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Thursday, May 27, 2021

Seu Nelson Sargento

Entre 2002 e 2004, invariavelmente eu conversava com Seu Nelson. À época, eu tinha um sebo de CDs e LPs chamado Seboteca, que funcionava numa galeria da rua Gomes Carneiro, bem em frente ao edifício Majestic, onde um dia moraram Ivan Lessa e Lila Bôscoli - se você não sabe quem são, é melhor procurar saber. 

Na galeria funcionava uma videolocadora badaladíssima. Um dos entregadores tinha o apelido de Tim Maia. Uma funcionária chamada Patrícia, gata fofinha, causava suspiros no corredor. Seu Nelson estava lá sempre em busca de filmes. Na volta, vinha à Seboteca e conversávamos sobre muitas coisas, até samba. 

Certa vez, ele lamentou comigo por ter centenas de LPs em casa de um mesmo álbum. Ele não sabia como distribuir, a gravadora deu como pagamento, peguei uns poucos, minha loja era pequena. Era um assunto recorrente. 

Pintura, cinema, teatro, Seu Nelson era uma potência. Às vésperas de viajar para a cerimônia do Grammy, ele apareceu na loja e brincamos: "Agora o caixa tá cheio".

- Meu filho, só deram a passagem e a estadia. Lá não tem churrasco nem feijoada. 

Rimos. 

O que nunca vou esquecer é de um dia em que ele entrou na loja quando eu ouvia o álbum clássico de Dave Brubeck, "Time Out". Seu Nelson vibrou, começou a contar a história da arte na capa e daí passamos a falar sobre Paul Desmond e Joe Morello. Desse dia em diante, em pelo menos uma dezena de sábados, o mestre do samba brasileiro papeava comigo sobre Charles Mingus, John Coltrane, Lee Konitz, Thelonious Monk, Lee Morgan, Chet Baker e muitos outros. Seu Nelson me deu aulas grátis de jazz, mas nunca o vi falar disso em entrevistas por motivos óbvios, e não sei dizer se os jornalistas sabiam da faceta do multi artista. 

Seu Nelson passou pela pobreza, pela guerra, pelos golpes, pelas crises e todos esperávamos que, de tão presente e ativo, ele batesse os 100 anos. Foi perto. Teve uma grande vida, lutou e foi um orgulho do Brasil. Vê-lo era como ver a chegada de um príncipe desta terra. Até a luta contra o câncer ele encarou de frente, mas não deu para superar a gripezinha do calhorda. Para muitos, ele era um dos heróis do Olimpo do samba, mas para mim era mais: meu amigo de conversas de jazz, o som da liberdade que, tal como o samba, agoniza mas não morre. 

@pauloandel

Wednesday, May 26, 2021

UERJ

Entre maio de 1988 e março de 1996, vivi mais tempo na UERJ do que em minha casa e meus ambientes de trabalho. 

Foram anos incríveis, que mudaram minha vida para sempre. Não somente pela minha formação acadêmica - até hoje tento entender como consegui aprender aquilo -, mas pela formação de vida, de cidadão, de politização, de tudo. 

Na UERJ, você vive o conceito de universidade como nunca: está na Matemática, sobe uma rampa e lancha com os futuros advogados; desce outra e debate com os futuros engenheiros. Entra no elevador e encontra o camarada da História, a gata da Educação Física, a gataça da Psicologia, os caras maneiros da Física. É tudo junto e misturado. Nos tempos das Olimpíadas era um barato total. 

Num segundo, foi na UERJ que conheci direito David Lynch, Hector Babenco, Tunga, Hemingway, João Antônio, Gerald Thomas, Plínio Marcos, João do Rio, Alan Parker, Tom Waits, Nick Cave, Jack Kerouac, Neil Young, Leonard Cohen, Basquiat e todo o jazz. 

Sentado no banco da concha, vi Paulinho da Viola, Victor Biglione, Gilberto Gil, Ed Motta, a imortal Cássia Eller. Assisti "Veludo Azul" e "Ironweed". Dei beijos também, faz parte do jogo. 

No Teatrão, ainda inacabado, aplaudi a Cássia também (dois shows dela!), o Ney Matogrosso, a Leila Pinheiro (quase compramos um buquê de flores pra ela, mas as garotas do CA não se conformaram e desistimos), Fernanda Abreu, Vinícius Cantuária, Raphael Rabello e um certo Tom Jobim. 

No auditório, fiquei cara a cara com Luiz Carlos Prestes. Só. 

Eu já conhecia a Tijuca, mas a proximidade da UERJ me levou a seus cinemas, ao Café Palheta (onde celebrei minha colação de grau com a Diniz e a fantástica Conceição), às ruas e aquilo se multiplicou pelo Grajaú e Vila Isabel. Atravessei tardes e noites em suas calçadas. Virei freguês do Capelinha, outrora frequentado por um certo Noel Rosa. 

Meu amor morava ao lado: o Maracanã, aquele velho Maracanã de gente simples e jogos imortais. Descer o elevador com caderno e prancheta, atravessar a rua, comprar o ingresso e entrar no mundo dos sonhos.

A convivência e os amigos da UERJ me levaram a outros shows fora de lá, do Oingo Boingo a Bob Dylan! Senhor, eu tinha 21 anos e estava lá. 

Eu era um garoto pobre e desesperado, queria estudar e conseguir um emprego para ajudar minha família. O governo fazia de tudo para não passar os recursos para UERJ. Sabotavam tudo. Ficamos nervosos, fomos à Alerj e rolaram as pedras. Faz parte do jogo. Um dia eu vou fazer um lançamento de livro lá. 

Saí da UERJ como um profissional formado e um jovem homem muito melhor do que entrei. Nunca fui doutrinado por ninguém e nem precisava: a política eu aprendi em casa. É claro que a esquerda predominava: onde tem intelectualidade de verdade, ela está, queiram ou não. 

Tive professores maravilhosos. Outros, competentes. Outros, não. É universidade, é parte do processo. 

Quando me formei, me senti tão órfão que, depois de desistir do mestrado, passei para Matemática só para ter um vínculo, prolongar o bis de um lindo show que estava no final. Um dia tive que sair, mas a UERJ nunca mais saiu de mim e ela está nos meus atos, falas e textos. Ela vive. 

Conheci jovens homens e mulheres da pesada, que carrego comigo até hoje. Vivi situações hilárias e dramas. Aprendi coisas demais. Não saí apenas como um estatístico, mas também como um escritor que se consolidaria mais tarde. Talvez a UERJ seja o melhor livro que ainda não escrevi, mas estão rolando os dados. Sem ela, eu jamais teria conseguido melhorar o padrão de vida da minha saudosa família. 

A minha pequena história é a história de milhares e milhares e milhares de jovens que, um dia, perseguiram um sonho e conseguiram: o de estar numa das melhores escolas do país, dentro e fora de sala, intensamente. Isso, nenhum babaca fascista vai destruir. Tenho certeza de que, muitas décadas depois da minha morte, a UERJ seguirá firme, ajudando a combater a injustiça social por meio da Educação. 

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P. R. Andel, 52 anos, estatístico formado em 1994, autor de 31 livros, comerciante, editor, colaborador regular de jornais e sites. Brasileiro. Carioca. Passou pela UERJ e pela UFRJ.

Monday, May 24, 2021

Sobre o Fla x Flu 2021

Em 45 anos acompanhando o Fluminense, nunca tinha visto uma participação tão ridícula do meu time numa final como essa de 2021. Nem parecia um adversário, mas um convidado para a festa do outro. E pela primeira vez em 15 anos, não escrevi imediatamente uma crônica sobre a atuação, o que farei hoje ou amanhã. 

Agora, pior do que isso foi ver as verdadeiras trevas que viraram qualquer debate no Brasil, ainda mais sobre futebol. 

De tricolores, li e ouvi de tudo. Pode ser que a dor da derrota explique até certos arroubos e sandices, mas o que me preocupa é ver tanta gente boa conformada com tudo, como se o Fluminense fosse um clube pequeno, onde é bom ser vice-campeão ou quinto, sexto, sétimo, sei lá que diabos, depois de quase dez anos sem conquistas relevantes. Quem achar que está bom, que siga com isso mas conte com minha total ojeriza a respeito. Não sou obrigado a aderir pela campanha da mediocridade. 

De rubro-negros, sandices a granel, ao cúmulo de sugerir racismo tricolor em seu mosaico, apenas para suavizar a escrotidão de seus dirigentes, que deram um show explícito de irresponsabilidade no tocante à Covid19, chegando ao cúmulo da especulação de uma partida com público em Brasília depois de quase 500 mil mortos em nossas vistas - porque esse foi o único motivo da decoração. Até o início da pandemia, basta olhar no YouTube, a única torcida no Maracanã que era predominantemente de população negra e foi substituída por uma massa nitidamente branca não é a tricolor... Agora, se preferirem outra interpretação para os dizeres do mosaico, sugiro um pequeno lote: Serra Dourada/ ladrilheiro/ Papeletas Amarelas/ Roubado é mais gostoso/ Flamenguesa etc. 

Pior ainda é mais uma manipulação covarde de certa imprensa esportiva, querendo igualar números centenários na marra. Patético. O Flamengo foi infinitamente superior ao Fluminense nas últimas três decisões, mesmo com os já tradicionais erros de arbitragem que predominam para um lado. Nada disso era necessário. Do jeito que jogou sábado, o Fluminense não seria campeão nem com 24 horas de partida. 

Agora, ninguém tem culpa de que a pandemia impediu o Maracanã cheio, a festa etc que se vê em decisões passadas feito a de 1995, que aparece diariamente na TV ou tantas outras em que o Fluminense foi superior e campeão. Ou melhor, culpa tem, mas é alguém que não tem nada a ver com o futebol, embora bajulado por dirigentes da Gávea...

E antes que alguém fale alguma besteira, procure saber o que eu escrevo e falo sobre os dirigentes do meu clube há anos. Nada feito com ódio ou pessoalidade, nada. Tudo apenas no campo da divergência de ideias e conceitos. Se não gostam de mim por isso, dane-se: não sou tiete de dirigente, tenho mais o que escrever. Amar meu time não pode me transformar numa besta subserviente a sistemas no mínimo espúrios. 

Nada pode ser pior do que a ética seletiva, de conveniência, de circunstância. O sujeito ético por ocasião é tão calhorda quanto o anti-ético. 

Sunday, May 23, 2021

Bob Dylan, 80 anos

Cada um conheceu Bob Dylan de um jeito. Eu me lembro da primeira vez que ouvi seu nome e vi seu rosto: foi em 1977, em Vicente de Carvalho, quando ele tinha 36 anos e já era um ícone mundial. Eu tinha de oito para nove, e estava comprando figurinhas com meu pai numa banca de jornais, para um álbum de nome Multicolor. Chegando em casa, abri o pacote e saiu a figurinha de Bob Dylan. Achei o nome muito diferente. Meu pai disse apenas "é um grande artista", ele não falava muito. 

Seis anos depois, eu já ouvia Bob Dylan quase todo dia, já que as rádios o tinham como presença obrigatória tanto nos programas de flashback ("Lay, Lady, lay") quanto na programação habitual - Dylan tocava o tempo todo com "Jokerman", sua volta ao sucesso e que ganhou bela releitura de Caetano Veloso. E de lá para cá, nunca mais o larguei. Em 1990, eu estava com meu amigo Zé Luiz na Apoteose em noite histórica e, oito anos mais tarde, no incrível show de Cássia Eller, Bob Dylan e os Rolling Stones. 

Em 1994, Bob Dylan lançou o "Acústico MTV", que o levou a um novo e renomado público. Foi o primeiro passo de uma recuperação definitiva: desde então, todos os seus álbuns foram aclamados pela crítica a partir de "Time out of mind" (1997) e, se não possuem hits semelhantes aos primeiros dez anos de carreira - quando literalmente mudou o mundo, sendo um digno sucessor da literatura beat, além de mudar o curso de ninguém menos do que os Beatles -, são obras de grande esmero daquele que é o maior artista estadunidense vivo. Uma pérola atrás da outra. 

Escritor, pintor, poeta, compositor, Bob Dylan é a única pessoa no mundo a ter ganho o Prêmio Nobel de Literatura, o Prêmio Pulitzer, o Oscar, o Grammy e o Globo de Ouro. Dificilmente alguém conseguirá igualar tal façanha. 

Eu fui um garoto que cheguei à literatura beat graças a Bob Dylan, e fico pensando em quanta gente no mundo teve a mesma experiência definitiva. Ele mesmo saiu de casa quando leu Jack Kerouac, e uma de suas fotos mais famosas é dele com Allen Ginsberg, ambos sentados de pernas cruzadas, aos pés do túmulo de Jack com Allen lendo. Desde o dia em que deixou sua casa para sempre, mesmo sem ter planejado, Bob Dylan mexeu com os alicerces da cultura ocidental. Fez tudo de seu próprio jeito, encarou vaias, trocou de religião e nunca parou de tocar, exceto quando veio a pandemia. Isso não o impediu de lançar seu mais recente álbum, "Rough and Rowdy Ways" em 2020, que encerra com a espetacular "Murder Most Foul", faixa épica e crítica de 16 minutos baseada no assassinato de John Kennedy. 

Dylan há muitos anos iniciou a "Neverending Tour" e se espera que, na volta à normalidade, ela prossiga. Não é possível prever até quando, mas uma coisa é certa: ver Bob Dylan em ação num palco é uma das mais avassaladoras experiências que uma pessoa pode ter com arte. O referido é verdade e dou fé. A maravilhosa Chrissie Hynde, dos Pretenders, concorda: ela acaba de gravar um LP de covers  do poeta. Bob Dylan é uma fonte inesgotável, assim como seu ídolo Woody Guthrie foi para ele. 

@pauloandel

caramelo

um cachorrinho cor de caramelo trotando e flanando pelas ruas da cidade. ora corre, ora para. sem coleira, sem dono, sem nada. 

espiando os homens coléricos em suas motocicletas numa passeata suspeita, gritando violências e ostentando armas. 

os transeuntes que vêm e vão com suas vidas para seus destinos. 

sem entender mas sentir, o cãozinho fita a frangueira na padaria da esquina, os frangos indo e vindo até ficarem assados e prontos, com farofa e batata frita, para o almoço de quem tem dinheiro. 

ele pode voltar e se abrigar debaixo da marquise, sem precisar ficar perto de tanta gente que mora ali, com fome, sem casa, sem nada.

pode atravessar a rua e chegar à praça, onde outros cachorros bem cuidados estão com seus donos, com ou sem coleira dependendo da ocasião. perto deles, empregadas uniformizadas tomam conta de crianças vindas dos lares abonados, e estas adoram brincar com cachorros. 

um cachorrinho caramelo magro, miúdo, olhando para o mundo que não entende mas sente, sente tanto que é capaz de ficar parado perto de um garoto chorando sentado num banco da praia, ouvindo canções no walkman sem saber como será o dia seguinte.

quem sabe parar perto de um canteiro florido? 

onde conseguir uma tigela d'água? 

alguém faria a caridade de uma bolinha de borracha para brincar? 

o cachorrinho caramelo late ao longe bem alto para que alguém lhe dê atenção, mas as pessoas estão muito apressadas ou ocupadas para prestar atenção.

com suas patinhas, ele vaga em busca da vida numa manhã nublada de domingo, sonhando com uma ração suculenta, um bife, uma tigela de água e algum carinho, mas a cidade não é fácil e pouca gente consegue encontrar felicidade de verdade. é que as ruas estão lotadas de indiferença e os cemitérios, cheios de empáfia nas tumbas. 

um cachorrinho caramelo magrinho, miúdo, tentando viver em paz neste lugar tão orientado para a guerra e o ódio, mas que ainda pode ter chance. 

sozinho. sozinho. 

caramelo. um cachorrinho. 

@pauloandel

Tuesday, May 18, 2021

Lou & Patti

Quando Lou Reed morreu, Patti Smith escreveu uma linda e comovente carta. Num dos trechos, disse: 

"Ele era nossa ligação com o ar infame da Factory. Ele fez Edie Sedwick dançar. Andy Warhol sussurava em seu ouvido. Lou trouxe as sensibilidades da arte e literatura para a sua música. Ele era o poeta de Nova Iorque da nossa geração, defendendo os desajustados como Whitman havia defendido os trabalhadores e Lorca os perseguidos."

Eu conheci Lou Reed aos 13 anos, em 1982, quando ele já era uma referência mundial. Foi de maneira insólita: meu amigo Fred, que já era grandão e gordinho, pediu para que eu fosse com ele buscar duas calças jeans que havia encomendado no Rey das Calças, no coração de Copacabana. Fred estava com um disco do Judas Priest na mão. Ao chegarmos lá, rolou um papo de rock com o vendedor, entrou o Judas e no fim ele disse que Lou era uma "bicha maravilhosa". Tempos depois, é claro que aquela informação não fazia a menor importância: éramos de Copacabana, os gays estavam por toda parte e nunca sofri qualquer assédio. Ok, um vizinho tinha a mania de ficar piscando para mim no corredor, mas depois que me viu de mãos dadas com Patrícia, sossegou. Tudo bem. 

Anos depois, quando pude, comprei CDs de Lou Reed, li suas histórias loucas e ótimas, sua poesia rascante e crua - como deve ser. Mais de meio século depois, toda banda de rock alternativo tem um quê do Velvet Underground, nome e referência eterna. 

Lembro que estive numa exposição do CCBB sobre a soturna Nova York que atravessou as décadas de 1960 e 1970, temperadas pela desilusão e drogas pesadaças. Muitas fotos da época, várias de Robert Mapplethorpe, artista genial por quem Patti Smith era apaixonada. Outras tantas do Velvet com Nico, a charmosa cantora, Andy Warhol com sua divertida bitchness, e ainda outras de ninguém: ruas desertas, sombrias, tudo em delicado preto e branco. 

Ainda o Velvet Underground: sobreviveram apenas a baterista Mo Tucker e o incansável John Cale. Sterling Morrison se foi cedo, Lou Reed ainda aguentou o tranco e fez grandes álbuns. Gosto até do que ele fez com o Metallica, odiado por quase todo mundo. Já Patti Smith eu consegui ver ao vivo no Tim Festival em 2006, graças ao ingresso que meu amigo Bruno Saraceni me deu. Também vimos juntos os fabulosos Beastie Boys num show demolidor. 

Alguma coisa da noite atual do Centro do Rio me remete àquela exposição sobre Nova York. Temos ruas desertas, decadência, violência, desesperança. Fica faltando descobrir onde estão nosso Velvet Underground, nossa Patti Smith e, claro, Robert Mapplethorpe. Eles saíram de uma enrascada enorme, servem de bom presságio para nós. Lou Reed continua sendo uma força da natureza, com sua poesia de nocautes. 

@pauloandel

Monday, May 17, 2021

segunda

então começa mais uma semana nesta terra cheia de dor, desprezo e arrogância, mas nós, grandes corporações de água e carne, caminhamos para atravessá-la. é preciso, não resta outro caminho. sim, somos bolas gordas e magras de água e carne, preparadas para apodrecer a qualquer momento. 

isolados dentro de casa, nos deparamos com o museu de grandes novidades, um verso de cazuza, o maravilhoso poeta dos anos 1980: crianças desaparecidas, personalidades mortas, violência, fome, solidão. no ar uma peste que mata e atordoa. não é preciso estar nas ruas para saber de sua agonia. há quem enxergue o progresso, mas de maneira muito peculiar.

na janela fechada do quarto, uma cortina azul-escuro deixa escapar uma réstia de sol nublado. 

em algum lugar que não sei dizer, nós nos perdemos de vez. deve ter sido quando alguns sujeitos passaram a acreditar que eram as únicas pessoas importantes num mundo com bilhões de habitantes. ou quando o imaginário coletivo passou a entender que o outro não tem importância para a satisfação individual. a era do descartável devia ser limitada aos objetos, mas chegou às pessoas e assim estamos. bem mal.

o trânsito está tão devagar que o barulho do ônibus é menor do que o de um cachorrinho esperto latindo nas imediações. precisamos escutar mais os latidos, porque a desumanidade leva muitos a confundir os sons caninos com os choros humanos, desprezando ambos. é isso: nós viramos a capital mundial do desprezo. 

mantendo a rotina, o restaurante vizinho liga seus grandes aparelhos de operação, que lembram o som de turbinas de avião defeituosas. ninguém liga, nem os donos. 

na tv, uma matéria fala sobre o número de moradores na rua, que certamente é quatro ou cinco vezes maior do que qualquer estatística oficial. 

hora do home office em breve: banho, café, lágrimas, fracassos e postagens, postagens para vender, postagens para divulgar, revisões, cálculos e dinheiro algum. ainda são oito da manhã e há uma longa segunda-feira pela frente. isso para os que têm home office, porque a maioria não tem nada. 

mensagens inúteis, áudios inúteis, posts inúteis - aqui estamos! - enquanto a maioria celebra práticas nazifascistas acreditando se tratar de defesas da pátria e da família. pior ainda: a da liberdade. o direito de pisar na cara das outras pessoas para não sujar as próprias botas. o que isso tem a ver com a evolução humana? 

[eis a idade média com iPhone e iFood

cidade alta, parada de lucas, são josé operário, fé, tiroteios intensos em nome de uma guerra surda que estupra, humilha e mata pobres enquanto enche o bolso de empresários escroques. mais do mesmo a cada segunda-feira. 

[um jovem de cerca de trinta anos chamado andré, vestido com a bela camisa de 1902 do fluminense, mais uma máscara tricolor, sentado na calçada gelada e sonhando em sair do inferno das ruas. 

[trinta ovos por quinze reais. ovos são ótimos, mas não eram a base alimentar dos tempos da ditadura, com inflação mensal a 70%? deve ter algo errado.

lá fora o terceiro ônibus freia e para. é provável que o motorista não tenha visto o único passageiro à espera do serviço no sentido centro-estácio.

bom dia. boa semana. boa morte. 

Friday, May 14, 2021

short cuts 1

Sentado à mesa do velho bar da Cruz Vermelha um freguês chamado Mário. Sozinho no salão em tempos de pandemia, já com alguns tragos na cachola, dispara uma pérola interessante para o único interlocutor ali possível: ele mesmo. 

[O garçom está atendendo outro freguês, numa mesa do lado de fora do botequim, pouco importando a irregularidade do fato e o sereno da primeira noite fria do outono

"Por que ninguém mais abrevia seus nomes?"

"Lembram do guitarrista G. E. Smith, que tocou nos tempos áureos com Daryl Hall & John Oates e até com Bob Dylan? Smith acompanhou Dylan na Apoteose em 1990? Não tenho certeza."

"Poemas alucinantes de e. e. cummings, tudo realmente minúsculo como a elegância pede, Edward Estlin Cummings, um dos pais da poesia moderna para o terror de críticos e poetas conservadores."

"Por que precisamos de nomes pomposos por extenso? Bora abreviar!"

Uma voz imaginária ganha o salão do veterano botequim: 

- T. M. Stevens, lendário contrabaixista que já tocou com meio mundo americano, de Cindy Lauper a Joe Cocker! Fará 70 anos em breve. 

[É inaceitável que Cindy já tenha 70 anos, assim como aquela gata do B52's cujo nome esqueci

E continua:

- J. G. de. Araújo Jorge, poeta lidíssimo, consagrado no Rio de Janeiro mas tendo a infância passada no Acre. 

- O Acre é um mistério saboroso. De lá vieram Fernanda Takai, João Donato, Mitya Ghidini e outros. 

- Ainda sobre abreviações, não se esqueça do obscuro escritor e poeta p. r. andel, minúsculo também como e. e. cummings. 

Mário vê a solidão no salão do botequim por todos os lados, ri para não chorar, espera o garçom que não volta para um último trago e faz nova reflexão: "Tínhamos o J. Silvestre, o J. Jr. está por aí numa boa, mas é possível pensar que a decadência da abreviação de nomes no Brasil seja simbolizada por R. R. Soares." 

[Amanhã é uma sexta-feira fria do meio de maio, sem grandes expectativas e com um enorme passado pela frente

"Garçom, a conta por favor."

[Este bar está cheio de ninguém

@pauloandel

Friday, May 07, 2021

Copacabana

copacabana, uma semana de quinze dias

da graça de deus e o diabo


juntando o novo e o velho, o pobre e o rico, 

o avant-garde e a cafonália


[o excêntrico e o pop rock


deusas do sexo, velhinhas moralistas, 

maduros sacanas e garotos nerds


[quase todos se encontram na praia


respeitáveis condomínios orgiásticos

e barracos imperiais na favela


machistas musculosos dando pinta na 

caserna mas odiando as liberdades


e lindas putas tristes com seus collants 

coloridos jantando ao meio dia


ao contrário dos crackers da rua siqueira 

campos perto das casas da banha


copacabana, onda a igreja aluga lojas para o 

bas-fond sem pecado ou rancor


e garotos espertos atravessam a boca do 

lobo à madrugada no Bairro Peixoto


lindas gatas roteiristas escrevem 

barbaridades divertidas para a TV


e os veteranos do posto seis esperam a hora 

dos clássicos de peteca


pode ser Gerald Thomas ou Jorge Ileli ou 

Júlio Bressane numa nova arte


ou Nelson Sargento a caminho da loja de 

DVDs


pode ser João Roberto Kelly navegando a 

noite


ou Paulo Amaral batendo papo com Orlando 

Fantoni perto do Marimbás


ai de ti, Copacabana: bela e faiscante, 

devassa e lúcida


teus escritores e poetas, teus cineastas e 

pianistas, tuas nobres cantoras


teus moleques da areia caçando cola ou 

jogando bola à luz dos refletores


traga à tona as vedetes, os boêmios e os 

admiráveis inferninhos perdidos


e quitinetes lotadas de sonhos e ingênua 

busca da prosperidade


a fantasia, o medo e a aventura num 

ménage a trois dos sentidos


copacabana dos encantos doidivanas, dos 

malucos geniais e dos engomadinhos


o mar vadio e um exército de edifícios 

fazendo sentinela na terra 


o Atlântico Sul de tantos amores e 

folguedos, sempre renovado


Copacabana da Prado Júnior, um caldeirão 

de gentes e cores


o carnavalesco Clóvis Bornay ajeitando o 

cavanhaque na porta do Coruja Bar


os jovens Luiz Carlos Lacerda e Leila Diniz a 

caminho do Beco da Fome


o árbitro Armando Marques descendo a 

Figueiredo Magalhães todo prosa


a espetacular modelo Georgia Wortmann na 

caixa da loja de pão de queijo


batalhões de estranhos lutando por um 

lugar ao sol e o pão nosso de cada dia


Copacabana, musa decana, garota dourada, 

império de céu e mar


[dai-nos a paz


("Nada vira do avesso II", Caio Lima e Paulo-Roberto Andel, Vilarejo Metaeditora, 2020)

sexta-feira sete

ACORDEI muito antes do razoável em mais um dia nessa terra de angústias. Dormi um pouco antes do normal, desabado, depois de ver meu time desperdiçar a chance de uma vitória - foi uma das únicas coisas legais do dia, além do aniversário da Marina. De resto, mais um dia difícil. Não que eles não existissem, mas é que tem sido cada vez mais difícil ser brasileiro. Dor por toda parte. Dor. Indiferença. Intolerância. Incompreensão. Escrotidão, até mesmo de quem se diz consciente das questões sociais. Errar é humano, mas o brasileiro médio tem exagerado. 

LÁ FORA tem o silêncio. Enjoy the silence. Eu adorava o silêncio em noites no campo, quando era escoteiro. Todos estavam dormindo e eu de prontidão. Gostava. Tinha quinze, dezesseis anos, acreditava no mundo e nas pessoas. A ingenuidade é um tesouro.

Agora tenho medo do silêncio. Ele sugere abandono, ausência, alvorada decadente. Ligo a TV para não me sentir tão sozinho. Bem ao longe passa um ônibus lentamente, freando. As ruas já são vazias de dia, imagine à madrugada. Quando fui um garoto de Copacabana passando hora na rua, perto da portaria, até meu pai adormecer do inferno e poder ir para casa, eu via um certo silêncio na madrugada, só que naquele tempo o bairro era cheio de gente transitando à uma ou duas da manhã, cheio de carros e luzes no asfalto, como se fosse Nova York tropical. Havia silêncio na praia noturna também, mas os gritos do futebol cortavam a mudez, além dos risos dos casais que transavam à beira-mar.

Sinto saudades das sextas-feiras. Às vezes marcávamos um chope num bar preferido. Sempre preferi os mais vazios, onde se possa conversar. Escutar o interlocutor é puro respeito. Antigamente eu tinha colegas para isso, mas acabou muito antes da pandemia, é que as pessoas precisam pensar em si mesmas e isso não costuma contemplar o outro. Seria bom tomar uma cerveja depois do expediente, ter algum alívio, fingir por alguns instantes que a vida é boa, mas passou. Os poucos bares sobreviventes estão vazios. Perdemos o que havia de melhor. 

Seis da manhã. Estou suado. Vou tomar um banho. Na TV passam os gols da rodada com uma pressa imensa, mal dá para ver direito. O gol precisa ser respeitado. Quase ninguém liga. 

Estou cansado. A padaria ainda não abriu. Vou comprar três pães e comer antes de ir para o trabalho, sonhando com clientes que não sejam muquiranas. Sonhando com a vida digna que perdi, com um país que minimamente existia. Tudo isso é real, mas não passo de uma personagem. Pessoas vão curtir com lágrimas, desejar força e manter distância. Outras, muito poucas, vão tentar ajudar. Só os mais sensíveis vão entender que a prosa não é uma autobiografia. A dor existe mas somente os mais sensíveis irão entender. 

É sexta-feira de manhã. Os bares morrem numa quarta-feira. Ontem foi dia de chacina. Até quando seremos uma república federativa cheia de gente estúpida, desprezando o próximo e se entorpecendo com um falso amém cheio de ódio, uma falsa dancinha no reels, um inútil textão lacrador até que venha uma nova chacina, um novo crime hediondo, uma nova chacina, uma nova chacina, o sonho da redenção do próximo jogo, a próxima sexta-feira nublada com cheiro de ruas tristes? 

Estou cansado. São seis e treze da manhã. Nenhum ônibus passa. Um rapaz chora na televisão, contando de muitos tiros na porta de um bar. Tudo é inútil: corpos empilhados, vinte e quatro suspeitos mortos, um policial morto, barões do tráfico e da milícia sorriem, não faz diferença. Corpos empilhados garantem o sucesso dos negócios. 

Cidade maravilhosa, cheia de encantos mil. 

É quase tudo verdade. 

@pauloandel

Sunday, May 02, 2021

hamburguer

Queria comer um hamburguer. Tou com fome. Comecei a olhar o iFood e tudo é caro demais. Então resolvi desabafar um pouco e depois volto para lá. Aqui praticamente é meu único canal de troca e diálogo, enquanto ainda é possível.  

Lembrei de quando era garoto e ficava contente quando meus pais me davam algum dinheiro, suado, e eu economizava tudo para lanchar no Sumol ou na grande lanchonete que ficava na esquina de Siqueira Campos com Barata Ribeiro, cujo nome já não recordo. Ou ainda o Bolonha, que o bozismo acabou de sepultar. Todas essas lanchonetes estão mortas. Todas tinham bifes próprios, suculentos. 

Por metade da década de 1980, o Gordon foi minha lanchonete oficial. Cheguei até a lanchar lá em pleno ano novo: eu e Fred comemos bastante, porque as garotas não aguentaram os sanduichões e faturamos. Havia um balconista educadíssimo chamado Misaque, homônimo de uma vítima da máfia carioca naquele tempo. O Gordon tinha crepe e sundae divinos, mas era impossível não pensar no Big Gordon, no Goleiro, no Angélico, no Toreador e no simpático Tudo. 

O Bob's da Domingos Ferreira era maravilhoso. Xuru morava bem em frente. 

O hamburguer da UERJ não era espetacular, mas quebrava um galhão em noites de muita fome e pouco dinheiro. Tenho saudade. Ando com saudades demais, não é saudosismo, não é oco, mas saber que era muito bom apesar das dificuldades - nunca é fácil quando você tem vinte anos de idade e precisa arrumar um emprego com urgência para ajudar seus pais, num país governado por Collor (claro que hoje é incrivelmente pior). 

(Enquanto penso, Noel Gallagher toca no programa de Jools Holland).

Falei de hamburgueres porque gosto. Pode ser de carne, pode ser vegetariano, pode tudo. 

(Lá fora começa o maldito silêncio sepulcral das noites de domingo).

Antes dos artesanais, eu ia sempre com Marina no Burger King do Barra Shopping, na verdade um pretexto para irmos à Livraria da Travessa e FNAC. Passávamos o dia lá. E pensar que o Brasil já teve FNAC...

Antigamente não se vendia caixas de hamburguer no supermercado. Quando a Sadia começou, minha mãe comprou uma com doze bifes, mais pão redondo com gergelim e queijo Chisi. Foi uma festa em casa. Tomate, cebola, maionese. Ela ficava contente demais quando me via lanchando porque sabia que eu estava contente. Quantas pessoas ficam felizes por saber que você está contente? Já se permitiu pensar a respeito?

Eu não sou egoísta porque estou falando de hamburgueres num país onde 110 milhões de pessoas não têm garantia das refeições diárias. Na verdade eu queria era que todas elas tivessem acesso aos pratos saborosos e aos hamburgueres também. Quantas pessoas você conhece que se preocupam DE VERDADE com a fome dos desconhecidos?

(Noel Gallagher sente saudades de David Bowie enquanto conversa com Jools Holland. Aimee Mann canta. Você se lembra dela fazendo vocais para o Rush?)

Vou escolher um hamburguer modesto mas não consigo pensar na garota que sumiu em Niterói, torcendo para que ela esteja bem, é irmã da amiga de um amigo meu e gostaria que ela estivesse bem. É tão jovem, bonita, tem o mundo pela frente, não pode desistir. 

Quando o sanduíche chegar, vou caminhar sozinho pela memória e saudar a velha Copacabana que me deu tantas coisas boas. Um bom sanduíche era o mundo. Estou deitado em casa. Espero ser vacinado e ficar mais alguns anos por aí, procurando esmolas de bondade cada vez mais escassas, já que meu país é na verdade um depósito de crueldade semeada em shopping centers - eles têm bons hamburgueres, é um alívio. 

(Algumas das piores pessoas que já conheci me abraçavam, me beijavam e me chamavam de querido, tudo muito pior do que no tempo em que eu comia um sanduíche sozinho, mas feliz, num balcão simples). 

@pauloandel