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Friday, June 26, 2009

O médico, o Bolinha e Michael


I)

Meu amigo Bolinha já esteve comigo em tantos lugares que, desta vez, nem parecia algo inédito. Foram bares, bares, bares, hall da faculdade, viagens, jogos, locais proibidos pela moral e pelos bons costumes, cemitérios, camelódromos, buracos variados. Agora, definitivamente o tempo passou: combinamos de ir juntos ao cardiologista. Cogitei até um adiamento; afinal tinha o sensacional jogo da seleção...quem? Uma gatinha do meu trabalho me disse que o médico era mais importante do que futebol. Não concordei, mas achei melhor ir. Estranhos os caminhos do ser humano.

Não gosto de médicos. Melhor dizendo, não gosto de certa frieza que contamina a classe médica no atendimento ao próximo. Talvez seja algum trauma de tanto ter acompanhado minha mãe a clínicas. Ou meu pai, que passou um ano internado. Ou o Xuru. Ou o Fred. Não gosto. Ironicamente, comecei minha vida profissional em um hospital: o garboso Philippe Pinel, em Botafogo. Já se foram quase vinte anos. O tempo passou.

Simpática a moça do eletrocardiograma. Tinha algo de kraftwerkiano naquilo. Não posso morrer agora: tenho que pagar dívidas, escrever livros, amar uma mulher linda e voltar a ver o Fluminense campeão do mundo. Hoje é dia vinte e cinco de junho, uma data sempre especial, inesquecível e, até bem pouco tempo, cercada somente de alegria: aniversário de uma das mulheres mais bonitas, charmosas e simpáticas que conheci na Terra, Luciene Magnani. E claro, o dia marcado pela maior conquista da história Tricolor no Maracanã, maior até do que o campeonato mundial de 1952 ou o bi de Assis: o título do Centenário, com o gol de Renato. Não morrerei. Estatística serve para isso: ler gráficos. Há estabilidade no eletro. Ufa.

Simpático o Doutor Mário. Parece com alguém que conheço, mas não lembro. Parece jovem para um médico que cuida da mãe do Bola. O primeiro cardiologista que faço rir. Achou engraçado que Bola tivesse marcado minha consulta. Expliquei: somos amigos há vinte anos; não gostamos de médico; não formamos um casal gay; gostamos de mulher, inclusive feia (Bola, muito mais do que eu); achamos bom que dois gordos fossem se consultar seguidamente – isso poderia aplacar a ira do doutor para com os de peso. Ele riu. Passou os exames chatos de sempre. Pulso normal, coração normal, um remedinho. Meu IMC nem está ruim como se poderia imaginar. Raras vezes me senti tão bem em um ambiente tão hostil. Bola também foi bem. O tempo passou.

Há muito não navegávamos pelos bares do Méier, onde não se bobéier. Tem algo ali de Alexandre Machado. Tem algo da Magnani. Algo de Sonia Chrystina. E, claro, do inusitado Alvaro Doria. Algo de Copacabana na Dias da Cruz, da avenida Copacabana entre Figueiredo de Magalhães e Siqueira Campos, para os que me entendem. Fomos felizes. É bom não estar à beira da morte numa consulta hospitalar.

Cabia uma comemoração.

Somos gordos sem-vergonha, irrereventes e suficientemente desajustados para entrar no rodízio de pizzas da Parmê, minutos após termos sido absolvidos pelo Doutor Mário. Poderíamos ter sido salvos se prevalecesse a pão-durice do Bola, reclamando do preço abusivo para se comer trinta fatias de pizza e beber hectolitros de refrigerante de cola. Rapidamente, o empurrei para dentro do restaurante.

Nossa vida tem sempre algo engraçado.

Antes das fatias, rápida passada pelos cedês das Americanas, no shopping. Não resisti a um Led Zeppelin, mesmo com “Stairway to heaven”. Dez pratas. Bola é meu amigo, mas é pão-duro; Seal estava de grátis, ele pegou... mas refutou. Tio Patinhas! A garota no caixa era uma morena bela; quando tentei pagar, ela falava ao telefone e parecia delicadamente sexy; enquanto isso, Bola se abaixava para pegar um DVD de Michael Jackson que estava no chão e que, involuntariamente, havia pisado em cima:

- Que é isso, mano, quer pisar no Michael?

- Pó, cara, ele tá caidinho.

Risos tolos, feito os dos tempos da faculdade. Nem sabíamos do que acontecia do outro lado da América.

Parmê. Uma morena jovem, linda, fofinha e grávida. Uma turma de adolescentes em festa. Gritos, risos, gente. E falamos da vida, do amor, do passado, de como foi bom rever Dino no Orkut. Nem tudo florido: também dizer sobre os que considerávamos amigos, que se afastaram.

Foi divertido. Bom viver os pequenos prazeres da vida. E descobri algo inédito: ir ao médico com um grande amigo pode ser menos incomodativo. Coisas boas acabam cedo. Hora de voltar para casa. Ouvir Jimmy Page. Pensar no dia seguinte.

Veio um 239, o motorista não parou. Eu estava no ponto errado, de forma que o considero absolvido. Mas esperei outro vir. Cinco minutos, chegou. Vazio. Antes disso, falei com um rapaz que estudou Direito comigo, Guilherme. Coisa rápida, um olá, um abraço. O fiscal libera, o coletivo parte rumo à Marechal Rondon, zona de tensão da vida carioca. E tocou o telefone. Eu queria que fosse a Tati, ou saber notícias do Leo, ou alguma palhaçada do Zé. Era o Bolinha, em tom assustado e impactado:

- Cara, Michael Jackson morreu!

Levei um soco.

II)

Mais à tarde, Leo passou lá em casa. Cansado do trabalho, do desgaste. E triste.

Leo tem pouco mais de vinte anos.

Milhões de jovens têm pouco mais de vinte anos. Não viram “Thriller” no auge, mas acusaram o golpe do mesmo jeito.



III)

Talvez a melhor síntese que se possa fazer a respeito de Michael Jackson seja, de alguma forma, na constatação de milhões de pessoas que estão muito tristes em todo o mundo hoje – num mundo cada vez mais marcado pelo individualismo, a manifestação de luto em todo o planeta é um sinal da importância de Michael Jackson. Preto ou branco, no auge ou no recolhimento, o que Michael deixa é a impressão de que havia um gênio com muito mais coisas ainda a mostrar. Não alinho com os que lhe impingiam a condição de pedófilo – sua trajetória de ações filantrópicas é gigantesca e multimilionária, em total desacordo com as acusações. Com erros e acertos, excentricidades e um talento inigualável, alinha-se com outros gênios desaparecidos precocemente: John Lennon, Jimi Hendrix, Jim Morrison, Kurt Cobain, Renato Russo, Cazuza. Uma perda lastimável, injusta e muito antes do razoável.

O tom da voz do Bolinha no telefone me comoveu.

Não tenho crença, mas aquela situação do DVD no chão me comoveu.

Lembrar da minha mãe dizendo que adorava aquele neguinho me comoveu.

Lembrar de “Rock with you” me comoveu.

Chegar no trabalho hoje e ver as pessoas chateadas com o fato me comoveu.

O tempo passou. Hoje é vinte e seis. Meu desaniversário. Estou triste por hoje. A ponto de não escrever o suficiente sobre o rei do pop. Até mesmo porque não há palavras suficientes para descrevê-lo.

Quem viu, viu. E sabe do que estou falando.


Paulo-Roberto Andel, 26/06/2009

Monday, June 22, 2009

TRAVESSIAS


I)

longe de mim

o cultivar realidades

longe de mim

o ofício do concreto

não tenho apreço

pelo óbvio

e sim pelo que mereço

em ócio

o reto não me contempla

nem o berco-esplêndido

de um lugar-comum opaco

longe de mim

disseminar frieza

a beleza está no que me importa

no que me reza amparo

longe de mim

a pureza por decreto

a porta aberta para o descaso

longe de mim a empáfia

para o norte, sou oeste

noite taciturna, túrgida

perante o celeste a fenecer

enquanto gastam o tempo

procurando o neo-moderno

decretando céu e inferno

minha contemporaneidade

é viver


II)

acordo

aborto o sonho

e te vejo nua

nua de um jeito que impressiona

me intumesce

olhar de perto teu dorso

te colo, teu peito

riquezas tão desejáveis

a ponto até

de me fazer pensar em prece

acordo

e te vejo em pêlo

minha

num repouso delicado

me alimento

das delícias

do teu corpo

pequenas porções

de lambida

manjar de cheiro

um beijo

acordo

e me vejo aceso

te vejo nua ao lado

e cobiço

teu desenho

tuas curvas, teu ballet

meu carinho

deitado em teu querer

te namora

ardentemente

sem calma –

paixão em carícia

profana

quase ré


paulo-roberto andel, 22/06/2009

Monday, June 15, 2009

POEMAS CURTOS













I

para o couro cru
há osso

a carne de pescoço
no sopro da miséria

e o mistério
da vida nua
na epopeia
de saber o que
fazer
depois do fim -
cemitério?



II

a prece o terço

a novena o escapulário

onde jorra minha fé
além do abecadário?



III

habitar silêncios
espaços e sussurros
tem resquício
de busca
pelas pequenas
vilanias
da palavra -
a obsessão da
sí la ba tônica
e sua contraditória
átona

no meio do caminho
entre torrentes e caos
ávido
o poema emerge



IV

reluz
aquele olhar diamantino
pedra preciosa
pepita rara
em traje esporte fino
memorial de carne
generosa mulata



V

vive a vida
quem vê o outro
e não quem
vê somente
olhares em cima
olhares sem sina -
olhar em si
é dó
e desafina


paulo-roberto andel, 15/06/2009

Wednesday, June 10, 2009

BASTA

















o que não basta

é o pouco

o ralo

o tênue


o que não basta

é o íngreme


o que não basta

é o raso

o frágil

o difícil


o impossível não entende

é fogueira que não acende


o que debasta o viver

é o ser


paulo-roberto andel, 09/06/09

Friday, June 05, 2009

CAPITAL

















meu coração é a rua

do centro comercial

duma grande capital

no ocaso de domingo -

é o vadio, o vazio

quase aprazível

mas tinindo, tinindo

meu amor não se reflete

mas também não desacata

é só o frio lá de fora

disfarçado na turquesa

horizonte? beleza?

a procissão que não demora

um receio se descontrola –

nem cama, nem mesa

meu coração é da rua

da praça

da viela e o boulevard;

faz a prece para ninguém,

reclama quando lhe convém,

abusa de escutar -

cabe calado numa sentença;

espera lúcido, sereno,

pela glória d’alforria;

disfarça, sentado,

que não chora:

nasceu para além-mar,

não o concreto

dos arranha-céus

arregalados

sem viver

o descansar.


paulo-roberto andel, 05/06/2009

para leonard cohen


Thursday, June 04, 2009

SKY BLUE SKY












o inverno,
fora de hora,
que tira o afago
dos corações solitários

é o mesmo

que galanteia
o rigor da roupa
o calor do chocolate
o cobalto no céu
de lua cheia

o inverno
é distraído
enquanto há morte
nos arredores –
o mote da morte
numa chacina miserável

no abandono dos sofridos

na cor do atlântico
a esconder o sangue

da desgraça
sem abono

o inverno
imerso em cinza

algoz da calçada

parente distante do Rio

ilógico, acredito
na promessa
de bom sonho
à madrugada
por um detalhe
arredio na espera:

ele, inverno,
sem mágoa,
é nesga
da primavera


Paulo-Roberto Andel, 04/06/2009

Tuesday, June 02, 2009

GRANDES POETAS



CACASO

então
senti que o resumo
é de cada um
que todo rumo
deságua em lugar comum
então eu monto num cavalo
que me leva a Teerã
e não me perco jamais
quando desespero vejo muito mais
essa canção me rói, feito um mistério
essa tristeza dói
meu fingimento é sério
como aéreo é sempre todo amor


TORQUATO NETO

eu sou como eu sou
pronome
pessoal intransferível
do homem que iniciei
na medida do impossível

eu sou como eu sou
agora
sem grandes segredos dantes
sem novos secretos dentes
nesta hora

eu sou como eu sou
presente
desferrolhado indecente
feito um pedaço de mim

eu sou como eu sou
vidente
e vivo tranqüilamente
todas as horas do fim.


MANOEL DE BARROS

a poesia,
a poesia está guardada nas palavras
é tudo que eu sei
meu fado é não entender quase tudo
sobre o nada eu tenho profundidades
eu não cultivo conexões com o real
para mim poderoso não é aquele
que descobre o ouro
poderoso pra mim é aquele
que descobre as insignificâncias do mundo e as nossas
por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil
fiquei emocionado e chorei
sou fraco para elogios.


ARNALDO ANTUNES

alta noite já se ia,
ninguém na estrada andava.
no caminho que ninguém caminha,
alta noite já se ia,
ninguém com os pés na água.
nenhuma pessoa sozinha
ia, nenhuma pessoa vinha.
nem a manhãzinha,
nem a madrugada,
alta noite já se ia,
ninguém na estrada andava.
no caminho que ninguém caminha,
alta noite já se ia,
ninguém com os pés na água.
nenhuma pessoa sozinha
ia, nenhuma pessoa vinha.
nem a estrela guia,
nem a estrela d'alva,
alta noite já se ia, ninguém na estrada andava.
no caminho que ninguém caminha,
alta noite já se ia,
ninguém com os pés na água.


CARLITO AZEVEDO

rói qualquer possibilidade de sono
essa minimalíssima música
de cupins esboroando tacos sob a cama

imagino a rede de canais
que a perquirição predatória
possa ter riscado
pelo madeirame apodrecido

se aguço o ouvido
capto súbito
o mundo dos vermes