estrangeiro morador.
Estou mais do que acostumado ao frenesi das ruas na condição de trabalhador assalariado, muitos estão.
Habitar, contanto, é outra coisa. Sei das ruas e dos caminhos, mas não tenho os endereços em mente como os de minha tribo nativa, que sempre será Copacabana. Vez ou outra, palpito e dá certo. Um estabelecimento, contudo, sempre chama-me atenção: um aviário que fica na rua André Cavalcanti.
Nos meus tempos de criança, na velha Toneleros, havia uma casa de aves também. Impressionava-me: primeiro, não era tão comum para crianças da zona sul depararem-se com animais vivos que não cão, gato e pombo, variedade que só fui ter no zoológico e, tempos depois, quando tornei-me escoteiro. Contaram-me também que os pobres bichos ficavam ali à espera do sacrifício, entre as grades apertadas. Tive muito medo daquilo, e tal fato volta e meia traz-me a idéia de necessitar parar de comer cadáver.
Sei que são muito gostosos.
Gente muitíssimo mais importante do que eu, como Nelson Rodrigues, já sonhou com bifes em crônicas, de modo que em minha condição de reles mortal aceito-me. Às vezes. A pena, entretanto, existe em mim. Pobres bichos. Pobres.
O dono do aviário da André tem um perfil cansado, por vezes entediado. Sempre está sentado em uma cadeira, do lado de fora do balcão de atendimento, tragando um cigarro, à espera de ávidos consumidores que, em busca de carne fresca, disponham-se a mandar abater os coitados patos, galinhas, porcos e associados. Tem um ar triste nos bichos, assim como tinha na Toneleros. São irracionais, feito eu, consumidor; não sei como, sopra em suas estampas a síndrome da morte a seguir. Saddam deve estar sentindo isso, ou já sentiu, ninguém sabe ao certo.
Promessas de ano novo não são tão válidas, sabemos. Podem soar como início de regime alimentar às segundas-feiras. Eu queria diminuir a carne do cardápio, sei que é difícil. Adoraria extingui-la do meu cenário, sei que é impossível. Creio que me faria bem e sentimentos melhores viriam ao meu pensar, descontados todos arrependimentos que tenho pelos milhares de bois, frangos e peixes mortos em nome da minha fome e da minha saúde. Isento as estranhas criaturas que dizem ser a receita dos hamburgers Mac.
Estamos no fim de mais uma etapa, mais um ano, novas promessas à vistas, velhas perspectivas. O que virá mais à frente? A esquina, outra vez. O aviário. O dono.
Eu não tenho pai do céu para fazer promessas, promessas. Promessas. Resta-me apenas um incômodo neste momento de fim de tarde.
Parece que os bichos da minha infância no aviário da Toneleros reviveram nos da André. Trazem-me medo, apreensão.
Algo em meu subconsciente traz algum alerta para a demolição da Frei Caneca ontem. Grades, bichos enjaulados à espera da morte e algum sujeito sentado tragando um cigarro despreocupadamente. Alguma coisa tem a ver.
Pior ainda.
Pensar nas gentes enjauladas pelas janelas de vidro dum ônibus, ardendo vivas no inferno, morrendo para satisfazer a insanidade de bandidos cruéis, que trouxeram de volta os tempos da inquisição. E que uns insistem em defender que são meus semelhantes.
Eu sou um bicho menos insano. Arrependido, sirvo de amparo para que a carne não humana seja bom negócio no planeta. Longe de mim incendiar um galeto em vida.
Mais perto, do veículo, tem gente sentada tranquilamente e tragando demais, como se nada estivesse acontecendo.
Desisto do passeio e volto para casa. Amanhã, outro dia, é um novo ano. Novas grades.
Paulo Roberto Andel, 29/12/2006

Thursday, December 28, 2006

Onde mora liberdade?

Liberdade, santa insana liberdade
Utopia inalcançável, mais que desejada
Vejam o exemplo de nossa velha cidade
Cada um de nós busca o jeito de ser livre
Num dia de folga, tarde de mar ou no futebol
Desfraldando uma bandeira e gritando firme
Tudo feito de pequenas liberdades, efêmeras
Os humildes buscam liberdades nas palafitas
Nas casas de beira de estrada, alto da colina
Os trabalhadores caçam liberdades na mercearia
Com os minguados dinheiros, de farto suor
Os mendigos perseguem liberdade de sobreviver
Entre a mão estendida e a cachaça de anestesia
Mesmo o abonado, o bem-nascido, abastado
Não conhece bem a ciência de ser tão livre
Uns fogem de impostos, outros da miséria ao léu
Que lhes incomoda olfatos e visões
Outros, blindados, correm das balas perdidas
Das patrulhas noturnas, ensandecidas
E também do fogo infernal das ruas
Nem mesmo um falecido é totalmente livre
Com exceção do ateu que acerte a tese
Senão, é capaz de ainda precisar de senha
Para ser atendido nas portas dos céus



Paulo Roberto Andel, 28/12/2006

Sunday, December 24, 2006

Caso encerrado

Flanava na tarde vadia às vésperas do Natal.
Contrariando planos feitos instantes antes, desistiu de um rumo e seguiu para outro. Adentrou uma taberna. Lá entrando, deparou-se com um silêncio típico de contradição com o local. Permaneceu assim. Pouca gente, poucas canecas tilintando, certo ar de monotonia e leveza.
Pediu um trago.
Parou, pensou, refletiu sobre a vida. Tudo em dedicado silêncio, sem vizinhos, ocupantes de mesa ou outros interlocutores.
Houve um rompante, interrompeu-se aquele mesmo silêncio por causa de um tapa nas costas.
Era um conhecido, um ex-amigo, embora não qualquer.
No passado, eram muito ligados, pertenciam a uma mesma turma, cortaram dias e noites pela Guanabara, parecia até amizade de verdade que, no entanto, esvaiu-se à frente. A turma quase toda ainda se mantém, tirando o sujeito do tapa: afastou-se de todos, por umas razões um tanto quanto esquisitas, deixou murchar carinhos. Posta a estranheza de lado, após o cumprimento, falou feito cântaros de chuva. Nada que fosse empolgante como as histórias de alegria e humor do passado; os tempos às vezes tiram o sabor das coisas, ou azedam-nas.
Contou de seu sucesso profissional, de suas conquistas financeiras, de sua afirmação intelectual, de seus novos rumos, desinteressado que estava dos vínculos da antiga, considerando-os todos desimportantes. Mostrava uma incessante obsessão em parecer bem, em ter encontrado o sucesso, talvez comprado num desses livros de receitas que pairam pelas bancas de jornais. Gastou um tempo considerável falando sozinho, quase como se fosse um político em campanha; mais ainda, parecia até uma versão caricata dos estadistas, normalmente nesta posição por meios não democráticos, que ficam dispostos a cultivar a própria imagem. Tudo em vão, tudo frívolo e fugaz. Uma conversa desinteressante pelo passado de amigos, pelo presente de bons conhecidos. Era quase um Narciso envolto num espelho de trezentos e sessenta graus. Em troca, sutilmente, recebia o olhar que se fazia de atento mas que continha um dos piores sentimentos que um ser humano pode nutrir por outro. Nojo. Indignidade para com o passado fraterno.
Houve uma hora em que o discurso mostrou-se fatigado. Um pequeno momento de bom-senso do palestrante, aproveitou-se para despedir-se amigavelmente, mas sem grande calor: talvez tivesse percebido que sua prosa rançosa só não tinha sido rechaçada por boa educação da parte ouvinte. Não deixou telefone, contato, absolutamente nada, menos ainda recebeu solicitação para tal. E foi melhor assim.
Quem muito ouviu, deixou a taberna logo a seguir. Resolveu novamente mudar rumos. Buscou ar livre, ruas arborizadas, gentes caminhando por entre as réstias de sol a bater nas calçadas. Quando chegou perto do mar, reavivou o discurso pedante da taberna. Pareceu-lhe feito o desapontamento que, por vezes, cada um de nós tem quando reencontra a pessoa amada do passado, ouve-a e depois toma-se pela imaginação de como poderia, um dia ter desejado alguém daquele jeito. No caso real, tratava-se de bem maior, pior ainda: amizade é para superar todas as mazelas, todas as barreiras, é para ser indestrutível - ou, ao menos, deveria ser caso fosse embebida pela essência da sinceridade. Triste a sina de deparar-se com a piora de quem já recebeu de nossa parte os maiores votos de boa companhia.
Sobre o assunto, seu último pensar foi o de que quando certas coisas ficam distantes, em alguns casos, é melhor deixá-las intocáveis, para não saborear o amargo da decepção e nem malversar as lembranças de um passado, mesmo que não seja lá tão distante assim.
Mirou em frente, havia a enseada de Botafogo. Não sorriu. Admirou.
Seguiu em frente, como toda vida. Sem espaço para petulância.
Paulo Roberto Andel, 24/12/2006

Memória

Certa brisa tenra acaricia meu rosto nos arredores da pedra do Leme
Minha vista namora um horizonte, encontro de dois azuis cativantes
Ao fundo, eu procuro o que vem por depois, o paradigma, infinito
Não é fácil enxergá-lo, saber ao certo o que de lá se pode esperar
Enquanto o futuro não vem, um garotinho senta-se à minha vizinhança
Trazendo biscoito de polvilho numa das mãos, mate gelado noutra
Branquinho, de sorriso inconteste, tem no chapéu que usa um peixe
Não sei bem qual a razão, imagino-o que seja como fui por um dia
Um rompante, um triz, um pequeno caco do que parece ser vida
Talvez uma história sem fim de muito, mas muito tempo que se foi.


Paulo Roberto Andel, 24/12/2006

Friday, December 22, 2006

Alessandra

Eu sou pobre, louco, para descrever o encanto
Que teu alvo sorriso fez viver meu coração
Ainda me lembro da tua voz em frases eternas
Incapazes de enjoar ou cansar, cativantes
Jamais igualadas por outras autoras, muitas
Eu não tenho vocabulário que possa descrever
A alegria que um dia brotastes em mim
Por isso, ofereço-te meu canto, minha fala
Meu pensamento solitário que te busca nas regiões
E faz de ti a minha melhor companhia escondida
Pois moras onde ninguém vê com clareza
E ninguém escuta as melhores palavras que te dou


Paulo Roberto Andel, 20/12/2006

Retrato do artista quando morto-vivo

Olhei para um pequeno espelho de casa
Parecia-me um homem velho, fatigado à vista
Com vincos profundos de tempo no rosto
E mãos de veias sobressaltadas, púrpuras
Na esguelha, um terno pendurado na cadeira
Uma fagulha de janela, noite ilustrada
O homem fitava a si mesmo, lentamente
Como que sorvesse cada segundo da vida
E podia até parecer canção da despedida
Com a firmeza dos inabaláveis olhos pretos
Talvez tentasse atravessar o brilho do vidro
Para recuperar sua mocidade, sua infância
Dos tempos da praça do Lido, liberta
Ou, mais ainda, do jogo de bola na vila
Houve um rompante inimaginável, subitamente
E toda verdade de dor e morte teve fim
Olhei novamente e não havia um ancião
Nem mãos machucadas, nem rugas delatoras
Era uma singela alucinação da melancolia
Ao contrário da minha vã certeza
O espelho era todo reflexo de mentira
Doce mentira que livrou-me do mal
Ainda assim eu não digo amém
Pois morto, vivi dois mil anos a mais
Sem morte, sem dores ou maiores dramas
Sem buscar a tristeza da face num retrato qualquer


Paulo Roberto Andel, 22/12/2006

Natale

Quando chega o fim dos dias de um ano, tudo pela contagem que um dia estabelecemos, nas grandes metrópoles tudo fica diferente.
As pessoas muito preocupadas com o Natal, a festa do Ano Novo, a roupa branca, os presentes da moda.
Tive um Natal muito triste em minha vida quando era criança. O seguinte foi bom, um dos únicos. Ganhei Polly, brinquedo de armar. Notícias davam conta da morte de Charles Chaplin. Todo mundo dizia que tratava-se de um gênio; eu não tinha dez anos e, graças ao bom tempo, consegui ratificar a voz popular. Chaplin morreu velhinho, viveu bem, fez muita coisa boa, muita gente sorrir, uns poucos ficaram vermelhos de raiva. Dia desses foi o Barbera. Eu não acredito em céu, mas em caso de meu erro, muito o merece: só pensar no Barney, Zé Colméia, Scoody e tantos outros para saber o quanto esse sujeito fez de criança feliz no mundo.
Natal, a princípio festa cristã, abraçada por todas as causas, mas parcialmente. Falam de solidariedade, de cumplicidade, de amor ao próximo, mas eu só vejo isso por uns cinco minutos. Passa o ano, os mendigos continuam dormindo entre os ratos, as crianças chorando pela miséria e a injustiça por todo canto. Há uns quinze anos atrás, fingiram acabar com o comunismo e estabeleceram uma nova ordem capitalista - vejam o que está pelas ruas do planeta.
Falta solidariedade. Amor ao próximo. Respeito. Isso independe de religião, menos ainda dos presentes comprados após estafantes filas nos centros comerciais. Não importa a roupa branca.
A vida é todo dia, até que se esgote, encerre.
Pessoas têm fome todos os dias. Precisam de casa, comida e saúde todos os dias, um teto também.
O que fazemos em relação a isso? Damos nosso real de esmola, que é importante mas pouco? Atravessamos a rua para não encarar o produto de nossa ganância consumista? Levantamos a cabeça para não enxergarmos as "criaturas repugnantes", quando repugnante mesmo é a nossa indiferença.
A cada dia que passa no mundo, um quarto de toda a comida produzida no planeta é inutilizada, não doada, jogada no lixo absoluto. Enquanto isso, África e América Latina carregam duros fardos da pobreza.
Consertar todo o mundo pode ser uma utopia flagrante, e é. Mas parte dele não é sonho, devaneio, trata-se de apenas resgatar os valores de todos os credos religiosos, mesmo da boa vontade de ateus e agnósticos. Repartir. Ajudar.
O patrão trata o empregado com salário mínimo e ameaça de emprego, pois "tem gente para aquele lugar".
O sujeito paga impostos e acha que o poder público é também seu empregado, basta pagar e exigir serviço, sem participar de nada.
O funcionário público quer trabalhar pouco.
O estudante acha que "colar" é melhor do que aprender e vai arrastando-se.
Esses, e todo mundo junto, vêem o pedinte esmolar na rua e balançam a cabeça, como que dizendo ser uma mazela impossível de se corrigir. Nada disso. Falta vontade. Vontade mesmo.
O mundo que defende Bush, o Clube de Paris e os juros brasileiros não pode mesmo ser digno de boas festas.
Em janeiro, começa tudo de novo. Porque, na verdade, nunca terminou.
Paulo Roberto Andel, 22/12/2006

A última canção

Não te espantes com o fim das luzes, dos dias
Somos todos repletos de silêncio nos espaços
Até o dia em que este mesmo calado é maior
E sobrepuja todo e qualquer milhar de palavras
Exatamente feito agora
É o silêncio que te serve de voz ao pé do ouvido
Adornado pelo brinco de argola olímpica, prata
É o silêncio que será teu mar de mim
Lembre-se por sempres daquela velha canção
Pois será minha última tua, nunca mais outra vez
Não atravessei doze mares dos Açores à toa
Menos ainda abandonei os poemas do Atlântico
Por conta de qualquer disparate barato
Fiz por convicção dedicada e duradoura, sofrida
Não chegastes aos pés de Copacabana ou Tatiana
Não fostes dourada feito os cachos de Luciene
Todas passaram, deixaram terra pelo mar bravio
Mas guardaram em mim sementes de doçura
Que trazem frutos e flores, de carinho e lembrança
Enquanto tu fizestes questão de rasgar teus versos
A ti, só cabe o silêncio dos memoriais e féretros
O silêncio de última estrofe da tua derradeira canção


Paulo Roberto Andel, 21 de dezembro de 2006

Wednesday, December 13, 2006

Coisas e pessoas

As coisas passam, quase tudo passa
Feito a folha que desaba no outono
E dissolve-se, falece, vira combustível doutras folhas
Muitas coisas passam
Como o nublado da tarde vadia na ponta do Leme
Vem chuva, vai-se, um novo sol toma assento na poltrona do céu
As coisas passam como as dores de amores, os choros
A derrota do amado time, a segunda época da turma
As coisas transigem por mais que nós, soberbos homens,
Insistamos na surda guerra da intransigência
As coisas passam em todos os lugares
Todos os casos e modas, todas as prosas
Exceto num único e modesto lugar, casa forte
Que trazemos todo instante a tiracolo, involuntário
Delicadamente batizado de lembrança
Nela, coisas passam; pessoas não.


Paulo Roberto Andel, 14/12/2006

Tuesday, December 05, 2006

Buena ación

Ontem, voltando na madrugada pelo Botafogo, recordei momentos de muito significado da minha juventude. Tem mais de vinte anos. Tempos de calouro.
Eu era estudante da faculdade de estatística de Niterói. Não eram tempos bons. Meu pai, num dos seus últimos suspiros profissionais, buscou emprego em São Paulo, de modo que vinha raramente ao Rio, e isso era bom mas também muito mau. Estava atormentado com o inferno que era saber ou não estar livre do quartel. Pouco dinheiro, muitos problemas, não me adaptava bem ao ensino superior: muita gente mais velha do que eu, sofria muitos preconceitos, sem contar que uma preferida dos marmanjões resolveu cobiçar-me. Rotina era diária: acordar, estudar, procurar um emprego que jamais viria enquanto não tivesse o maldito certificado de dispensa de incorporação, nome que, por si somente, já define a aporrinhola que o cerca. Tarde era preparar um lanche, guardá-lo na mochila e seguir para as barcas: um ônibus qualquer para a praça XV, depois atravessar a baía e saltar em frente à avenida Amaral Peixoto, para depois descê-la até o final. Era tudo muito escuro ao fim da trilha.
Uma lembrança foi do Andorinha. Era um prédio veterano da Almirante Barroso. Servia para o funcionalismo público; pegou fogo numa tarde. Um engarrafamento danado, saltei do coletivo na entrada da rua México, percebendo que havia uma grande confusão. Quando cheguei à esquina do prédio, mal deu tempo de evitar: alguém suicidou, pulando por uma das janelas. Aterrorizado, desisti da aula e voltei para Copacabana. Foi o noticiário do dia em todos telejornais. Focaram numa janela esfumaçada, era possível ver o braço de alguém, pedindo socorro com muita fraqueza, já debilitado; de reprente, o braço abaixou e desapareceu da vista. Era a morte. Para as pessoas que têm uma gota de amor no coração, é muito difícil de ver aquelas cenas sem alimentar tristeza e dor. Houve um herói: chava-se Eugênio, não esqueço. Tirou seis ou sete pessoas das chamas, voltou para buscar mais uma, não conseguiu e entregou a vida. Salvo familiares, ninguém lembra mais. Somos assim, lamentavelmente. O para sempre é por duas semanas, três talvez. Nem para todos, ainda bem.
Durante meses, tive a imagem da morte em meu caminho, até porque de segunda a sexta era preciso passar nas imediações dos escombros do prédio, donde vinham pensamentos ininterruptos sobre a tragédia. Meses. Piorava quando tinha de voltar de Niterói na barca: um silêncio, um negrume, uma solidão e saber que a antiga vista do Andorinha ficava na mira de chegada. Felizmente, não era comum - retorno padrão era tomar o 996, com modelo de Mercedes-Benz dos anos sessenta, primeiramente pintado todo de azul, depois branco com um friso vermelho e outro celeste. O letreiro era GÁVEA, assim mesmo, letras garrafais. Bonito e veloz descer a Ponte com firmeza, depois vinha um caminho que eu tinha pouca afeição, a deserta zona portuária, depois Santo Cristo, mas o ônibus raramente parava ali - geralmente, só descia público já em Laranjeiras. Eu tinha três caminhos: saltava frente as Sears, tomando alguma condução que fosse para Copacabana via rua da Passagem; ao perceber que, na cola do 996, vinha algum 434 ou 35, descia toda a São Clemente e tentava a baldeação imediata no primeiro ponto possível; por último, não havendo caixa disponível, descer Real Grandeza toda, passar pelo cemitério (grrrrr!), atravessar o túnel e encontrar Siqueira Campos, alguns amigos no bar Sniff que está por lá até hoje.
Houve uma noite. Uma senhora bem velhinha com uma trouxona de roupa pediu minha ajuda, no mesmo velho ponto da Sears. Não era mendiga, nem pedinte. Velhinha, velhinha, de pele maltratada, negra, balbuciava. Estava à procura de seu neto, que trabalhava em algum órgão público do bairro...mau sinal. Como ajudar naquela hora da noite? Deveria tudo estar fechado. Eu só tinha o dinheiro da passagem de ônibus, mais nada. Pedi-lhe pequeno tempo, bolei um plano do Cebolinha: chamar um motorista de táxi para colaborar. Fiz sinal, parou um rapaz, expliquei a situação de que uma carona era urgente, para local incerto. Não é que o moço topou?
Colocamos a grande trouxa de roupas no porta-malas, descemos São Clemente. Ela balbuciava com dificuldade, de modo que não conseguíamos ao certo entender o que dizia. Parecia vir de longe, e muito estranhei que estivesse sozinha. Longe e sem dinheiro. Desamparo.
Um estalo do motorista fez pensar que o local procurado fosse o arquivo que funcionava na praia de Botafogo, o que exigia retorno. Comentamos, ela sorriu, inconclusa. Fizemos a tentativa.
Na mosca.
Quando nos identificamos com o vigia de plantão, ela conseguiu falar "Naldo". O funcionário chamou o colega de turno, o próprio. Entregamos a ele a trouxa, ela entrou a passos curtos, curtíssimos, lentos, enquanto o moço vinha na contramão distante. Ainda consegui ver pela fresta da porta não fechada o abraço de avó e neto, muito bonito. Eu não tive avô nem avó para me abraçar, só a Tia Maria de São Paulo, umas duas vezes.
Não falei com Naldo, nem o motorista. Ele entrou no carro e ofereceu-me carona, mas fiquei encabulado por já ter abusado de sua ajuda e, inclusive, ter desviado seu serviço. Agradeci em muito, falei-lhe até de um Deus no qual eu, ingênuo, acreditava à época. Não lembro de seu nome. Foi embora, parecia com semblante de dever cumprido.
A velhinha entregue sã e salva, o motorista seguiu seu rumo. Restava eu, como sempre sozinho no fim da missão.
Pensei num lanche, mas só tinha o dinheiro da passagem. Tinha que optar. Passei na padaria, ainda aberta depois das onze da noite, comprei um picolé de limão. Naquele dia, decidi ir a pé até em casa, saboreando a compra gelada, o ocorrido e talvez o fato de que havia libertado-me, naquela noite, das imagens do prédio em chamas, ao menos fixamente falando. Ajudei alguém a ser feliz por um instante, e isso me fez apagar o incêndio da memória, baixou intensidade.
São Clemente, Real Grandeza e Siqueira Campos. Em tempos que nada dava certo para mim, aquela foi uma noite feliz, de alívio. Nem parei no bar: corri para casa contar à mãe, senti-me orgulhoso de ajudar alguém e de ter dado certo, mesmo que minha participação fosse mínima.
Muitos anos depois, muitas outras razões depois, vi-me tomado em caminhar atravessando Botafogo a pé de novo. As vacas estão magras, mas dinheiro para o táxi há. Tudo parecia ter voltado ontem: um momento em que nada dá certo, que tudo parece perdido mas que, por um instante, um ponto, as coisas parecem oferecer uma réstia de felicidade.
Desci Humaitá até a praia, até o velho depósito que lá está. No caminho, eu pensava nas coisas: não há mais velhinha, nem o motorista amigo, nem Naldo nem o trauma de pensar permanentemente nos mortos do Andorinha. Todos mortos, tudo muito morto. Menos dentro de mim, de minha memória juvenil.
Frente ao depósito, ri. Tal como ontem, efemeramente, lembrei de um instante em que me senti muito feliz, enquanto a lua trazia um sorriso indestrutível antigo, muito antigo. Sorri. Um pouco mais, até.
Atravessei pista, tomei táxi, voltei para casa.
Certas coisas nunca mudam.
Outras, para sempre. Sempre. Advérbio de tempo, sempre, feito ensinamento de Tia Acy.
Paulo Roberto Andel, 05/12/2006

Serenata de amor

noite de azul profundo, madrugada minha
flanando aos poucos numa alameda solitária
com garbo de valente voluntário da pátria
soldadinho de chumbo da minha infância
parei a passada, dediquei olhar ao vasto céu
e namorei a lua, tão solitária lua
formosa e cheia, voluptuosa
fazia da névoa seu baby doll rosado
era fugitiva, sem um motivo certo
solitária, sem estrelas a cortejá-la
trouxe-me um inexplicável sorriso
cativante, indestrutível
que há muito eu não via, desde o longe
mas que sempre morou dentro de mim


Paulo Roberto Andel, 05/12/2006

Monday, December 04, 2006

Copacabana, rosa

Ponho meus pés na beira do mar de Copacabana
Bem em frente a uma certa rua onde muito morei
Faço-me me rosa dos ventos, lembrando infância
Dos tempos idos de corrida de chapinhas n'areia
Ao sul, duas avenidas monumentais, abarrotadas
Com seus carros e gentes, veias abertas e morte
Oeste, meu Leme de Vera, Simone, tarde lunar
Silêncio e solidão, picolé na mão, volta para casa
O leste traz-me beleza, Tatiana, jogo de peteca
Madrugadas negras no perdido sentido no Forte
E meu norte, onde mora meu norte, minha direção?
Mistura-se fundo a nordeste e noroeste, celeste
Minha vista juvenil enxerga n'orizonte o fim da linha
Ao longe, quando céu e mar passam a ser um só?
Onde é que a terra termina? A vida termina? Será?
Quem é que mora agora depois do pôr do sol?


Paulo Roberto Andel, 04/12/2006

Sobre renúncias

raro é o que sugere-me mais beleza do que a renúncia
a capacidade de abrir mão, entender todas diferenças
reparar o mais belo pássaro mortalmente engaiolado
é saber que seu lugar está nos verdes, nos céus, longe
justo é deixá-lo partir, viver, cantar em dias incertos
beber água doce duma janelinha generosa qualquer
tenho vivido muitos anos praticando muita renúncia
abrindo portinholas aos pássaros que me cercavam
felicidade não é bem o termo adequado a tais casos
certo é chamá-los de alívios, calmas, ou quase paz.


Paulo Roberto Andel, 04/12/2006

Friday, December 01, 2006

Auto-flagelo

eu, terrorista de mim mesmo, delinquente
sou refugiado em meu leito solitário, pacato
e tenho uma bomba-relógio ardente no peito
com data de validade para explodir ou falhar

minha cabeça de negro é bomba atômica
panamericana, arrasadora, amor devastação
nela, implodo os mais irremediáveis sonhos
embebidos em certos amores menos sinceros
dela, extraio combustível para ser bom enganador
dos todos que apostam fé na minha capacidade
louros da inteligência que nada muda no mundo
que não faz tostões, nem oferece preces, amém
tampouco é capaz de odiar alguém, no entanto

sou eu, meu próprio sequestrador, impune jovem
no cativeiro turvo que abençoa minh'alma nata
sem planos de resgate, abraços de finais felizes
tão pobre de mim, de ti, de quem à vera viver


Paulo Roberto Andel, 01/12/2006

Tuesday, November 28, 2006

Oferenda

Para ti, tão somente em ti
Que busca em minhas palavras
O significado do amor
Te ofereço mais do que um punhado
A paixão de um cinza Guanabara
Num retrato em branco e preto
Sem hora de término ou chegada
Luzente estrela da madrugada
Desimporta o valor que não te deram
Pois sei que não tens preço
Adiante, me despeço num quando
Breve pausa, então retorno pelo hoje
Por tua boca, teus cabelos, teus anseios
Teu corpo delgado que faz vista de cobiça
Dos que te apenas desejam na pele
Mas não passam de amadores do tom
Feito sambas malfeitos de mau compasso
E são incapazes de namorar teu coração
Feito eu, somente eu, teu, semente em mim



Paulo Roberto Andel, 28/11/2006

Monday, November 27, 2006

Fim de noite no arraial

Quando eu estiver adormecido lá no arraial
Não me chamem, tampouco provoquem
Sorverei a noite eterna em nascedouro firme
Descendo cursos longos do rio a desaguar
Descobrirei todas trilhas da praia pequena
Até encontrar a moça da voz suave, cristã
Em sonho, trazê-la de barco para os anjos
Dar-lhe mão direita, percorrer ruas de pedra
Encostar-lhe no muro de certa casa vazia
E beijar-lhe como nunca, até o nunca mais
Afagar os longos cabelos de ouro negro
Abraçar o corpo de lisa pele, provocante
Ouvir respiração, pulsação, batimentos
Integrar-me nela tão feito um ser somente
Onde mora minha noite de lua na tal praia?
Mulher amada, distante, realidade em sonho


Paulo Roberto Andel, 27/11/2006

Friday, November 24, 2006

Um abraço de mulher

Ontem, houve uma mesa de bar.

Éramos eu e dois amigos, poetas. O estabelecimento era o do recente sempre, ou seja, que temos frequentado nas últimas noites desta primavera sem flores. Dentre algumas coincidências que temos em nossas trajetórias, uma delas foi a de, em épocas diferentes, termos sido escoteiros, o que acabou sendo tema dominante durante a estadia na taberna. Conversa boa, rigorosamente simples, sem iguarias sofisticadas que a casa não pode oferecer. Apenas a cerveja gelada e a prosa.
Entre as recordações do escotismo, perto de um ou outro comentário cotidiano, eis que um artista subitamente surgiu e ofereceu-nos uma caricatura do trio. Aceitamos, pagamos menos que o justo, mais do que poderíamos em tese. Bom sujeito, o artista; voz de locutor, pintor, desenhista, homem de pluralidade intelectual visível. Merece ser revisto. Tempos depois, foi para o balcão conversar com a proprietária da casa.
Quando falávamos, eu e os poetas recordávamos de acontecimentos da tenra adolescência: escoteiros basicamente acampam e é justamente este tipo de evento, o acampamento, que serve de roteiro para as melhores histórias, nem todas publicáveis. Ora, um sujeito que quase toma tiros sem querer; ora, o nem tão amistoso encontro com cobras venenosas na mata. Uma ou outra menina linda que tenha pertencido ao belo movimento que, se teve lá seus problemas devido à natureza em que foi concebido, para mim serviu como grande lição de vida, que comigo trago permanentemente. Lideranças curiosas, dificuldades, fome, muitos risos; diz o escotismo que os de sua estirpe sorriem nas dificuldades - lembro sempre disso como um dos maiores desafios da humanidade. Aprendi outras coisas também e tento vivenciá-las ao máximo: não apenas ser bom, mas também fazer o bem; não esperar gratidão; tomar iniciativas em determinados casos; praticar honestidade. Creio que, se tivesse violado com firmeza algum destes itens, talvez eu estivesse "melhor de vida", como se diz popularmente. Não lamento, melhor assim: recordo Darcy Ribeiro em um grande discurso, algo como "detestaria estar no lugar de quem me derrotou". Verdade.
Algumas garrafas foram esvaziadas. Acampamentos em voga ainda, voltei no tempo em exatos vinte e um anos.
Escoteiros organizam acampamentos com suas gentes de todo um Estado, ou mesmo Estados nacionais. No caso federativo nosso, brasileiro, a reunião nacional tem o nome de Ajuri, termo indígena que significa agrupamento, reunião. Fui num desses, era 1985, outro Rio de Janeiro, outro Brasil, outro São Paulo. Foram dez dias em Cotia, cidade anexa à capital paulista. Não sei explicar ao certo, mas o momento em que sinto-me quase paulistano é quando, na Dutra, avisto o velho estádio do Canindé à esquerda e, pelo noroeste, um sem-par de arranha-céus com a tradicional nuvem cinza fazendo vezes de cobertor da cidade. Tive essa imagem muitas e muitas vezes, mas a daquela vez, indo para Cotia, foi especial. Era a primeira vez em minha vida que eu saía do Rio de Janeiro.
O Ajuri era um mundão. Exércitos de gentes; poderiam parecer estranhos, mas não - quase todos cumprimentavam uns aos outros. As meninas, principalmente. Ganhavam sempre elogios bons dos maduros homens cuja faixa etária estava compreendida entre quatorze e dezessete anos. Os grupos misturavam-se; fiquei com os amigos do Monteiro Lobato, turma da Tijuca, amigo nosso de lá exagerou um pouco no cognac, foi temporariamente hospitalizado. Escoteiros também infringem regras. Dia seguinte? Mil maravilhas.
Banho era algo difícil por no Ajuri, embora absolutamente necessário como em qualquer outro logradouro. Água gélida com temperatura ambiente perto dos cinco graus. De toda forma, sempre valia a pena. Comida, era honesta, em qualquer horário. Justa.
Num dos dias, a escoteirada teve um dia de trabalho voluntário pela cidade. Dez mil rapazes e moças, ajudando a turma pelos arredores. Nunca mais vivi nada parecido, perto da unha só quando trabalhei como voluntário - e escoteiro ainda - no tempo das enchentes do Rio de Janeiro, creio que 1988. Falando de Cotia, fui escalado para trabalhar num orfanato, o primeiro em que entrei na vida também. Vida de escoteiro é cheia de primeiras vezes. Para mim, ainda é muito fácil relembrar aqueles momentos: a alegria que as crianças estamparam nos rostos quando chegamos, as brincadeiras, os jogos, os presentes que a eles demos mediante arrecadação prévia. Na hora do almoço, tenho certeza de que a comida não era das melhores; afinal, passei anos e anos cultivando o paladar com a ultra-baixíssima gastronomia. Olhei para os lados. Estavam todos felizes. Ignorei a qualidade do prato, voei baixo, senti-me felicíssimo também e foi muito bom. Houve um momento triste, sim: um rapaz, magriço e negro, por perto dos seus dezoito anos, soluçara para alguns de nós, contando que estava no fim da linha no abrigo; feito aniversário, teria que deixar o orfanato. Não tinha o rosto entristecido; entretanto, os olhos, sim, olhos que até hoje me fazem chorar. Alguém o abraçou. Éramos todos garotos, outra cidade, outro país. Ninguém pensou numa solução, mesmo que remediadora. Confortei-me quase ao fim do dia, quando passei pelo berçário antes de me despedir: três ou quatro bebês dormiam tranquilos, serenos, sem imaginarem o que seria vida pela frente. Deixei-me tomar pela paz.
A despedida do Ajuri foi num domingo ensolarado. Creio que por volta de duas horas da tarde. Foi muito bonito ver aquele batalhão de jovens como eu, correndo pelos campos, rindo, chorando, confraternizando.
A dez minutos da saída do ônibus que traria nossa turma de volta para a Guanabara, experimentei um dos momentos ímpares de minha vida. Dado fim da festa, milhares e escoteiros procuravam uns aos outros para trocares seus lenços de pescoço, gesto de fidalguia comum em efemérides como aquela. Eu caminhei metros e metros com o meu, amarelo, na mão; estranhamente, apesar do gesto, não se configurava minha intenção de procurar alguém para fazer a troca, talvez por que eu estivesse um pouco chateado com o fim do acampamento, um gosto de quero mais, saudade mesmo só tinha de minha mãe. Poucos passos antes de chegar ao ônibus, uma menina puxou meu braço e pediu para trocar os lenços. Parei. Vejo ainda seus cabelos negros, brilhantes a tocar os ombros, muito lisos; vejo os olhos verdes, mais brilhantes ainda, dois riachos d'água doce; vejo a pele, de uma brancura européia, sardenta, que só revivi posteriormente ao fitar minha amiga Luciene Magnani. Uma bonequinha. Era do Paraná.
Quase não usamos palavras: disse-lhe um sim, ela sorriu; entregamos lenços um ao outro, agradeceu-me. Quando veio o tradicional silêncio na conversa entre duas pessoas que não se conheciam, ela puxou-me para um abraço. Corei. Calei. Encostou a cabeça em meu peito e lá ficou. Um minuto, contei imaginariamente. Perto de nós, outros amigos meus viam e ficavam de boca aberta: era provável que fosse a menina mais bonita a cinco quilômetros de distância em qualquer raio. Éramos cercados de silêncio, de compaixão. Acho que muitos ficaram esperando um beijo que não aconteceu, que jamais aconteceu. Minuto finado, sorriu para mim, deu as costas, partiu para o infinito. Não eram tempos de hoje, tempos de e-mail e telemóvel, nada. Perdi seu nome. Seu contato. Ficou apenas a beleza do momento. Eterno.
Parei de sonhar, falei baixo, os poetas riram.
A última cena era da menina linda, sem dúvida. Ocorre, contudo, que não era a única, a beleza da mulher somente. Era a beleza do gesto, infalível. Era a beleza do amor. O amor que morava nos olhos de riacho, nos cabelos de grafite, mas também nos folguedos da petizada e no soluçar do amigo do orfanato. O amor nos abraços, nas trocas de lenços, na viagem, nas noites de campo.
Mais à frente, o artista que nos caricaturou despedia-se.
Os poetas se abraçaram, hora de ir embora. Conversa nostálgica, cogitou-se até um novo acampamento de brincadeira, reviver os grandes anos d'outrora. Despedimo-nos por ali.
Em instantes, adentrei casa. Vi a linda mãe, o irmão. Era tudo calmaria. Banho, comida, noticiário, deitei-me. Meu teto parecia solo lunar, mar da tranquilidade, onde eu bem gostaria de pisar sem voar. Um pontinho minúsculo dele trouxe-me outra vez o doce, o melhor prazer daquele abraço de mulher, de um minuto que, daquele jeito, nunca mais experimentei. Eu, que tantos abraços ganhei, que tantas vezes tentei, daquele nunca mais me esqueci. Um abraço que não tem nome, nem endereço.
Apenas monumento de amor que invade-me sempre.
Quase adormeci.
Paulo Roberto Andel, 24/11/2006

Thursday, November 23, 2006

Da brevidade

passo e reparo, paro e penso

vejo a avenida cheia de gentes, desencantos, desacatos

são dias de guerra sem paz, confronto, morte fugaz

quando vem a próxima esquina, o tempo assalta-me

somos batalhões de estranhos, agressivos, quase inúteis?

sim

por conta de uma vida breve, rasa, inútil paisagem da canção



Paulo Roberto Andel, 23/11/2006

Infeliz ano velho

Por agora, somos apenas nós dois
Eu e tu, nosso aguardado confronto
Tenho mais tempo, ao teu contrário
Não cabe a ti mais o velho poder
É tua vida que escorre feito areia
Duma ampulheta revirada na estante
Batalhas foram tuas, guerra é minha
Agistes como o pior dos carrascos
Dei-te esperança, dor foi meu troco
Pavor, morte, desilusão e lágrimas
Mas nada, nada rompe a eternidade
Lembre de minha mão a ti estendida
Agradecida com soco no estômago
Hoje, meu vômito é cada palavra
Enquanto respiras ofegante, difícil
Roubastes meu encanto d'alegria
Fostes silêncio em minha mansa voz
Porém, vida é sentença de mudança
Teus últimos momentos são duros
Enquanto deleito-me, redivivo em luz
A última porta aguarda-te com vigor
Quando saístes, bata com toda força
De modo que a maçaneta emperre só
Não me aniquilastes, foi tua derrota
O infinito te espera com sarcasmo são
E agora vejo o quanto eras fraqueza
Tua ilusão foi achar-me fraco, frágil
Dos escombros, renasço gigantesco
Teu lugar terá mais digna ocupação
Do novo ano, sou conselheiro e tutor
Humilhar-me e atingir-me cruelmente
Agora é muco em teu rosto no caixão


Paulo Roberto Andel, 23/11/2006

Tuesday, November 21, 2006

Nosotros

Somos nós, pela tarde ligeira, singelos nus
Um disco d'outrora toca uma bela canção
E tem vento firme prenunciando a chuva
Vejamos o teto, com rugas de piso lunar
O telefone? Ah, que rigue até madrugada
Deitados, somos nosso próprio feriado
Somos dia de rara paz no planeta dor
Por vezes, vejo-te calma, já repousada
E cogito afagar teu rosto com mão leve
Miro baixo, teu colo, teus seios, âmbar
Tudo faz silêncio, exceto a imaginação
Nela, eu cruzo quaisquer praias do forte
Desertas, observadas pela velha cúpula
Não há mais tiros, nem guerra ou paz
Teu sono manso sequer me desconfia
Dos oito mil dias que permaneces linda

Louca, linda, quente, marinha, tímida



Paulo Roberto Andel, 21/11/2006

Thursday, November 16, 2006

E la nave va

Vazio d'alma, tão desamor
Que deságua em turvo mar
Deitado com manto do céu
Num preto que brilha a mil
É perder todos os sentidos
Desmaiar, desfalecer ao léu
Sem o êxtase voraz da morte
Menos ainda deleite de sexo
Vazio d'alma é vácuo da vida
Contida em reles conta-gotas,
Abarrotada de meticulosidades
Mas perdida feito um sozinho
Que investiga as multidões e ri
Aplaude, brada, escandaliza
Para depois cair em silêncio
O silêncio que não é de calma
Silêncio de perda, de ausência
Pouco importando a mulher
Que lhe escorteia solenemente
É tudo vazio, escasso, fugaz

Alma negra, esparsa, vadia

Vazia


Paulo Roberto Andel, 16/11/2006

Monday, November 13, 2006

Bagdad Café

Eu e meu café discreto
Quase adoçado, firme
Quente feito um alívio
Na porta do Miramar

Somos companheiros
Reparando um dia
A tarde prata
Cinza de opaco
Que deixa recolhidos
Certos contribuintes
Justos beneficiários
De incentivos fiscais

São menos carros
Pouca gente n'orla
Um jeito de inverno
Cabe humanização?

Sem exageros, penso

Existem locais lotados
Mesmo sob a garoa
Marquises ou sinais
Esquinas, portas de banco
Praças sem grades
São cidades ao léu
Com famintos habitantes
A morar nas ruas sem nome
Nas casas sem paredes
Ou números

Era para ter sol de verão
Talvez nuvens de outono
Mas parece cor de inferno
Céu de Araras, Inferno Maré
Palafitas hoje são outras
Na imensidão, desproporção

Feito se coubesse num só lugar
Vitrines de Nova York
Miséria duma Etiópia
Violência de Bagdad
Por fim, nada me engana
É tudo muito Guanabara




Paulo Roberto Andel, 13/11/2006

Thursday, November 09, 2006

Fênix

Amor, gigante amor
Com vinte voltas em torno do sol
Dois mil companheiros
Vinte parceiros, cinco amigos
Mais três medalhas de bronze
Amor de idas e vindas, muitas
Silêncios e vozes bravias, limpas
Caos e calma num mesmo lugar
Amor que justifica o recolhimento
A própria morte tão inverídica
E transmuta-se, subverte a si somente
Busca outra moradia, outro pantheon
Um novo e discreto grande coração
Pula entre galhos e trilhas, desbrava
Amor que o mar leva, inunda forte
Até que evapora, voa, viaja em mansidão
Carregado pelas brisas indomáveis
Passa mundos e, inesperadamente
Revigora-se com o maior infinito
Bastando a a mais singela palavra
Um ato, um gesto quase impensado
Fala de seu próprio nome, de amor
E torna-se fênix de asas brancas, ligeiras


Paulo Roberto Andel, 09/11/2006

Choro ambulante

Nestes dias de horário de verão, a cronologia artificial dá outros tons às coisas de rua, visões e panoramas diferentes. Seis da tarde não é bem seis, sim cinco. Mais ou menos por aí.
Era eu margeando uma lateral da Praça da República, que também é o Campo de Santa Ana, sem muita pressa de ir à academia de ciências. Sempre gostei de ver, desde criança, os bichos em saudável harmonia. Marreco, pato, cotia, gato, todo mundo junto como deveria ser sempre em nichos humanos - e que sabemos não ser. Parecem todos amigos em nossa visão que insiste em tornar tudo muito humano. Amizade e carinho não seriam bem os termos; agora, que há uma razoável respeitabilidade entre as turmas da natureza, facto é.
Da esquina de Vinte de Abril com Frei Caneca até a rua dos Inválidos, o que não falta é a bicharada satisfeita caminhando pelos verdes de Santana. Melhor quando chega o fim da reta: tem um colégio de infância dentro do parque. Criançada correndo para ver as mães na saída, mais bichos, brinquedos, tudo atenuante para um exaustivo dia de trabalho. Ver alegria de crianças acalma, alivia e alumia.
Exatamente o que eu queria. Mais do que isso, precisava. Calma e alegria, mesmo rasantes.
Pouco depois da metade da lateral percorrida e muitos bichos legais à vista, a mesma que dá frente ao histórico quartel dos bombeiros, tendo já passado o portão que fica sempre lacrado, cheguei a um ponto de ônibus, cheio de gentes, todos na ânsia das conduções, da volta para casa, outros lugares. Um batalhão de estranhos, ninguém conversava. Há quem pegue os mesmos coletivos todos os dias, nos mesmos horários, uns reconhecendo a fisionomia dos outros, mas nada de prosa. Brasileiros. Silêncio de vozes, barulho de motores em arranque, tudo misturado à poeira emergente do chão. Foi quando certa imagem deixou-me estático por segundos.
Um rapaz, apoiado na lata de lixo, chorava compulsivamente. Num dos braços, tinha um carregamento de balas, donde supus ser um ambulante; noutro, base de apoio na caçapa de plástico laranja.
Aproximei-me e perguntei se poderia ajudar em algo. Não perguntaria jamais o porque de estar chorando, coisa que abomino com todas as forças. Quem chora tem motivo na maior parte das vezes, excetuando-se corruptos, bandidos e outros desclassificados. O moço tinha, mas não me disse; falou apenas que era nada não, mas continuava a chorar. Insisti. não deu certo. Manteve-se impassível, não era nada que eu devesse me preocupar, reiterou. Agradeceu, em prantos.
Ao redor, populares fitavam-me quase assustados, mas absolutamente calados, com certa nuvem de repreensão. Manifestações, somente na expressão dos olhos. Senti certa curiosidade: eu não deveria ter abordado um desconhecido que chorava porque ele estava com vestes humildes e eu, nem tanto? Não caberia apartar um transeunte por não saber de quem se tratava?
Segui em frente. Dez passos depois, olhei para trás. O rapaz já se recompusera, nem encostado na lata estava. Continuaria seu martírio de honestidade e venda das balas, imagino. Tudo quase normal, feito o silêncio dos alheios parados no ponto.
Dois marrecos, duas cotias, três lágrimas e um gato depois, chegou a escolinha. Uma patrulhinha de crianças, todas de camiseta laranja, cor igualzinha à daquela lata de lixo, indo e vindo para os braços dos responsáveis. Era fim de expediente. Fim de tarde. Fim de jornada.
Dobrei a esquina. Deixei o Campo de Santa Ana para trás. Hora de ciências.
Dia desses, tem mais patos pelo caminho, mais crianças, mais noites com cara de dia. Mais gente nas ruas, gente de verdade, gente de querer bem.

Menos lágrimas, assim espero.

Paulo Roberto Andel, 09/11/2006

Wednesday, November 01, 2006

Isabel

Louvado seja
O amor sagrado
Que desnuda-se
Com tua aparição

És firme procissão
Ao passo que eu
Humilde servo
Peregrino
Encanto-me, tão menino
Com tua também juventude
Teu discurso que é canto
Para orixás na beira do mar
Teu quebranto enfeitiçante
Amedrontador
Doce, cativante
Perfume de rosa do bouquet
Escarlate
Vem a mim de face tranquila
Delicada feito a suave brisa
Pela tarde da João Caetano
Engana-se tolo que não vê
Quando passas, provocante
E o pensamento, reticente
Viaja por todos os poros de ti

Paulo Roberto Andel, 01/11/2006

Monday, October 30, 2006

Da ausência onipresente

Certas efemérides trazem contas de minha presença
Há os que a ela creditam alguma frágil importância
Contento-me com fidalguia e delicadeza dos alguns
Entretanto, com plena elegância, sei-me discordante
Não é a minha natureza que move moinhos, pazes
Não é o meu testemunho que acaricia ouvidos fiéis
Faço-me notar intensamente é com minha ausência
Meus silêncios que preenchem espaços, alicerces
Quando calo-me e configuro-me de corpo distante
É quando o melhor de mim revela-se no horizonte
A falta de minhas frases e vozes faz cem discursos
Afasto-me e, com isso, ressalto o melhor de mim

Reticente, mudo, sou mais rigoroso dos discursos
O mar de idéias torna-se impecavelmente límpido

Paulo Roberto Andel, 30/10/2006

Friday, October 27, 2006

O fim do fim da linha

Eu comecei caminhada
E não pude mais parar
Persegui mapas mudos
Rabisquei traços, trilhas
Passaram-se mil léguas
Arredores foram longe
Todos os tudos longe
Quando olhei para trás
Era uma estrada, farta
Recheada de percalços
Tive as bolhas nos pés
Sede, suores, cansaço
A fome, senhor, fome
Atacou-me em bandos
Noites de frio, relentos
Dias sem sombra, sóis
Para minha voz, silêncio
Companhia era solidão
Sem importar exércitos
Subitamente, firmei-me
Era o final duma estrada
Encerrada uma jornada
Não esperava medalhas
Cumprimentos, brindes
Nenhum tapa nas costas
Somente missão cumprida
Fiz juramento em palavras
Restou meia volta, volver
Reparei estar equivocado
Veio uma tal nova ordem
Mandaram-me de volta
A estrada cerrava portas
Mas o mundo continuava
Missões, novas missões
Noutros prolongamentos
Peguei papel e prancheta
Risquei novos percursos
O fim da linha parecia lenda
Ledo engano ocasional
Todo fim é mero recomeço
A linha passa longe do fim
Segue solta, desconhecida
Destemida para a eternidade


Paulo Roberto Andel, 27/10/2006

Thursday, October 26, 2006

Trevo das missões

Ásperos chãos, vários
Humildes gentes na ida
Um pouco de verde vil
Tenta ocultar o asfalto
Que leva e traz um país
De um lado, são Paulos
Noutro, descem os rios
Meninos soltam as pipas
Pela inquieta juventude
Entre o cinza carbono
Flanante rumo ao céu
É transporte das massas
Carros quase populares
Têm batuque no trajeto
Biscoito, refresco e bala
Passatempos divertidos
Para atenuar a marmita
Mulata de sandália alta
Passista dez carnaval
Dois recantos da miséria
Um naco de esperança
No mar de avenida viva
Morta, por todos lados
Ao longe, tiro é favela
De perto, tem resenzala
O rádio canta o vulgar
É a pétala desfolhada
Amanhã, Natal é novo
Ano velho, rei morto
Passeatas, procissões
Greves, perdas, rebeliões
Olhos infantis comentam
Vilares, Caxias, Meritis
Pelo Trevo das Missões


Paulo Roberto Andel, 26/10/2006

Wednesday, October 25, 2006

Viveres

Viver desconstrução, constituição

Estar por todos os lados e sentir-se um estrangeiro

Olhar todas as manchetes e pouco lê-las, quase nada


Viver destruição, retificação

Parecer criança no meio duma praia de Copacabana

Escavar a terra com a pequena pá, encher um balde

Areia de levar, jogar de um lado para outro, misturar

Trazer água salgada para azeitar o cimento brinquedo

Com a mão na massa, constatar o nada sedimentado

Ilusão à toa que beira do mar carrega para o sempre


Viver

Modificação, desmistificação

Nada do que era será, tudo o que vier mudará

E meu hoje, orixá?


Paulo Roberto Andel, 25/10/2006

Monday, October 23, 2006

A praia vermelha

Era pequeno pedaço de escombros que habitava-me
Tardio, queria ser presença de um desajustado amor
Poderia ser indesejável morador se a tanto chegasse
Talvez um tento contra se de real importância fosse

Contudo, não era exatamente o caso que atingia-me
Nem a quem deu-me mão macia pela madrugada fria

Parecido mesmo, era com afecção que chama-se acne
Daquelas que não se espreme, apenas põe-se o creme
Deixa-se estar, secar até que o cravo e o pus morram
Sem marcas manchadas, sangue e nem rasgos de pele

Mais do que eu, éramos nós portadores de escombros
Em certo momento, notamos o que era desimportante

Fizemos dos pedaços espinhas, na vizinhança atlântica
Elas ficaram nuas, cruas, sem mais força de incomodar
Tornaram-se cacos pelos quais não apreço não havia
Incapazes do aprazível, atraente ou mesmo desejável

Viajando no coletivo urbano, seriam simples passageiros
Esperando o final do tempo, o fim da linha, breve adeus
Paralela era a lua oclusa entre nuvens parecendo lençóis
E nós, em silêncio, namorando horizonte negro brilhante

Removíamos certos cacos que nunca mais vão retornar
Espinhas que secaram e perderam-se, morreram tão sós
Ao passo em que nós, reticentes, confortáveis na baía
Formávamos juntos o barco de cruzar oceanos bravios

Do choro, restou apenas o prenúncio de nova alegria
Lagrimalegria do poeta Caetano, mais que pertinente
Corações perfeitos do poeta Renato, ali exatamente
O calor da mão macia que aludia ao melhor do amor


Paulo Roberto Andel, 23/10/2006

Tuesday, October 17, 2006

Strani

Certo dia, veio um amigo e falou-me do estranhamento que lhe causo, ora por ser fan do falecido cantor paquistanês Nusrat Fateh Ali Khan, ora por gostar de ir ao Maracanã a jogos de pouco público...onde não necessariamente comemoro os gols de meu time. Estranho. Riu, brincou, mas desvelou algum desconforto com a situação, o que me fez refletir a respeito.
Não foi a primeira vez que isso ocorreu. Amigos, alguns, já mencionaram algo semelhante antes. Uma ou outra namorada, menos afeita às artes e prosas, talvez. Contudo, foi suficiente para que, às vésperas de um sono que não se avizinhava conforme o devido, eu encarasse o teto de branco cinza e poeira lunar. Estranho?
Pode ser.
Nasci no dia do aniversário de minha mãe. Talvez não conte como um legítimo estranhamento, dado que um planejamento poderia viabilizar tal fato (o que, no caso, certamente não ocorreu). Quinze para as quatro da manhã. Coreto mais que alterado.
Assim, para efeitos documentários, meu primeiro estranhamento oficial foi quando aprendi a ler e escrever praticamente sozinho. Meu pai comprava hectares de revistas em quadrinhos, Pato Donald, Mickey, eu lia todas e, em alguma ocasião, tinha à mão lápis e papel. Pronto. De certa forma, como eu mal tinha três anos, ficava difícil discutir tramas de Walt Disney com meus contemporâneos de brincadeira na praça. Tornei-me quase um ermitão neste assunto, letras. Melhor jogar bola com os amigos. Escrever, sempre sozinho.
Um grande momento da minha estranha vida ocorreu em 1974, na Praia Vermelha, aos pés do Atlântico Sul. Houve uma excursão do colégio para a Urca - sim, para uma criança, qualquer deslocamento por mais de dez quadras pode ser considerado uma viagem. Lá chegando, eu lembro bem da professora Diva, nos enfileirando. Não lembro se a estátua de Chopin já existia na calçada. Vi vários sujeitos que depois identifiquei como soldados - para mim, eram iguais aos soldadinhos de acrílico que eu tinha de brinquedo e utilizava para tudo, menos guerras. Outros sujeitos, senhores, com outras roupas bonitas, nos esperavam. Perguntei algo como "Tia Diva, porque a praia se chama Vermelha?" e recebi como resposta uma dúzia de olhos arregalados em minha direção, seguidos de um silêncio sepulcral e o riso amarelo da mestra, que jamais me respondeu ao questionamento. Talvez tenham desconfiado de que eu fosse o mais jovem comunista brasileiro e estava na fila em missão de atentado à ordem nacional. Difícil entender porque incharam as vistas; era 1974, tempo difícil de entender qualquer coisa. Tempos depois, a mesma Tia Diva enviou um relatório ao serviço de orientação educacional; chamaram minha mãe ao colégio. Constava que eu era excessivamente tímido, retraído e com possível dificuldade em matemática - só desconfiei dessa história depois que me acostumei a falar para 500 pessoas em auditório, como presidente de centro acadêmico, e também ter colado grau em estatística mais meio bacharelado em matemática, tudo com letra minúscula. Realmente, julgar o outro é sempre complicado, mesmo que o julgador tenha seus trinta anos e o julgado, uns cinco.
Sosseguei até uns oito anos de idade, quando comecei a ler números do "Pasquim". Adorava palavrões de Ivan Lessa. Meus amigos achavam estranho, claro, que eu contasse piadas sobre o General Figueiredo, recente dito presidente da dita república. Tudo minúsculo.
Os tempos foram passando, eu sempre gostando de aprender coisas diferentes, sem especializações, ouvir falar de um pouquinho de tudo. Veio a moda do shopping, eu ia para o Arpoador. Espalharam-se fliperamas pela cidade, meu negócio era botão, futebol de praia e pingue-pongue. Leo Jaime tocava no rádio; reuníamo-nos na casa de Buja para ouvir Kiss, Genesis, um tal de Guns n' Roses, jogar botão e mau-mau. Todos viajavam para suas casas de campo, entre rocks rurais, e eu enfiado em barracas de lona, mosquiteiro, nos matagais mais próximos ou longínquos, conforme as conveniências.
Escolhi minha carreira em plena fila do vestibular, claro. Não tinha a menor idéia do que era aquilo. Alguém inventa que você, com seus dezesseis, dezessete anos, tem que escolhar algo com que pretende conviver por trinta e cinco - isso, se tudo correr bem com o FGTS. Tasquei a danada da estatística. Quase ninguém sabia do que se tratava, e acho que não sabem até hoje. Por causa da faculdade, acabei conseguindo meu primeiro estágio profissional no garboso hospital psiquiátrico da Venceslau Brás, Doutor Philippe Pinel, o Pinel. Estreei em 1990, junto com Collor na presidência. Eu sei, isso realmente parece muito estranho. Nos intervalos, para testar a veracidade da informação de que a média de pontos de um dado atirado infinitamente é de três e meio, resolvi atirá-lo. Quinhentas vezes. Era aquilo mesmo, teimosia de garoto.
Quando me formei, deu-me um peso danado de consciência. Eu ia embora, meus amigos iam ficam na faculdade. Fiz prova para dois mestrados, passei em um, não tinha bolsa; ri muito. Resolvi ficar mais um ano e meio prorrogando o melhor da vida acadêmica, faculdade matemática, apenas para manter o vínculo diário. Estranheza. Um dia, desisti. Ano depois, ingressei na faculdade de sociologia da federal, tudo minúsculo, e quase que meus amigos me mataram: Estatística e Sociologa, agora maiúsculas, quase saem no tapa todos os dias - migrar de uma para outro significa deixar a Young Flu pela Jovem Fla, trocar Meca pelo Maracanã da fé, ou ainda deixar de ser Fagundes para materializar Léo Áquila, se é que me entendem. Mais grave ainda trocar a velha camisa da UERJ para beijar o brasão na camisa da UFRJ. Durou pouco, mas fiz com fé, sem fé.
Estranho?
Não menos do que gostar de ter ido aos jogos do Fluminense na terceira divisão do campeonato. O Brasil vivia a sede da destruição tricolor e eu, lá, feliz com meu cachorro-quente, torcendo e vibrando com Joel Cavalo e outros não eleitos. Disse antes, melhor com estádio vazio.
Dispensei dois empregos em São Paulo só para não dar intimidade à cidade e ter que viajar de avião, um de meus poucos pavores. Gosto de ir lá por um, dois dias, nada além. Ensinou-me o velho Braga, relatando a história do hóspede e do peixe: ambos, depois de três dias, fedem.
Gosto de Bob Dylan, desde que eu tinha oito anos de idade, não perguntem a razão, eu não tinha sossegado. Houve um tempo em que todo mundo gostava. Hoje, não mais. Chamam-no de fanho e desafinado, eu desconfio que não entendem as letras.
Certa vez, apaixonei-me efemeramente por uma mulher casada. Minha turma toda de bar disse algo bem chalhorda "Deixe de besteiras e dilacere essa mulher!". Eu só pensava em carinho, sexo e amor. Quando contava a alguém, risada era reação. Estranho. E a outra, depois, que não valia um clipe enferrujado? É, acontece, perdemos tempo com coisas e gentes desnecessárias - e isso nem sempre é estranho, sabe-se. Ama-se à toa, apenas para redesenhar o novo amor.
Com as melhores companhias possíveis, senti-me muito sozinho; por vezes, foi muito bom. Mesmo.
Deixei de ir a algumas grandes festas e folguedos, tudo para ficar em casa lendo Graham Greene ou vendo o programa do Abujamra com trilha sonora de Tom Zé. Nenhum arrependimento.
Entre muita coisa séria e convencional, a estranheza morou e mora ali defronte. Parece vizinha, namorada, colega de classe que senta ao lado. Fazer o contrário, o não usual, o inesperado, pois. A tevê diferente, a música diferente, o sanduíche diferente, a prosa diferente, tudo me interessa.
Falando nisso, outro dia conheci uma garota do barulho, feito a velha canção do ministro. Podia dizer de seus bom-gosto, de sua conversa empolgante que dura horas e horas feito amor incessante, de seu notável saber das artes e letras. De seus ótimos piercings. Morena daquelas que inevitalvemente os incautos fitam, mesmo que acompanhada. Um doce. Uma graça, gatona. Veio um rompante, falávamos de ciência, soube que era formada em Estatística!
É ou não é algo para lá da ponta-esquerda de estranho?
Paulo Roberto Andel, 18/10/2006

Para a pequena carioca do Leme

A carioca
Acaricia os olhares
Dos que apreciam
Certa elegante passada
Para fincar terreno
Nas areias copacabanas
Sestrosa
Faceira
Ela estica a toalha e deita
Fabulosa, deslumbrante
Para o banho de sol
Num outubro qualquer
A carioca passa ao largo
De todas mazelas e vícios
Vive em si todas virtudes
Brilha impávida, lívida
Pela tarde clara de mel
Por vezes, é paulistana
Noutras, catarinense
Fluminense, mais que voraz
Reticente, nem tanto veloz

É água do mar que beija-lhe, saborosa

Nua

Crescente

Vez em sempre traz vida
Discreta, mais bonita
Bonita de beleza que desengana

Infinito, perene deleite


Paulo Roberto Andel - 17/10/2006

Friday, October 13, 2006

Um

Quando estou cantando
Dispenso aplausos e bravos
Importam-me somente teus ouvidos
Teu coração e sabor
Toda cor é brilhante
Quando embrulha teu charme, rouge
Até o cinza se agiganta

Ver-te na foto é poema
Teu sorriso, alvo certo
Ipanema
Meu corpo voa cidade
Escreve sambas, trovas
Roça, morde, move-se
Desimporta-se
Não és minha metade
Inteira ainda te quero

Morres a cada dia
Perdida nas flores
De minha delícia, prazer
Luxúria e candura
Assim mesmo
Tudo misturado
Avesso reverso
Submersa paixão

Todo meu sonho mora em ti
Todo meu gozo, dedico-te

Dia todo dia

Amore mio
De tantas épocas
Santa profana
Da minha rasa fé

Há de haver outro canto
E novo bravo aplauso
Quando eles nascerem
Seremos vida na selva
Relva a rolar, perdidos na selva
Entre tremor e torpor
Restará apenas
Nosso estranho amor

Bravo

Bravo

Bravo aplauso
Desejo ocluso
Mais que familiar
Multidões e Brasis
Por um triz, teu nome rima
Cativa-me, torna-me rocha
Enquanto o céu não vem
Moras em cada rosto
Que me acaricia
Podem ser muitos
São poucos perto de um
Perto do fogo que me toma
E basta


Paulo Roberto Andel, 13/10/2006

Corpo

Um corpo doura-se
Na beira da piscina
Encanta muitos olhares
Na ginástica de academia
Sente, corre e pulsa
Na pista da Lagoa
Descansa nu na cama
King Size sem milímetros
Desfalecido após a noite
De verão
De rock and roll music
Um corpo canta
Baila, pula
Sobressai na multidão
Experimenta
Confortável lingerie
Delicia-se ao vestir
Num rompante
Encerra fileiras
Termina o ciclo
Inesperado
Deita e morre
Completa vazio
Na televisão

Paulo Roberto Andel, 13/10/2006

Lágrimas

Elas descem
Caudalosas, fortes
Correm no rosto
E dissipam-se
Nascem, morrem
Muitas vezes
Em todos os dias
De muito tempo atrás
Ninguém as vê
Não vejo ningém
A televisão traz
Notícias populares
O telefone, mudo
As pessoas trancadas
Nos seus quartos
Sem ao menos esperar
A sala de jantar
Ai de mim
As lágrimas são assim


Paulo Roberto Andel, 13/10/2006

Wednesday, October 11, 2006

Aurora da solidão

Solidão é sedento vazio
Opaco d'alma não dedicada

Todos temos uns dias
De famigerado calor
Queremos matar sede
Trucidá-la com rigor
No entanto, com espanto,
Sem água brava devida

Mesmo que a melhor conversa
Esteja ao lado

Ainda que a mulher mais bonita
Avizinhe-se

Há um momento de súbito oco
Mergulho profundamente raso

Fica-se vadio e livre, pipa solta
Sozinha não, solitária é o certo
Lá fora, um Maracanã a berrar
Nada atrai um solitário coração

Nada escuta-se
Ele, o coração, basta-se



Paulo Roberto Andel, 11/10/2006

Piada do copo

Fui copo d'água
Clementino
Esqueceram-me
Namorando filtro
De tanto encherem-me, transbordei
Caí, quase me fraturei
Um vizinho, molhei

Sede, não matei

Fugi aos meus propósitos
Meus objetivos sinceros
Não sei dizer ao certo
O que me tirou caminho

Certeza plena, só uma:
Tempestade em mim não havia
Chuva, apenas



Paulo Roberto Andel, 11/10/2006

Tuesday, October 10, 2006

De nada

O nada paira
Sobre as cabeças
Paradas
Impregnadas
De nada
Cabezas cortadas
Incendiadas
Por um fogo de palha
Maltrapilha
Empilhada
No canto da sala
Defronte vêem
Paulatinamente
Panaméricas
Cabeças frustradas
Interrompidas
Incapacitadas
De sentir ou pulsar
O quase nada
Que não diz nada
Tão obrigado
De nada
Adeus, Guanabara
De nada
O seu inferno
Para nada
Busquei tabuada
Noves fora
Nada


Paulo Roberto Andel, 10/10/2006

Princesinha

Certa vez, eu cruzei a noite de Copabana aos pés
Meu amor distante dava-me suas delicadas mãos
As luzes dos letreiros levavam-nos até Nova York
Misturadas ao barulho dos carros, muitos apinhados
Havia gente aos cântaros, formigueiros nas calçadas
Era véspera de mais um grande feriado adiantado
Eu pensei no caos, no wild side feito por Lou Reed
Onde tudo era quase permitido por ser Copacabana
De repente, pouco importou o pandemônio urbano
O ir e vir dos inúmeros populares bem apressados
E nem mesmo uma fina ameaça de chuva ao léu
Mundo era grande, gigante, resumiu-se completo
Nas palmas suaves das mãos do meu longe amor
Continham todo o calor que eu sempre desejei
Afáveis, adoráveis, firmeza e doçura fascinantes
Quatro mãos, minha dona, linda lua, nua minha
Toda e solamente minha, absoluta compleição
Feito a Copacabana, princesinha que me habita
Ainda que à distância, permanente louco amor


Paulo Roberto Andel, 10/10/2006

Para os pequenos caixeiros viajantes

Os garotos sonham acordados
Trazem suas caixas de madeira
Escovas, flanelas
Latas de graxa
Cruzam as grandes capitas
Com seus pés de chinelos
Curvam-se aos senhores
Feudais
E ganham sobrevida sofrida
Arregalam
Os olhos esperançosos
Sem devidos óculos
Perante a cena da televisão
Na loja de departamentos
Da Rua Uruguaiana
Eles não frequentam shoppings
Também não ouvem Jamie Cullum
Ganham camisetas de candidatos
Suplicam passagem ao trocador
Tudo pelas suas convicções
Tudo para não namorar crime
E a ele morrerem abraçados no fim
Tudo pelas mães, vivas, mortas
Os garotos lutam sem armas
No meio da guerra, sem trincheira
Perto do fogo, plena selva
Fome, frio, miséria a granel
O que pedem é tão pequeno
Querem ser humanos, brasileiros



Paulo Roberto Andel, 09/10/2006

Sunday, October 08, 2006

Resumo

As coisas resumem-se no jeito que as fazemos, como lidamos

É o jeito que determina resultado para tomar de assalto o céu

Também ele, o jeito, conduz aos dissabores infames do inferno

Há uma terceira via, tétrica, para o limbo chamado indiferença

Dessa, não há Deus ou Diabo capazes de salvar um engano

É vazio vago, abismo sem fundo nem resgate, sequer perdão



Paulo Roberto Andel, 08/10/2006

Voando baixo

Alguém me perguntou sobre nunca ter voado na vida
Talvez o medo de enfrentar a majestade do velho céu
Minha resposta, simples, irrisória feito saldo negativo
Falou de meu vôo regularmente feito com a vista livre
Imaginação farta a percorrer todo lugar da terra firme
Flanante pelo infinito quase inatingível, mas desejado
Aconteceu que sempre, sempre fui criatura do litoral
Meus pés são acostumados ao gelado mar salgado
O céu não tem fronteiras, só belas estrelas a reluzir
Gosto de segurança, limites, avaliar possibilidades
Admiro os pássaros humanos, de ferro, ao longe
Fito horizonte, defronte, tão belo e tão dadivoso
E cogito voar o mundo, sim, muitas vezes breves
Mas os pés, meus pés, que roçam pelo Atlântico
Estão bem firmes, junto ao solo, mesmo arenoso
Para chegar à Lua ou ainda aos anéis de Saturno
Imaginário meu, livre, basta, sobra e calha, calmo


Paulo Roberto Andel, 08/10/2006

Tempos modernos

Tiveram-me sempre feito homem de confiança
Era justo e verdadeiro, correção era meu lema

Um dia, traíram a mim e minha pátria, sem dó
Uma, duas, treze, zil vezes do poeta Caetano

Mudar é importante, saber mudar, modificar
Tolo que nunca fui, aprendi sem esquecer fé

Mandaram-me cuidar do relicário, intacto
Espatifei o cenário, dinamitei todo cristal

Baguncei o coreto, desfiz as malas prontas
Roupas no canto de chão, anel pelo ralo

Um dia, fiel guardião eu fui, moço de bem

Hoje, quero mais é ver o fogo pegar circo!


Paulo Roberto Andel, 08/10/2006

Namoro de infância

Isabela
Parou na porta de sua casa
Na rua de Santa Clara
Viu-me, sorriu
Veio-me, beijou

O doce namorou meu rosto
Fez da pele seu bel viver

Pus lancheira no chão
Enquanto ônibus não vinha

Era primavera
De muitas estações atrás

Hoje, reparo a calçada

A velha porta descansa
Adormece
Firme de madeira forte

Meu sonho acorda

E agora?

Isabela, onde mora?


Paulo Roberto Andel, 08/10/2006

Saturday, October 07, 2006

Réquiem do grande amor

Deparei-me com teu rosto
Eras diferente, ainda linda
Eras próxima, de corpo
Não vi mais meu amor
Não te vi mais em mim
Pensei chorar

Calei-me

Eras tão viva em meu altar
E fugistes por nada
Aniquiladora brilhante
Confusa, perdida

Rias

Querias mostrar felicidade
Ao passo que teus olhos
Forçavam descanso
Sem paz, no entanto

Ninguém me disse
Comentou
Eu mesmo avistei
Meu amor ficou
Noutra face
Noutra casa

Namorada


Paulo Roberto Andel, 07/10/2006

Museu de grandes novidades

Tudo
Muito
Outro

Novo mundo

Outro
Muito
Novo

Todo mundo

Outro
Novo
Modo

Novo tudo

Outro tudo
Todo novo
Qualquer modo
Coisa mesma


Paulo Roberto Andel, 07/10/2006

Monday, October 02, 2006

Para os 150 desaparecidos

Eles vinham de longe, do monte
E traziam seus pertences
Sonhos e lembranças
Tudo era muito perto do céu
Azul de cobalto ao lado
Verde bandeira esperança ao chão
Terra à vista seria bela, nova
Não fosse algoz de vida
Em plena tarde, estrela cadente
Dor, perda, devastação, morte

Sorte?

Eles vinham do longe
Desceram do céu
Foram ao inferno
Para àquele, céu
Retornarem

Existe paz?



Paulo Roberto Andel, 02/10/2006

Thursday, September 28, 2006

A velha prosa de amor

Já me acostumei com teu bel canto
Ungindo e atiçando meus ouvidos
Limitando toda nobre balbúrdia
Imaculado firme, a meu solo dispor
Até que a doce madrugada cresça
No dourado acalanto entre nós
Ao sereno que refresca penumbra
Lânguida, lasciva e provocante
Imersa no tinto vinho da paixão
Noite, minha melhor e bélica noite
Dai-me para sempre tal conforto
Aos pés divinos do corpo, que dança

Brilhando esperança, ao redor da mudança
Fazendo alvoroço leve, debaixo da calma
Que Lua abriga


Paulo Roberto Andel, 28/09/2006

A canção da serena jovem

Eu queria ser
Literatura
Para te descrever
Com perfeição
Doce, mansa
De nascença
Recompensa
Para os olhos
Paladar de
Ouvidos
Todos sentidos
Talento me falta
E nem precisa
Quem não vê?
Tudo à vista
Teu sorriso
De conquista
Duas mil
Esmeraldas
Bandeira fincada
No monte plano
Estrela Vega
Navegante
Da candura inconteste
Que não sei
Descrever
Basta admirar
Repousar
O cansaço
E ver-te em sonho bom
Com brinde do cálice
Sagrado
Beleza em riste
Que te faz soberana
Tatiana


Paulo Roberto Andel, 28/09/2006

Tuesday, September 26, 2006

Quando éramos três

Toda casa era morada
Namorada sublime
Toda apoteose em praça
Quando éramos três
Fim do Leme, pôr do Seis

Tabernas eram nossas varandas
Cirandas para as marquesas
Asa morena, ala moana
Na Carioca, sempre matinê
Vinis de metal e fúria de titãs

Quando éramos três
Tínhamos juventude sob nossos pés
O charme do mundo, nas mãos
Dálias, margaridas meninas
Afora um túnel claro, sem luz
Nem fim

Quando éramos três
Bastava-nos serra e mar
Serra Costa
Chão de estrelas
Dadivosas
Inconteste beleza
Palavra cantada

Todas as coisas devem passar
Algumas, velozmente
Outras, com muita demora
E agora
Restam as lembranças
Dos melhores dias
De nossas vidas

Quando éramos unos
Indivisíveis
Quando éramos três
De uma só vez


Paulo Roberto Andel, 26/09/2006

Friday, September 22, 2006

Qualquer bobagem

Inventei
De escrever
Um fragmento
Só para fingir
Não ter
Argumento

Adoro ser tolo
Desacredito



Paulo Roberto Andel, 22/09/06

Thursday, September 21, 2006

Las chicas

Para as três meninas
Abraçadas, reunidas
Debruçadas em berço esplêndido
Banhadas no calor de festa
Delicadas como o dedilhar das cordas
Para o melhor rigor dos bandolins

Para as três meninas
Três marias
Dois sorrisos e um beijo são justos
Renascença da primavera
Que hoje estréia
E traz afagos, chamegos
Licores para brindar as flores
Inauguradas, desabrochadas

Para as três meninas,
Todo o vento nevega velas
Mesmo que seja brisa ligeira
Nau nenhuma há de resistir
E partirá
Em busca dos oceanos
Todos os continentes
Voltando apenas
Quando deixar meu coração em paz
A mesma paz que traz calma
Quando beijo a foto com os olhos
Três amores, três gargalhadas
Três meninas, treze tílias, sina.

Paulo Roberto Andel, 21/09/06

Do cristal quebrado

Encontrei um vaso raro de cristal, posto ao chão, quase espatifado
Houve quem lamentasse a queda do artigo por demais valioso, caro
Eu pensei em outra coisa, distante, outro jeito, outras palavras, mais
Reparei nos cacos maiores, lisos, brilhantes mas perdidos, revoltos
Cercados de menores, que emprestavam um batalhão de estranhos
Não havia mais liga, unidade, junção, formosura encantadora n'arca
Tanta beleza trucidada, jogada, descuidadamente fraturada, sem cura
O vaso tinha importância para nosso doce colírio aos olhos, caloroso
Valor vil do dinheiro ali, na cena, era de rasteira relevância, minorado
Prostrei-me ao deparar com certo final da peça, desfalecido aos tacos
Enxerguei morte de amor, o amor rasgado, desperdiçado, poído, nu
Daqueles que, tal como o belo vaso, cola alguma é tenaz de reparar.


Paulo Roberto Andel, 21/09/06

Wednesday, September 20, 2006

As flores da vida

Era o menino de olho na lagoa vadia, tão vespertina
Cheia de garças brancas e também dois pedalinhos
Sem muitos namorados a dedilhar por tanto amor
Em um fundo turqueza, cinzento, de muitas cores

Era o menino que fazia das vistas um bom navio
Para cruzar todos os mares de um planeta livre
Com a velocidade de um tal cometa, admirável
Desejável quando viesse toda noite enluarada
E que cortasse os horizontes feito tinta na tela
Brilhante, impactante, tal como caleidoscópio

O menino trazia um bondoso sorvete à mão
Contrariando o calor de seu coração juvenil
Ria do nada para quem fosse ali desatento
Mil motivos de felicidade não lhe faltavam

Ria da tarde, das cores sãs, do vento breve
Tudo coisas passageiras que nós, humanos
Desprezamos pela bobagem do ser adulto
É preciso que demo-nos o próprio indulto
Pela redenção da liberdade calorosa, viva
Que traga empolgantes visões das garças
Aposentemos de vez em sempre os paletós
A frieza dos escritórios gélidos, impessoais
Merecemos o intervalo do caos nas ruas
Apenas em breve e tão decidido instante
Para viver a verdade de meninos, limpos
Namorando a paisagem vistosa da lagoa
E cantar, partir e voltar ao melhor da vida

Há vida nas flores, nos cantos e campos
Onde os cegos também vêem, e vibram
Melodia melhor para os surdos não há
E o que dizer da voz que aparta mudez?


Paulo Roberto Andel, 20/09/06

Tuesday, September 19, 2006

O último dos moicanos

Eu sou o lobo que nunca dorme
E vivo vago, pela travessa dos poetas de calçada
Procurando meu quando, meu quanto,
Meu por quem?

Os sinos dobram?

Eu sou o sangue
Que jorra dos belos olhos da imagem da santa
Não me despeço ao primeiro passo
Eu troco meu traço
Por qualquer Graham Greene
Qualquer Rubem Braga
Todo biscoito fino me diverte
Me derrete
Feito o bom da calda
Brilho de amálgama

Eu sou uma canção na voz de Tatiana
Meu jazz é de Ipanema, secreta
Cortante blues
Bossa nova ao pôr do sol
De braços dados com a
Menina Janaína
Rainha de mar, morena de céu
Tudo ao léu

Eu sou meu longo caminho
Quando tudo parece perdido
Me divirto
Na roleta russa, vetusta
Falho, não caio
Junto, caminho
Sozinho
Sempre sozinho, mesmo ajuntado
Descanso em minha paz
Enquanto a noite de primavera
Não me conforta
Eu não digo amém
Além dos pés da bailarina

Meu tempo é nada
Delicado vazio
Dedicado, infinito

Paulo Roberto Andel 18/09/06

Cálice de agosto

Inexiste
Aquarela
Com todas cores
Para pintar
Tua beleza
Leveza e graça
de sorriso moço
Meu apreço
Em teu desejo
Feito a paz
De tua face
Que parece
Uma prece
No piano
De Simone
Julho é
Tua bênção
Agosto,
Minha lágrima
Cinema é
Tua fala
Teatro meu
Te amar


Paulo Roberto Andel 18/09/06

Monday, September 18, 2006

Quando menos se espera

Quando menos se espera, surge uma esquina
Uma dobra, um novo caminho para alameda
Mudam as coisas, as pessoas e os arredores
Males que se calam ou felicidades cerradas
Jogos de ação e reação, azar ou toda sorte
Vida e morte, desencanto e prazer, agonia
Serenidade, loucura, paz, insanidade ou fé
Todos os sentimentos, sensações e misturas
Guardados para o próximo passo, adiante
Mais à frente bem no arco do compasso
Quando menos se espera, logo em frente
Tem gente nova no paço, bem na sacada
O boteco da calçada e o novo sanduíche
A banca de jornais e uma velha novidade
O melhor de tudo, meu velho camarada
Vem com a surpresa, imponderável e sã
Indecifrável e pagã, inconscientemente vã
Que há de surgir logo na próxima virada
E nós, breves mortais em cativeiro livre
Não fazemos a menor idéia do que seja
Sabemos apenas que é maioral incerteza
Cujo controle foge de nossas leves mãos
Feito gata escaldada, lisa, escorregadia
Por todo dia a nos trazer o brilho novo
Quando menos se espera, o tempo muda
Voa ligeiro, delicado, busca e traz de volta
O que perdido parecia estar para o infinito
E aparecem os Zés, as Kleins, Alessandras
Elianes, Maranhões, tudo beira do monte
É quando olhamos para trás e refletimos
Para entender a doçura do tão ser acaso

Plácido

Absurdamente simples e real


Paulo Roberto Andel, 18/09/06

Sunday, September 17, 2006

O silêncio das mil palavras

Ontem, em certo momento do fim do dia, pude observar o horizonte nas imediações de Mangueira; subitamente e sem maiores justificativas lógicas, fui tragado pelas memórias de muitas estações atrás. Tratou-se um momento de amor antigo, surpreendente pelo momento em que ontem eu vivia, calmo e feliz. Surpreendente? Quem somos nós para administrar os anjos e demônios que navegam em nossas cabeças? O que importa se estamos bem-acompanhados, desejados, amados, se um pensamento vago pode nos surpreender com uma força de criptonita capaz de derrubar qualquer Super-Homem? Podemos estar apaixonados, inebriados, quando uma lembrança de amor rasga-nos feito uma potente lança das Cruzadas.

Nos tempos de minha adolescência, muito diferentes dos modernos, quando ainda era um amador assumido nas artes do amor, quase o mesmo de hoje, comecei a me interessar por uma menina que morava na mesma rua que eu; estudava num colégio, hoje extinto, onde eu tinha alguns amigos e, por fim, era minha companheira no grupo de escoteiros. Passamos a conversar regularmente, de modo que eu também comecei a utilizar o pretexto de visitar os amigos na saída da escola, apenas para vê-la. Em certo momento, era comum que nos falássemos diariamente e isso, certamente, fazia com que a moça não saísse de meus pensamentos. Havia, contudo, um problema para mim: tinha sido namorada de um então amigo meu, que ainda mostrava-se interessado, embora ele também o fizesse para outras inúmeras garotas. Tomei-me pela insegurança e fui deixando o tempo levar-me.
Aconteceu uma festa, eu sentado ao lado do amigo, e a moça convidou-me para uma dança. Tremi, mas fui. Primeiramente, o turbilhão de incertezas que povoa todo jovem; segundamente, o ar educado mas contrariado do amigo. Terminei a dança rapidamente, voltei a meu posto. O amigo comentou-me que eu não deveria ter ido, já que ela tinha chamado-me apenas para provocar-lhe ciúmes. Talvez fosse o certo, desculpei-me e seguimos em frente. Não sabia como lidar em tal situação, e nem sei se ainda hoje sou capaz.
Tempos depois, fizemos um acampamento de escoteiros e bandeirantes em um belíssimo lugar, o Forte Imbuí, parte integrante da Fortaleza de Santa Cruz, em Niterói; teatro de uma vista fascinante, capaz de lotar as vistas de Guanabara e suas luzes, mais o Atlântico Sul. Houve uma tarde muito nublada durante o evento, feriado, de modo que os escoteiros foram liberados das suas obrigações rotineiras; com a praia deserta a postos, resolvi mergulhar no mar gelado, emoldurado por cinzas, mas ainda sem chuva. Eis que o amigo, ao saber, veio em seguida. Sugeri-lhe que saísse; estava relativamente gripado e o oceano não estava dando tréguas, um frio enorme. Manteve-se.
Ao sairmos d'água, alguns outros amigos estavam na beira-mar; entre eles, a linda menina. Meu amigo batia-se de tanto frio, o que fez com que a garota fosse até perto do acampamento para pedir a alguém um casaco. Trouxe-o e entregou-lhe. Tive algum desconforto com a situação; ciúme, só instantes depois, quando ele comentou-me algo sobre o amor que ela lhe dedicava ainda, tendo ido até duzentos metros depois só para trazer-lhe um casaco. Quando estávamos deixando a areia, rumo às barracas, em bando, eis que a menina tocou em meu braço e disse-me que queria conversar comigo mais tarde. A curiosidade me bateu; imaginei que talvez quisesse minha ajuda numa conversa entre os dois, não sei dizer ao certo. Após o jantar, procurou-me e fez convite para que fôssemos ver o mar de perto, por cima das cúpulas dos canhões de guerra do forte. Aceitei e fomos.
O caminho foi de menos de um quilômetro, talvez. Perguntei se não queria que chamasse mais alguém, e surpreendentemente, recebi o veto. Ao longe, o amigo olhou e calou; nada fez nem disse, deu as costas.
Chegamos a uma das cúpulas e sentamo-nos ao chão. Tenho certeza de que a vista do negrume do Atlântico foi um grande momento para nós. Assaltado pela vergonha e pela insegurança da juventude, comecei a falar de outras coisas, menos a que supostamente nos teria levado ali: o desejo dela em conversar em particular. Entre músicas e futebol, a passagem do dia e a praia, ocorreu que ela entrelaçou sua mão esquerda na minha, direita. Em diante, um silêncio, silêncio profundo, de mergulhos n'alma. Pensei em fitá-la de frente e dizer como a achava linda; pensei em aproximar-me devagar e dar-lhe um beijo capaz de empolgar toda uma cidade. Pensei em dizer-lhe que era a dona dos meus pensamentos quando eu vagava em busca de sono, de como era bom ir até o colégio dos amigos só para vê-la.
Mais do que a falta de coragem, deve ter ocorrido outro motivo, inexplicável, para que eu não dissesse nada.
Por sua vez, ela também se calou, não sei exatamente a razão. E ficamos nós, calados, com os olhos mergulhados no Atlântico, de mãos dadas, sem dizer uma palavra por minutos e tendo como trilha o tilintar das águas nas pedras e areia.
Foram muitos minutos, muitos, até que ela, docemente, pediu para que retornássemos à base.
Deu-me outro sorriso, lindo, louro. Levantamo-nos e fomos caminhando calmamente, como que sorvendo cada instante, cada pedaço de brisa, cada gomo azulado do céu. Ela manteve a mão junto à minha, muitos metros. Ainda tenho na memória o calor de sua mão, a candura, a maciez, tudo inesquecível.
Quando a entreguei em seu posto, não podia sequer imaginar que aquele era o último momento próximo que teríamos em vida. Esperei por uma nova oportunidade que jamais voltaria a acontecer; o amigo, também.
Foram-se mais de vinte anos. Passa um, passa outro, sempre lembro do acontecimento.
O que diria a menina? O que me contaria? Aceitaria meu carinho, que ali seria inesquecível feito a cena de um épico de Hollywood? Paro e penso na delícia de que foi aquele momento, tão puro e significativo das melhores sementes do amor que tenho tentando plantar pelo mundo, por onde passo.
Tanto tempo depois, não sei dizer se aquele beijo, que tanto desejei ali, por não ter acontecido, passou a ser mais importante do que os inúmeros que vieram a seguir, nessa jornada de desencontros que, por nossa comodidade, denominamos vida.
Até hoje, mesmo amado e desejado num fim de tarde em Mangueira.
Sentindo-me primaveril, docemente adolescente e até sonhando com o amanhã.
Paulo Roberto Andel, 17/09/06