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Wednesday, April 17, 2024

Disappointed

Public Image Ltd., 1989


What friends are for?

What friends are for?

What friends are for?

What friends are for?

What friends are for?

What friends are for?


Promises, promises

Old tired, worn out second hand sentences

One thing, with you is certain

You're a really sad person, so sad


Disappointed a few people

When friendship reared its ugly head

Disappointed a few people

Well, isn't that what friends are for?


What friends are for?

(What friends are for?)

What are friends for?


You, you're just a really bad person

Who won't, you won't, listen to anyone

No not you, with those half moon eyelids

Just babbling on, your useless defenses, so sad


Disappointed a few people

When friendship reared its ugly head

Disappointed a few people

Well, isn't that what friends are for?


What friends are for?

(What friends are for?)

What are friends for?


This erratic haphazard, fluttering

This toing and frowing, like a confused moth

The collusion, illusion, it's all ad infinitum

You're a really sad person, you're really so sad


Disappointed a few people

When friendship reared its ugly head

Disappointed a few people

Well, isn't that what friends are for?


What friends are for?

(What friends are for?)

What are friends for?


Fools and horses

Running their courses

And brow beaten down

Like dust on the ground


You cheat easily, like sweet charity

And all of the bastards, the world despises

Springing surprises in newer disguises

You cheat easily, like all charity


Tuesday, April 16, 2024

cotidiano

 

os artistas tentando

esculpir amor 

frente

ao mundo em chamas 

com cheiro de 

carne queimada,

solidão e fracasso 

- os artistas insistem! 

Sunday, April 14, 2024

Janjão

(Publicado originalmente em julho de 2022)

Há muitos anos, mais de vinte, eu saía do trabalho a pé para casa e Seu Janjão me cumprimentava com um oi, um aceno de mão ou algo simples. Ele morava com a família num sobrado a metros do meu prédio, e lá ficava com sua cadeira na porta. Praticamente de segunda a sexta, todas as semanas, todos os meses em fins dos anos 1990. Nunca falamos nada além dos cumprimentos, mas eu achava legal que um vizinho me reconhecesse e se preocupasse em dar um oi. Parecia coisa boa das cidades do interior. Ele me lembrava o Seu Madruga, ahaha.

Era uma época difícil: meu pai parou de andar, o mundo desabou mais uma vez e lá estava eu sob os escombros. Amigos deram as costas, a injustiça era a sina. Ia e voltava do trabalho para casa. Tudo era racionado para que pudéssemos sobreviver (nada diferente de agora, exceto por não ter mais família). A internet estava começando e ainda viria muito ódio pelo caminho. 

Muitas e muitas vezes eu vinha pelo caminho amargurado, triste, mas perto da portaria o Seu Janjão acenava e eu me sentia melhor. Eram dias em que as pessoas basicamente só falavam comigo por motivo de trabalho. Pelo menos eu tinha a MTV para me distrair. Dureza. 

Em algum feriado em casa ou folga repentina, alguém bateu à porta numa tarde de sol. Não esperava ninguém, achei estranho, fui espiar. Era um garoto, pedindo colaborações para o velório do Seu Janjão, que morrera de manhã. Fiquei paralisado. Peguei a carteira, dei o que tinha, o rapaz agradeceu e foi batendo em outros apartamentos. Passei o resto da tarde pensando naquele senhor educado, que nunca soube meu nome mas fazia questão de me cumprimentar. Aquilo me entristeceu profundamente.  

Dias depois, voltei à rotina de trabalho. Vinha da Rua do Senado, pegava o último trecho da Mem de Sá e logo o começo da Rua de Santana. Perto de casa, nenhum aceno ou oi. Não havia um cumprimento. Perdi para sempre o amigo que se preocupava comigo, mesmo que sequer tenhamos sido amigos de ofício, claro. O que importava era a generosidade, o apreço, o velho sentimento de fraternidade. 

@p.r.andel

Para voltar no tempo

Neste exato instante eu gostaria de encontrar com meu amigo Fred e partir para o supermercado, não qualquer um, mas Supermercado Leão. Lá chegando, a gente compraria pão francês, Coca-Cola ou Pepsi - dependendo do Fredão - e pasta de pão Alouette de ervas finas, tudo para fazer sanduíche quando chegássemos na casa dele e, depois, jogarmos um carteado daqueles de gastar à tarde, quando você tem 18 ou 19 anos de idade e, claro, não tem emprego nem ocupação afora o estudo. 

Queria também que o Gustavo nos ligasse e, de repente, aparecesse  com aquela sacola cheia de discos que ele carregava, LPs maravilhosos e capas antológicas, e tome Kraftwerk, Rolling Stones, Level 42, Yes, Genesis e tudo mais que você possa imaginar. 

Eu queria também estar na casa do Ricardinho bem tarde da noite, enquanto ele Fred se digladiassem numa batalha de Atari - Enduro, Pitfall, Space Invaders. Nunca joguei nada, sempre fui uma pereba em diversões eletrônicas e nem participava, mas gostava de ver. Sempre gostei. Geralmente a gente saia de lá à meia-noite, talvez uma da manhã e vinha solitariamente pela Santa Clara, até entrar na Boca do Lobo, ganhar o Bairro Peixoto deitado em silêncio esplêndido, depois voltar para casa. 

Acho que eu queria mesmo era estar por volta das seis da tarde de sábado no Bar Sniff’s, depois da reunião dos escoteiros. A gente sempre se reunia por lá para bater papo, trocar ideias. Os frequentadores mais velhos sempre nos escutavam e nos davam atenção, a gente ria com as galhofas e piadas típicas dos anos 1980 e ficava ali até nove ou dez da noite, nem saía, era nossa diversão muitas vezes. 

Sei lá, eu queria agora descer e caminhar tranquilamente pela Figueiredo Magalhães até chegar na praia, depois caminhar ao lado do Atlântico Sul até chegar na Francisco Otaviano, subindo toda e encarando as pedras do Arpoador. Quantos poetas fizeram isso, né? Cazuza deixou isso registrado em “Faz parte do meu show”. 

Há uns 15 anos ainda tive chance de pegar os últimos momentos do Cirandinha, lanchei lá várias vezes com colegas dos tempos de escola. A comida era impecável e o ambiente refinado. Muitas senhoras marcavam chás para se reunir e conversar, enfim, encontrar as velhas amigas. A gente se sentia bem em casa, seria bom estar lá agora. 

Quer saber? O que eu queria mesmo, mesmo, bem lá no fundo, era ser bem pequeno para passear com meu pai quando ele me dava a mão. A gente caminhava pela rua muitas vezes. Nós não tínhamos destino, a gente simplesmente saia de casa, dava uma volta por algum lugar do universo Copacabana, lanchava alguma coisa e retornava. Foi assim que eu descobri os nomes das ruas, dos prédios e dos lugares. Geralmente era aos sábados à tardinha. E quando você tem a mão do seu pai para segurar, viver é muito mais fácil. 

Querer tudo isso é impossível. É voltar ao passado, ressuscitar quem já se foi e ter a verdadeira chance de voltar para casa. Eu sei que é impossível, que viver é melhor que sonhar, mas numa noite melancólica e silenciosa talvez só o sonho possa me estender os braços. 


Sunday, April 07, 2024

Me dá um Barão?

Eu era garoto, tinha uns dez anos. Certamente minha vida foi melhor do que a de 90% das outras crianças, mas esteve longe de ser fácil. 

Estávamos muito pobres, meus pais batalhavam demais. 

Surgiu o Barão, em meio à inflação. Era um sonho. Eu quero um Barão. Você me empresta um Barão? A nota de 1.000 cruzeiros estrelada pelo Barão do Rio Branco. 

Foi uma das cédulas mais queridas pela população, embora a maioria não tivesse nada.

O Barão me traz à tona um tempo distante, longe de ser fácil mas que me dá saudade. Não é saudosismo, mas saudade. É que essa coisa dos sete aos catorze anos passa com velocidade astronômica, a gente não aproveita direito e, quando vê, tudo voa longe. 

No tempo do Barão, meu grande sonho era o lanche no Bob's da Domingos Ferreira. Às vezes meu pai me levava lá. Minha mãe preferia o da Avenida Copacabana, ao lado do Externato Santo Antônio. Tudo se foi. 

Ou ganhar um time de botão cristal Gulliver. O do Fluminense era lindo, verde vivo, com o escudinho envolto por um círculo amarelo. Wendell, Miranda, Moisés, Edinho e Carlinhos; Pintinho, Cléber e Rubens Galaxe; Doval e Zezé. Faltou alguém. 

Ou ganhar uma linda bola de couro com 32 gomos e me sentir um craque feito aqueles que apareciam no "Gol: o grande momento do futebol", programa da Band apresentado por Alexandre Santos, só com gols, gols e gols maravilhosos. Tinha Ademir da Guia, Leivinha, Ailton Lira, Edu Bala, Sócrates, Palhinha, Serginho e também as feras do Rio: Luisinho, Tita, Nunes, Cláudio Adão, Roberto, Zico, Luisinho das Arábias. 

Sonhar com os times de vidrilha da loja de brinquedos Dom Pixote, que ficava na Santa Clara, bem em frente às Massas Suprema com seus inigualáveis pasteizinhos. 

Outro sonho de garoto: ir à Kayat Sports da Figueiredo Magalhães (que não sei ao certo se era do Seu Carlson Gracie ou não) e comprar o escudo tricolor bordado, lindo, mais um número 5 verde, do Edinho, daqueles de grudar na camisa passando ferro. Com o escudo e o número, era só comprar uma camiseta Hering branca e fazer a camisa de futebol mais bonita do mundo. O problema era que dinheiro não era nada fácil e conseguir um Barão...

A gente jogava bola na vila, quase todo dia. Na praia também, até o início da noite. Quando escurecia, não dava pra ver mais nada. Ver a praia de Copacabana hoje toda iluminada é engraçado: os mais jovens nem sabem que a iluminação só começou em fins dos anos 1980, talvez 1988 se não me engano. 

Morria de medo de tirar uma nota vermelha. Podia perder a bolsa de estudos. Não podia errar. 

Sempre que dava, via desenhos animados com minha mãe. Flintstones, Pepe Legal, Papa Léguas, Corrida Maluca. Até hoje vejo no YouTube. Só falta a mãe do lado. 

[A dor de ser órfão é tão grande que não há como descrever, apenas sentir

Às vezes a gente jogava botão no Shopping dos Antiquários, debaixo da escada rolante. Só fiquei chateado um dia, quando os amigos não queriam que eu participasse do campeonato porque "ganhava tudo". Eu podia até ganhar, mas minha grande alegria era jogar. Até hoje me sinto bem só de mexer nos botões em casa. 

Quando tinha grana em casa, minha mãe fazia Strogonoff e bife à rolê. Nos tempos de maré baixa, carne moída com arroz, ou asinhas de frango. Pouco importava: com ela e meu pai em casa, eu acreditava até em felicidade plena. 

@pauloandel

Saturday, April 06, 2024

A alma aflita das ruas

Ó, seguinte: dentro do futebol tem uma turma que me conhece, já fiz bastante coisa. Agora, fora dele, meu anonimato é garantido. 

Não faço parte de correntes, de ondas ou de estilos; não tenho amigos em postos-chave da mídia para me exaltar; não tenho grana para a devida promoção; faço lançamento de chinelos e bermuda confortável. E também não me identifico como novidade porque já sou velho para isso.

O que faço é escrever. Faço porque gosto, agora sem precisar me preocupar com o editor muquirana, que pretende cortar páginas para economizar papel. E escrevo o que quero. Este livro, por exemplo, nasceu do incentivo do mestre Luiz Carlos Lacerda a postagens que fiz por aqui, contando pequenas histórias de pessoas humilhadas em meio à pandemia - gente que chora de fome, que não tem casa, que só tem a mão espalmada para ter o que comer, gente considerada invisível por muitos. E tem morte, dor, lágrimas, sexo gay e hetero, mais uma série de reflexões sobre o fato de sermos eternas crianças, mesmo estando tão longe disso. 

Enfim, para quem quiser conhecer parte do meu trabalho fora do futebol, este é meu livro mais recente. Tenho um blog há 18 anos no ar, mas banido aqui pelo Facebook sem justificativa plausível. Eu não sou nenhuma promessa da literatura do Brasil, não trago a mulher/homem amada(o) em três dias e, com exceção do próprio Bigode (que fez uma maravilhosa apresentação do Alma no Correio da Manhã), o resto não deu um pio sobre. Meu livro é humilde e independente, porque não aguento mais pagar 50% de consignação para quem não faz nada por ele. Mas desancar um livro sem lê-lo fica para os idiotas e ressentidos - somente eles têm capacidade para isso. 

Se você tem curiosidade sobre a degradação do Rio em Copacabana e no Centro durante a pandemia, que é a minha própria degradação também, taí. É barato e vai pelo Correio para todo o Brasil. 

Blog otraspalabras. http:// paulorobertoandel ponto blogspot ponto com. 

Encomendas WhatsApp 21 99634-8756.



Wednesday, April 03, 2024

Copacabana sussurra

VOLTEI a Copacabana. Eu sempre volto. Na verdade meu coração e espírito sempre navegam por lá. Mesmo trinta anos depois de ter sido expulso pelo crime de ser pobre. Mesmo depois de tudo. Eu vivo intensamente as ruas abandonadas do Centro e de outros bairros, mas de alguma forma sempre estou em Copacabana. Então peguei o metrô à meia-bomba na Cinelândia e fui tranquilo para a Siqueira Campos. É sempre melhor descer pelo Aterro, ver o lindo recorte da natureza que vai até o Pão de Açúcar - a cidade tão bonita mas usufruída por tão poucos -, depois entrar no Túnel Novo e se sentir num verdadeiro túnel do tempo - eu brincava disso quando era criança - até fazer a gloriosa curva à direita que desemboca na Barata Ribeiro. Acontece que eu tinha tempo curto para chegar, então o metrô é uma garantia - cara. Queria chegar a tempo no mitológico sebo L. O. Matta, que é muito bom, com excelentes discos - as atendentes são maravilhosas, o dono não. Deu tempo de pescar um João Gilberto, era o que bastava. João foi de Copa, morou com João Donato perto da Cardeal Arcoverde, é coisa nossa. Fechada a loja em minutos, naveguei pelo Shopping dos Antiquários, reverenciei meu bar morto, espiei o prédio onde morei por 16 anos, outro que frequentei por dez e sonhei encontrar algum conhecido, mas não aconteceu. Olhei bem para as lojas, elas são totalmente diferentes do que eram há trinta ou quarenta anos, mas o shopping tem uma atmosfera inconfundível. Vi uma doceria com tortas lindas e quis comprar um pedaço para a Marina e outro para minha mãe, só que Marina está a 70 quilômetros e minha mãe, ah, talvez nunca mais ou no infinito, talvez somente dentro de mim mesmo. Voltei para o metrô e saltei na Cantagalo para encontrar meu amigo Raul. Nós abraçamos e caminhamos um pouco pela Aires Saldanha, com vários bares - um rapaz e uma garota, promoters da região, nos convidaram a entrar mas tínhamos um compromisso inadiável com o Caravelle. Agradecemos, os dois eram uma simpatia, seguimos nosso caminho. Pouco tempo depois, estávamos comendo a melhor pizza napolitana do mundo - não há como explicar, só indo e comendo, mas aquela pizza tem um sabor único, feito quando você ouve King Crimson ou lê Jack Kerouac - ou ainda mestre Ivan Lessa. Comemos, rimos, fofocamos, lamentamos a ausência dos amigos de mesa e no fundo, talvez bem no fundo, não vamos lá só para comer a melhor pizza do mundo, nem somente para lembrar de todos os ótimos garçons que nos atenderam lá por décadas a fio - todos se foram -, mas é que o Xuru morava no prédio ao lado do Caravelle e, inconscientemente, a gente carrega uma ridícula esperança que ele apareça rindo e sente à mesa. É impossível porque Xuru morreu há mais de dezoito anos, mas continua presente em nossas piadas, diálogos e sentimento. Mais cedo, no Centro, encontrei Pedro, que está conosco há quarenta anos e agora está perto do meu trabalho outra vez. Depois da melhor pizza do mundo, encaramos um sorvetinho e aí era inevitável lembrar do Solar dos Couceiro, onde nos conhecemos e vivemos grandes dias de nossas vidas. Só que tudo que é bom acaba rápido e perto das oito e meia nos mandamos porque tinha Fluminense na televisão. Nós não somos torcedores do Fluminense, mas sim peregrinos dele - o perseguimos desde sempre e provavelmente morreremos assim. Até a hora da conta falamos de muita coisa, de muita gente querida e de histórias excêntricas. Agradecemos aos garçons por tudo, Raul foi para um táxi, eu peguei um Uber e cheguei em casa quinze minutos depois, uns dez antes do jogo. O Fluminense só empatou, paciência. A Cler deve ter ficado revoltada. Cochilei um pouco depois do jogo, acordei, trabalhei um pouco, tomei uma Coca-Cola geladona em lata e agora estou aqui. Não tenho sono, tenho um monte de problemas e dores, tenho uma 45 apontada para mim, tenho esperança no novo dia que já se avizinha. Penso num novo livro, em ir ao CCBB, ao É Tudo Verdade. São três e meia da manhã e toca Nirvana numa chamada do Canal Bis. Tudo isso é apenas pano de fundo porque ainda estou hipnotizado por Copacabana, porque trinta anos depois ainda sinto saudades de Copacabana, de ficar de mãos dadas com a mulher amada perto da água na Figueiredo de Magalhães. Porque penso que até o fim dos anos 1980 a praia incrivelmente não era iluminada. Porque eu ainda lembro de Fred, Marco, Luiz Magno, Ricardinho, Gustavo e eu na mesa de carteado. Porque eu lembro da Claudia, e lembro das outras garotas que iam e vinham na casa do Fredão - ele também se foi cedo demais, assim como o Luiz. Tudo é Copacabana. São três e meia da manhã, o ventilador me refresca feito ar condicionado e alguma coisa me traz a aragem de Copacabana. Terra de meu amigo Luiz Carlos Lacerda, cineasta consagrado e aclamado. Terra do divertidíssimo DJ Zé Pedro - Crepúsculo de Cubatão, quem se lembra? Eu preciso dormir, mas Copacabana sussurra: "Espere um pouco mais, meu bem."

@p.r.andel

Sunday, March 31, 2024

60 anos de nojo de 1964

Eu não aprendi sobre a ditadura imunda na TV, nem nos livros. Só a posteriori. Eu a vivi dentro da minha casa, desde que nasci, e até hoje carrego sequelas irrecuperáveis dela. 

Aos oito dias de VIDA, fui carregado por minha mãe desesperada. Ela saiu correndo de casa depois que soldados foram à nossa casa para prender meu tio, um jovem estudante de 23 anos. Um simples tropeço da minha mãe na rua, também uma jovem de 23 anos, teria sido a minha morte, mas felizmente não aconteceu. 

Tempos depois, novamente para prender meu tio, a ditadura simplesmente deteve meu pai para usá-lo como refém. Desesperado, o irmão se entregou. Nunca fez mais do que reuniões no Partido ou panfletar contra a ditadura em passeatas, mas ditadores são assim: covardes. Prenderam-no, deram-lhe o abominável "telefone" e lhe tiraram uma das audições. Não aguentando mais, um garoto que tinha sido criado em colégio interno, órfão, virou um jovem humilhado que teve como única saída o exílio. Nunca mais voltou. As sequelas da ditadura contribuíram para seu suicídio, anos mais tarde. 

Deprimido, aos poucos meu pai caiu no alcoolismo e isso nos provocou uma tragédia familiar e econômica que jamais superei. Só parou de beber quando não pôde mais andar, e isso foi o que lhe deu uma sobrevida de treze anos. 

Minha mãe sofreu demais. Jovem ainda, passou a ter vários problemas de saúde que abreviaram sua vida. Faleceu com 61 anos, mas uns 100 de sofrimento.

Além de destruir a harmonia da minha família, a ditadura ainda me expulsou de uma escola no jardim da infância. Numa excursão até à Praia Vermelha, simplesmente perguntei à Tia Diva porque a praia tinha aquele nome. Perto dela, estavam dois senhores de farda. Nunca me esqueci do olhar odioso que me dirigiram por uma pergunta da criança. Psicopatas, queriam saber quem era a criança de "traço comunista". Foram à escola, pegaram meu nome, encontraram o do meu tio, avisaram que eu deveria ser expulso para não contaminar as outras crianças. A diretora recebeu minha mãe e, chorando, comunicou minha expulsão. Uma semana depois, eu estava em outro colégio, sem saber de nada. 

Ah, muito provavelmente foi a ditadura que sumiu para sempre com a Lúcia, que era minha babá em 1973. Morávamos uma temporada bem no Largo de Cascadura. Ela desceu para comprar pão e nunca mais voltou. Meus pais desesperados foram em delegacias, hospitais, no IML, choravam o tempo todo, eu vivi aquela agonia. Isso tem 51 anos. Sou o único sobrevivente daquela casa. Nunca mais tive sinal de Lúcia. E por que teria sido a ditadura? Simples: porque naqueles anos e nos seguintes as pessoas simplesmente "sumiam" para sempre, num tempo em que o tráfico e a milícia engatinhavam. 

Perto de 1979, o Jorge sumiu. Trabalhava num depósito de bebidas que ficava na Figueiredo Magalhães, em Copacabana, perto da Vila. Nada disso existe mais: é o terreno do Metrô e do Batalhão da PM. Lá para 1981, quem sumiu foi o Carlos, jornaleiro. A banca de jornais simplesmente ficou sem abrir por dez dias, o dono apareceu, ninguém tinha notícias. Veio um novo jornaleiro. Carlos, nunca mais. 

Uma coisa que sempre me intrigou foi quando me tornei um torcedor mirim fanático. Eu ouvia todos os clássicos do Maracanã, meu pai me levava e tal. Pois bem: volta e meia noticiavam que alguém morreu na geral, tentando roubar alguém, teve troca de tiros. Estranho é pensar que alguém entrasse armado justamente no setor mais popular do estádio, com muitas pessoas pobres ou muito pobres, para roubar - os outros setores tinham gente com mais grana. Ao mesmo tempo, se sabia que muitos militantes de esquerda gostavam de ver jogos na geral para ficarem com o povo. Será uma coincidência a morte de tantas pessoas ali? É um assunto silenciado. 

A maldição da ditadura tirou a saúde dos meus pais. Doentes e sem renda, passei a sustentar a casa. Isso ajuda a entender minha penúria e minha ausência de bens. Mas eu não deixei de produzir: fiz muitas estatísticas e escrevi muitos livros. Mas é difícil, muito difícil viver com esse peso. 

Se a ditadura fez tanta coisa ruim para quem era literalmente inofensivo, imagine todo o resto que já descobrimos nos arquivos pavorosos. Em nome de uma farsa corrupta, torturaram, mataram, estupraram, incendiaram, esquartejaram e desintegraram muita gente. Vários dos crimes horríveis que você vê na TV, cometidos pela milícia e pelo tráfico, são reproduções de técnicas utilizadas pela ditadura. 

Quanta gente foi socada no sanatório de Barbacena para morrer em vida? Ou jogada na Baía de Guanabara? Ou enterrada na então deserta Zona Oeste do Rio há 40 ou 50 anos? 

E que ninguém seja ingênuo: houve muita corrupção. Muita. Essa é a principal motivação de todo golpista. Só verdadeiros otários acreditam nesse discurso de pátria, família e religião - é melhor trocar por hipocrisia, desfaçatez e corrupção. 

Há muitas pessoas feito eu por aí. Algumas não falam porque são traumatizadas. Outras, porque têm vergonha de se expor. E outros motivos. Só que muita gente sofre com isso. São dores na alma, no peito e na geladeira vazia. Na saudade das pessoas queridas, que poderiam ter mais tempo na Terra. 

Eu tenho o mais profundo nojo das pessoas que defendem a ditadura. A elas desejo as piores coisas. Essa não é uma causa de ricos contra pobres, de brancos contra negros, de conservadores contra progressistas, de direita contra esquerda, mas sim a causa dos seres humanos contra monstros que defendiam e defendem - ainda - o nazifascismo, e isso é intolerável. 

Há pouco o Brasil quase passou por mais um golpe. Que as pessoas tomem consciência dos fatos e pensem em suas famílias, em seus filhos. Não é mais possível que em 2024 as pessoas defendam uma aberração como a ditadura. É inaceitável e merece as piores reprimendas. 

Nenhuma criança deveria ter passado pelas coisas horríveis que eu passei, por causa dessa ditadura nojenta. E o pior é que, perto do que muitas sofreram, eu sou até um privilegiado. Não fiquei na primeira fila da sessão do horror. 

A você, que tolera ou defende isso, pense que as pessoas mutiladas, estupradas e covardemente assassinadas poderiam ser suas próximas, ou até da sua família. A ditadura começa eliminando seus alvos prioritários, depois ataca qualquer um. E se você vê algo parecido com a milícia e o tráfico, isso está longe de ser mera coincidência. 

@p.r.andel

Tuesday, March 26, 2024

03:00 AM IN NYC

Não há ninguém no Grant's a essa hora. Nem Grant's há. Não se come mais grandes pratos baratos de comida à noite.

O mesmo vale para o Five Spot. Nem pensar em esperar por Thelonious Monk batendo o pé no chão para marcar grandes temas de jazz. 

Agora é tarde.

JAZZ IS DEAD. 

Os velhos e bons beatniks que iam e vinham pelos bares à noite estão todos mortos, ou tão velhinhos que nem saem mais de casa. 

E se Thelonious não bate o pé, onde procurar os novos gênios do jazz? Gênios, gênios, nunca mais, mas há grandes músicos. É difícil alguém construir coisas para estar na mesma prateleira de Charles Mingus ou Miles Davis. Muito difícil. 

Nem jovens rapazes muito doidos do tipo que curtiam os primórdios do Velvet Underground. Rapazes de preto com sapatos de bico e cara de tédio. Jovens mulheres, lindas de qualquer maneira. O rock underground ainda resiste, algumas bandas que também herdaram o estilo do Joy Division: Interpol, The National e similares. 

Será que alguém ainda curte turmas da juventude? Somos ocupados demais, todos teclam o tempo inteiro em seus delicados smartphones e iPhones. Ou ficamos a escutar música rasa com fones vulgares. 

Todos vão mais cedo para casa agora. Quase todos. Não serei injusto: ainda existe arte e desafio na noite de Nova York, mas o problema é que ninguém mais vai escrever "Walk on the wild side". Até mesmo os escritores são outros: não há Kerouac ou Burroughs, nem a poesia de Ginsberg, nem Gregory Corso. Quem vai descobrir e contar as novas histórias do down by law? 

Tudo bem: vamos tentando de alguma forma. Se o melhor já passou, vamos tentar viver os tempos modernos da melhor forma possível. 

JAZZ IS NOT DEAD. 

Alguma coisa acontece nos corações sedentos quando procuram vestígios dos escombros do Grant's ou do Five Spot. Prosseguimos.

Sunday, March 24, 2024

Os 40 anos de 1984

Quarenta anos por extenso, 40 anos.  

Tudo passa tão rápido, mas ao mesmo tempo 40 anos parece tempo demais. 

É que vivemos ocupados, apressados, temos que lutar pela sobrevivência, nunca temos o tempo devido para viver. O jeito é tentar espiar a paisagem pela janela do trem ou o reflexo da janela no metrô. 

De repente, tô olhando para a televisão e acabou o verão de 2024. Alguma coisa me teletransporta para 1984. São 40 anos. 

Os 40 anos da estreia do Sambódromo maravilhoso no lugar do eterno entra e sai das ferragens de João Mendes na Marquês de Sapucaí.

Lá se vão 40 anos dos Jogos Olímpicos de Los Angeles. Quem se lembra de Mary Lou Retton? E da bela canção tema do evento cantada por Christopher Cross, “A chance to heaven”?

Talvez 40 anos para se pensar no título do grande livro de George Orwell.

Ou quando eu era garoto de Copacabana, ainda ia à praia e gostava dos horários mais desertos possíveis, de preferência no comecinho da manhã. É uma das mais belas paisagens da natureza humana. 

Há 40 anos eu acampava num dos lugares mais lindos do Brasil, o Forte Imbuí. Numa tarde nublada de setembro, naveguei pelo semblante de uma garota linda, com seu olhar perdido vagando pelo Atlântico Sul.

Em 1984 eu também estava num dos meus melhores Réveillons. Coisa de garotos. Eu, Fredão, duas amigas lindas. A gente lanchando no Gordon. Nosso atendente predileto era um jovem negro magrinho. Seu nome era Misaque. Atendia todo mundo bem. Gente boa, carioca.  

Há 40 anos, meu Fluminense pintava e bordava no Maracanã, no Morumbi e em qualquer campo do mundo. Ganhou o campeonato brasileiro, o carioca e passava o trator. Era o Fluzão demolidor rei dos clássicos e dos títulos. Paulo Victor, Aldo, Duílio, Ricardo e Branco; Jandir, Deley e Assis; Romerito, Washington e Tato. E Vica, Leomir, Renê, Paulinho e Parreira, um monte de gente. 

Há 40 anos a gente descobriu um certo Ayrton Senna da Silva, que apareceu para o mundo com sua Toleman deixando todo mundo tonto. 

Ah sim, há 40 anos Mick Jagger estava no Brasil. Começava uma guerra fria dentro dos Rolling Stones que duraria alguns anos, até a volta apoteótica da banda no final dos anos 1980. 

Há 40 anos tinha o Canecão. Grandes shows a preços populares, era fácil para ir e voltar de ônibus. Tudo era mais tranquilo. Agora com os preços explosivos, o jeito é ficar vendo os festivais na televisão. E, claro, a qualidade das bandas caiu muito, mas justiça seja feita para não viver só de saudosismo: achei bem legal o show do Arcade Fire no Lollapalooza. 

Eis os 40 anos das multidões brasileiras nas ruas pedindo a volta à democracia, as Diretas Já. Um sonho que talvez até hoje a gente não tenha vivido direito. Tivemos bons momentos e outros, terríveis.

Senhor, como pode ter tanto tempo assim? Tudo foi outro dia, eu lembro dessas coisas todas com muita facilidade. Como podem ter escorrido 40 anos desse jeito? Bem disse o poeta: o tempo não para. 

Tubarões voadores de Copa

TUBARÕES VOADORES AMEAÇAM COPACABANA

Agência Estado Psicodélico 15/09/1988

Orley Maggalhaenz - da sucursal

RIO - Uma das cenas mais aterrorizantes dos últimos tempos foi testemunhada ontem por moradores de Copacabana. Diversos relatos dão conta de que, por volta das onze da noite, uma esquadrilha de tubarões voadores não apenas sobrevoou a Princesinha do Mar, mas também sentou praça na cavalaria do bairro que nunca dorme. 

O fenômeno tido como extraterrestre foi extremamente rápido, não passando de vinte e cinco minutos, mas suficiente para deixar a população local em pânico. No entanto, ao contrário do que se poderia imaginar, nenhum dos tubarões abocanhou ninguém, embora diversas ocorrências tenham sido registradas.

A peixaria do Posto Seis foi abalroada e teve sua vitrine quebrada, alguns peixes desapareceram. Dois toldos do bar e restaurante Transa, na esquina da rua Bolívar com a avenida Atlântica, foram rasgados. Moradores do famoso edifício Chopin, ao lado do Copacabana Palace, afirmaram que um tubarão lilás passou em voo rasante na altura do quinto andar e parecia dar uma gargalhada. E turistas do luxuoso hotel Le Meridien, na entrada do Leme, desceram imediatamente para a praia com máquinas fotográficas, mas um fenômeno desconhecido impediu os registros, conforme o depoimento da estudante portuguesa Maria Teresa Salgueiro, 20 anos, aos policiais: "Eles eram uns três ou quatro, fizeram piruetas e pareciam até sorrir. Quando preparei a máquina para fotografar e apontei para eles, uma grande nuvem de fumaça vermelha e preta nos sufocou. Caímos na areia e, quando nos levantamos, eles já tinham subido muito. Um era vermelho, o outro amarelo e os outros dois não me lembro".

O caso mais inacreditável foi contado por José Roberto, o Mussum, 25 anos, figura marcante do futebol de praia e das noites de Copacabana. Ele bebia um pacífico chope no restaurante Rondinella, na praia e esquina com Siqueira Campos quando, num súbito, viu uma grande barbatana e não teve como reagir: um tubarão roxo em poucos segundos roubou sua tulipa e evadiu-se em direção ao Atlântico Sul. Disse Mussum: "Aí mané, veio o tubarão cheio de pantominági (sic) e levou meu chope novinho. Safado! Sai dessa maresia, era só o que me faltava.". Também foi deixada uma enorme cartolina, com mais de três metros de comprimento onde se lia "Free Solana Star", nas imediações da trave do Juventus, na areia, em frente à rua Figueiredo Magalhães. 

No entanto, a passagem da esquadrilha de tubarões não causou exclusivamente medo. Na boate Bolero, famoso reduto da boemia copacabanense à beira-mar, Lady K, 23 anos, requisitada garota de programa, quase suspirou pela inusitada esquadrilha marítima: "Um deles era amarelo, tão bonito, parecia que estava com a camisa da Seleção. Passou aqui pertinho mas não entrou. Eu agarrava ele!". Para o jornaleiro local Mahmoud Avahskninkar, 47 anos, há suspeita de acerto de contas: "Cê acha que o verão da lata foi de graça? Os caras mandaram recado que querem a compensação do prejuízo". Houve quem nem ligasse, tal como a senhora Wanda Wildner, 75 anos bem vividos, segundo a própria: "Meu filho, esse bairro é um zoológico. Tem urubu, pavão, veado, piranha, pomba rola, jararaca, tudo na rua, e eu vou me preocupar com tubarão? Me chama quando o elefante e a girafa estiverem no botequim da Prado Júnior, ou na pracinha do Bairro Peixoto". Por fim, o veterano DJ Monsieur Limá, ícone do bairro, vaticinou: "São tubarões malandros, vieram onde tem muita gatinha". 

As ocorrências foram registradas na 12a DP. Na ausência do delegado titular, o experiente detetive Cler Bonelli garantiu a devida averiguação do insólito atentado extra-marinho em Copacabana. 


@pauloandel

Wednesday, March 20, 2024

Sobredeus

Há  anos, muita gente diz que eu carrego Deus comigo mas não nos encontramos. Eu não consigo vê-lo nos cheiros de rua triste e faminta, com gente se decompondo a céu aberto com seus corações nas mãos. Ele não existe. Talvez ele não exista. É um tema de profunda contradição. Justamente por isso, há indícios de Deus na prática humana. Por exemplo, nas artes. Deus não existe, mas quando Michael McDonald canta ele é uma expressão de Deus. O mesmo vale para as canções entoadas por Cartola - Deus não existe mas criou aquilo. Viva a contradição. Ausente, Deus está por todo canto: nos sopros de Pixinguinha, que se consagraram no salão nobre do Fluminense - cujo uniforme todo branco, hoje quase impossível, é também uma representação divina -; nas fotos de Sebastião Salgado, nos pianos de McCoy Tyner e Tom Jobim; na beleza dos sorrisos das atrizes Fernanda Vasconcellos e Nathalia Dill - esta em cartaz na TV atualmente, ajudando o mundo a ficar mais leve - ela me lembra Juliana em algo que não sei dizer, nem cabe agora. Alessandra? Não. Gabriella? Sim. Katia? Também.

Ao mesmo tempo em que descreio de Deus num mundo cheio de ódio, guerras e desilusão, ele se faz contradição e aparece em várias sessões da tarde, como num biscoito de polvilho nas mãos de um garotinho aprendendo a andar em Copacabana, ou de mãe e filha de mãos dadas num trem da Central a caminho do culto que lhes fará bem, distante dos pastores tubarões voadores que saqueiam a alma de pessoas boas e ingênuas. 

Inexistente, Deus insiste em seus indícios. Sem vê-lo, desconfiei muitas vezes dele na praia de Copacabana pela manhãzinha, deserta, ainda segura. E nos sábados à tarde no grupo de escoteiros nos anos 1980, quando éramos pobres e ricos juntos de verdade dividindo comida, canções e abraços nos acampamentos. Também desconfiei de Deus quando passei no vestibular, porque sabia que de certa forma ele garantiria a sobrevida da minha família, o que acabou acontecendo por vários anos, até que me tornei um viajante solitário, mesmo casado. 

Eu procuro e não encontro Deus nas lágrimas diárias dos familiares dos mortos pela violência, essa estupidez que nos corrói. Também não o encontrei no mundo corporativo por onde vivi quase trinta anos, cheio de mesquinharias e maledicências, mas me livrei daquele fel. Hoje sou um homem maduro, falido e infeliz à espera da morte, e tão contraditório quanto Deus, escrevo quase que diariamente, trabalho, produzo coisas que não dão dinheiro mas deixam as pessoas felizes. 

Por muitos anos, entre os 1980 e 1990, eu achei que Deus pudesse estar entre os silêncios e o vento de Arraial do Cabo, ainda com sua entrada a asfaltar, cheio de belezas de areia e mar, com ruas calmas. Não, não encontrei, mas tive momentos felizes por lá e beijos gloriosos. Tive risadas com amigos queridos, hoje desaparecidos pela tonelada de obrigações do dia a dia. 

Os amigos que vão embora são fruto da ausência de Deus, ou suas vindas representam a mão de Deus? Quem sabe dizer com razão absoluta, sem fanatismo? 

Tudo é contradição. Ao mesmo tempo em que estou muito mais próximo do fim do que do começo, sinto que o mesmo fim parece longe porque há muito a ser feito. Acho que dá. Será? Será que vamos conseguir vencer? Deus está num canto da sala cheia de entulho, livros e discos? 

Sinto dores mas tenho certa saúde. Sinto amores inúteis e tudo bem. Sinto que a minha cidade está cada vez mais opressora e excludente, mal o sol tendo raiado - e ainda bem que perderemos 12 graus nos próximos dias, porque ninguém aguenta mais derreter em vão. 

Não são nem cinco e meia mas sinto uma fome dos diabos. Daqui a pouco vou escrever sobre o Fluminense - time para o qual torço contra, segundo os mais desalinhados, porque não acredito que Fernando Diniz chegue à unha de Deus. Eu torço contra o time que me fez escrever 25 livros...

Agora estou um pouco tonto e posso cochilar a qualquer momento. Espero que a Marina esteja vindo bem para o trabalho. Espero que o mundo seja menos opressor para as pessoas, que as crianças não morram em Gaza e que todos os criminosos de guerra sejam punidos. Sonho com um sanduíche em breve. Em ter uma casa, em pagar as dúvidas e ter saúde para escrever mais livros. Tenho o sonho beat de alguns livros atrás, pois. E procuro por Deus em vão porque sei que essa é a única chance de reencontrar meus pais. 

Lá fora o azul do céu está mudando de tonalidade. Nada de novo debaixo do sol. Os primeiros banhistas começam a chegar à orla de Copacabana, imaginários ou não.  

(Livre inspiração sobre "Obrigado, Deus", de Ricardo Soares, originalmente publicado em todoprosa.blogspot.com)

Tuesday, March 12, 2024

No que eu estou pensando?

Todo dia, há anos, o Facebook me faz essa pergunta. Eu penso em muitas coisas, eu penso o tempo todo até me cansar. Boa parte do que eu penso não desperta o interesse de ninguém, ou quase ninguém. Eu fico muito tempo sozinho e praticamente só falo com as pessoas in loco na loja. Hoje não fui, só falei pela internet. Meu pé tava doendo demais, ainda está, então precisei faltar ao trabalho. Meu sócio cobriu. Então fiquei em casa, pensei em muitas coisas e por motivo justo algumas me deixam triste demais. Não é drama, mas tristeza mesmo. Engraçado que quando falo dessas coisas muita gente se irrita. Quando falo que estou triste, quem também está mas não quer admitir às vezes se irrita. A gente vive num país estranho: o egoísta não gosta de se reconhecer nem ser reconhecido como egoísta. Isso vale também para o hipócrita e o escr0t0. Falando o que sente, você fragiliza muita gente. Só um verdadeiro amigo respeita a tua verdade, mas eles são tão poucos, poucos... Enfim, o fato é que se você fala o que realmente está sentindo, muita gente se irrita porque está pior do que você, mas jamais admitirá. Sofrem em silêncio.

Monday, March 11, 2024

Vespertina

Era sexta-feira, quase três da tarde. Entrei no VLT com destino à Praça XV. Perto da estação Sete de Setembro, uma mulher começou a falar bem alto. Disse que achou o fiscal bem bonito. Ela tinha a voz de uma senhora, daquelas que chamamos "de pigarro". E falava alto, ninguém reagia. No ponto final saltamos todos, uns a caminho de Niterói, outros para Paquetá e Ilha. Eu fui para a loteria, apenas para tentar escapar da morte. Em certo momento ficamos bem perto, eu e a senhora, e então me dei conta da avaliação equivocada. Na verdade era uma mulher dez ou vinte anos mais jovem do que eu, mas carregando sob os ombros todo o sofrimento do mundo. Amputada completamente do braço esquerdo, carregava uma garrafinha de cachaça na mão direita e sorria com sua boca desdentada. Ao contrário de todos no VLT, ela não tinha um destino: estava apenas de passagem, vagando pelas vias de dor e indiferença. Cinco ou seis segundos depois, já havia desaparecido no horizonte. Uma jovem mulher preta, amputada, alcoólatra talvez por necessidade, vivendo o auge de sua tragédia em meio à mais completa indiferença, enquanto batalhões de estranhos vêm e vão. Num súbito, me bateu uma reflexão: se dependesse de algumas pessoas que conheço, e que incrivelmente dizem ser minhas amigas, se eu fosse a exata versão daquela mulher em chamas de sofrimento, elas não fariam absolutamente nada. Seguiriam indiferentes para seus rumos. São daquelas que não querem se envolver, que se despedem de gente sofrendo dizendo "fique bem" ou "se cuida", expressões clássicas da amizade sob distância regulamentar. Escrotas, enfim. Fui para a loteria tentar escapar da morte e salvar alguns colegas. Não consegui e morri. Como os problemas não param, hoje é dia de tentar a ressurreição antes que todo mundo acorde. É madrugada de segunda-feira. Vem aí uma semana de lutas. O Fluminense perdeu. Veremos novas famílias chorando pelos corpos de seus entes queridos no IML. Garotos esfomeados com suas caixinhas de Mentos tentando vendê-las para transeuntes do Centro. A concentração de renda será cada vez pior. Enquanto isso, aquela jovem mulher negra, curtida pela dor, amputada e sem casa, continuará a vagar sem rumo, às vezes gritando no VLT para que ninguém ouça, fazendo de sua vida trágica uma pequena expressão artística. 

@p.r. andel

Tuesday, March 05, 2024

S2C

Estamos em 2034. Scarlett Siqueira Campos é uma travesti cibernética que passa dias e noites fazendo antropologia de boteco pelas ruas de Copacabana. A Inteligência Artificial abre caminho para novas interações e interpretações dentro do bairro que nunca dorme. 

Pesquisando em antigas casas de saliência de Copacabana, Scarlett tenta mapear sua árvore genealógica mutante, buscando compreender sua criação, como foi concebida e se carrega vestígios humanos alem de sua aparência física. 

Bela, ambígua, multissex e misteriosa, Scarlett transita nas altas rodas de Copacabana, nas baixas, no underground e na segurança. Habitué nas delegacias do bairro, sempre alerta para todas as possibilidades, ela tem muitos amigos nas instituições de Copa. Uma de suas fieira é Lady Miss Kler, uma sagaz policial trans aposentada que agora mora no Riachuelo, mas está sempre presente nos babados de Copacabana, gozando firme seus polpudos proventos previdenciários e outras rendas de negocinhos alternativos.

As águas de março vão trazer novos paradigmas socioculturais para os embates cotidianos do bairro. Scarlett tem a missão de mapear todas as intervenções possíveis na balzaquiana Princesinha do Mar, emitindo relatórios transatlânticos e transcendentais,  encaminhando-os para as autoridades competentes de ocasião. 

@p.r. andel

Lancheira

À época eu não tinha a menor ideia, mas uma das melhores coisas de todos os tempos era pegar a malinha com olho de gato, a lancheira e ir para a escola. 

Infelizmente, ainda é uma experiência pouco comum para a criançada brasileira. Está tudo errado e não terei tempo de ver a correção. 

Lembro perfeitamente da alegria que eu sentia na hora do lanche. Um sanduíche qualquer, um refresco e tudo bem. 

O grande problema era tirar notas altas. Só depois a gente entende o que é a vida.

Monday, March 04, 2024

Bichos

Se eu pudesse voltar no tempo, trabalharia com bichos. Não sei se toparia vê-los sofrer, mas cada vez mais o mundo só faz sentido por causa de crianças e bichos.

Durante certo tempo na infância eu tinha medo de cachorro, o bicho oficial de Copacabana. Eu era pequenininho, estava na praia, um cachorrão grandão veio e me derrubou, pulou em cima de mim. Ele era grandão e fiquei com medo. Isso durou até a adolescência e passou.  Bem antes disso, tinha a Diana, cachorrinha pequinesa da minha mãe que ela deu para uma amiga quando nasci. Toda vez que visitávamos a amiga, a Diana vinha correndo e não saía do pé da minha mãe. Que saudade. 

Tive um amigo de escola que há muito não vejo. Ele tinha vários bichos em casa: passarinho, papagaio, cachorro, gato e jabuti. Ri muito no dia em que o papagaio estava tomando banho de gotinha no tanque de roupas. 

Quando fui escoteiro (há quem diga que ninguém deixa de ser), me deparei com vários bichos. A vaca era sempre a mais legal, às vezes micos, às vezes lagartos ou uma cobra sinistra. A vaca fica na dela, vai lá, muge, volta, faz seu rango natural e anda lentamente. Enfim, era uma vida maravilhosa de garoto, natureza, silêncios, paz. Nunca mais acampei, mas lembro como se fosse ontem. 

Meu ex-vizinho tinha um jabuti e um cachorrão bem grandão que gostava de mim. O jabuti às vezes andava no corredor, era um barato. O cachorrão já latia quando o elevador estava no sétimo andar: ele me reconhecia de longe. 

Outro dia fomos em Paquetá, na Casa de José Bonifácio. Tinha outro jabuti, caminhando numa boa, rangando folhas do chão, arrancando com força a cada bocada. Uma alegria. 

Quando minha mãe deu a Diana, tempos depois morreu um papagaio lá em casa: a funcionária o detestava e o deixou no sol. O coitado morreu estorricado. Minha mãe chorou muito e nunca mais quis ter um bicho de estimação para não sofrer. Tempos antes de sua morte, falávamos de ter um passarinho, mas era muito cruel tê-lo numa gaiola. Ela foi embora e fiquei só para sempre. Aqui em casa é tudo bagunçado, não dá pra ter um cachorro ou um gato, e eu não aguento mais perder ninguém. 

Os cachorros da Kátia, o Antônio e o Cesare, eram sensacionais. Gostavam muito de mim. Convivemos bem entre 2007 e 2010. 

Sendo prático, só preciso do dinheiro que me permita sobreviver nessa terra injusta até a hora da partida. Tirando o aluguel, minha vida é muito barata, não tenho bens, não tenho nada. Mas eu gostaria de ser rico se fosse para também ajudar muita gente, planejar algo. E para ter uma fazenda bem grande, onde pudesse ter meu elefante e meu hipopótamo. Acho os dois muito legais. Gosto de ver no programa de TV a solidariedade dos elefantes. E acho muito maneiro quando limpam a orelha deles com um super cotonete de algodão. Peixe também é muito legal. 

Sei lá, trabalhar num pet shop, ter sido veterinário ou feito Zootecnia. Ou até levar os bichos para dar uma volta. Gosto deles. Gosto muito. Até a aranha do banheiro eu evito incomodar quando ela desce pela teia no frio azulejo branco. E a formiga? Pequenininha da Silva. Ser formiga é muito difícil: você pode ser assassinado o tempo inteiro por qualquer coisa. 

Queria poder cuidar dos bichos. 

Eu seria feliz.

(originalmente publicado em setembro de 2019)

Saudades da graça

Lá pelos tempos de oitenta e nove, coisa de uns dezessete anos, eu era apenas um rapaz latino-americano, sem parentes importantes e nativo da Nova York brasileira, Copacabana. Uma década antes, eu gargalhava sozinho ao ler os textos de Ivan Lessa no então vivo Pasquim, e sentia-me chateado porque nenhum outro amigo sabia sequer do que eu ria com o jornal de “oposição”, assim falavam. Adorava os palavrões, os insultos aos leitores, tudo coisas que eu não tinha a plena noção, assim como a de que Ivan é um gênio e que, se um dia eu aprender a escrever direito, devo tudo a ele, velho Ivan.


Volto aos oitenta, quase noventa. Uma dureza danada, começo de faculdade, pai contra, dificuldades. Houve um dia em que paralisaram a faculdade, voltei para casa, perto de nove da manhã, resolvi caminhar pela beira do mar em dia nublado. Desci a Figueiredo velha de guerra, rumo ao Sumol, esquina com Barata Ribeiro, Varese em frente, lanchódromo do bairro ao lado de próceres como o Gordon e o popular Cervantes. Provavelmente Ferôncio e Luiz estariam jogando bola, Rubinho ao menos. Antes de pedir meu tradicional eggcheeseburger, vi um carro parado, não sei se uma Brasília, daquelas que os Mamonas iriam imortalizar anos depois. Fato era o de ser um carro da antiga. Quando olho para o motorista, me vem uma sonora gargalhada, uma seqüência delas – o interlocutor, melhor, interobservador retrucou-me com risos idem, e não trocamos uma palavra, até que o carro partiu e eu cheguei ao balcão para pedir o sanduíche.

Era Bussunda.

Não se tratava de uma celebridade televisiva, mas já tinha seu fan club. Ano antes, tinham feito um show histórico no Circo Voador, em campanha para o macaco Tião, hóspede do zoológico e candidato informal a prefeito que conseguiu medalha de prata no pleito – Xuru foi ao show e fez campanha para o Macaco Tião; adorava contar que Bussunda tinha sido jurado em um concurso do qual ele, Xuru, tinha participando como...vocalista da Troncomóvel Band. Redator de um programa de tevê que tinha acabado de alcançar índices alarmantes de audiência, a TV Pirata. Engraçadíssimo, pois. Escrevia também numa revista sensacional, a Casseta Popular, que fez – merecidamente - gato e sapato de Collor. Vendiam camisetas com deboche e cartuns marcantes, frases, comprei duas para Alessandra e uma para Klein.

Tempos depois, fizeram outro show hilário no Teatro Ipanema, todos vestidos de Leopardos, Luizinho me chamou para ir. Bussunda, em certo momento, causava alvoroço de risos na platéia – imitava simplesmente Deus numa parte da peça, caminhando por entre os expectadores, com seu sorriso ímpar, sem dizer uma só palavra.

Universidade do Estado, 1991. Show de Oswaldo Montenegro para a TVE, beta-boca com um aluno, OM irou-se, referência ao fato de Bussunda ter comentado no Salão Carioca de Humor, na Santa Úrsula, que o “Museu do Babaca” ia ser inaugurado no Casseta Shopping Show, simpático bar da rua Paulino Fernandes...com um móbile em tamanho natural do trovador citado, na porta.

Com o passar dos tempos, a turba toda se reuniu, a Casseta Popular, o Planeta Diário – maravilhoso, com suas manchetes surreais. Livros, discos, programa em horário nobre, virou indústria das boas. Fiquei sabendo que alguns dos membros da turma foram estagiários do Pasquim – e conseqüentemente, do Ivan, que muito inspira muito do que fizeram de melhor.

Os veteranos da Uerj que divertiram-se a valer nos folguedos e eventos promovidos pelo alto clero estudantil do Instituto de Matemática deve, em algum momento, ter percebido a influência Bussundiana no grupo. Tivemos um grupo de humoristas famoso por lá, hoje finado, chamado Cecrime e que nada tinha a ver com crime, só com gargalhadas.

Não gostei quando Bussunda resolveu distratar o Fluminense em suas crônicas esportivas – ressalte-se, eu e uns dois milhões de torcedores que muito o xingaram. Pediu desculpas: era craque, percebeu que o humor tinha extrapolado a conta. A vida seguiu, sem mágoas. Bem disse Rinus Michels, também desaparecido, que era e é, sempre, somente mais um jogo de futebol. Enquanto isso, os Cassetas fizeram as turbas rirem e rirem.

Vem uma bobagem e splaft! Tira o Bussunda do caminho. Muito antes dos acréscimos do árbitro. Errradamente. Esse negócio do grande palhaço, do humorista, morrer antes da hora, dá um gosto de cabo de guarda-chuva danado. Parece que a festa não vai ter vela soprada porque o aniversariante não veio.

Eu, sabe-se lá porque, recentemente voltei a ver os Cassetas antes do outro programa de terça, que considero muito bom, coisa deste ano. Dia desses, vi um quadro divertido e fiquei recordando, meus flashbacks imaginários na cachola, dos tempos do Casseta Shopping Show. Tempos do Collor, quando achávamos que a coisa ia dar certo, pobres de nós....Tempos da faculdade, que voam ligeiros e não deixam rastros. Tempos da Alessandra e da Klein.

Luizinho foi embora. Xuru, idem. Cecrime, ausente. Bussunda também.

O Sumol já não é mais o mesmo. Não posso ir mais à praia de manhã. Não tem mais nenhum motorista gargalhando na esquina.

Tenho saudades da graça.

(originalmente publicado em julho de 2006)

Sunday, March 03, 2024

3 x 4, LAPA, 5AM

(Até quando esperar?)

Estamos nos últimos minutos do primeiro sábado de março, devidamente esticado para a alvorada de domingo. 

Quatro quintos da multidão já deram o fora, mas os 20% restantes querem mais uma dose, um tapa, um alívio da alma. 

Duas travestis lancham cachorro quente numa barraca bem aos pés dos Arcos da Lapa. 

Jovens multissex dividem mesas nos bares ainda abertos na primeira quadra da Mem de Sá.

Apesar do cuidado sempre necessário, agora há pouquíssimos meliantes na região. É que eles também se cansam e dormem. Alguns fizeram suas férias com o produto predileto: smartphones.

Quase na esquina com a Gomes Freire, um veterano traficante sempre alerta espera pelos últimos clientes, e também tem poucos narcóticos. Com o início do mês, a clientela chegou junto. 

Carros particulares e táxis carregam os lapeiros para seus destinos. A exceção fica por conta da população em situação de rua: estão entregues ao deus dará de sempre. Quase ninguém liga. 

Um transeunte perto do Nova Capela espia suas mensagens de WhatsApp e percebe que só recebeu bobagens, então estica o braço direito e pede um carro amarelinho, louco para se mandar. 

[Onde estão as lindas piranhas que nos fazem sonhar? 

Um garotinho negro, com suas roupas humildes e caixa de engraxate, conta os trocados que levará para casa e então ajudar nas despesas da mãe. Um gesto de honradez vindo de quem deveria ter dias de liberdade e alegria, mas que só tem uma luta gigantesca. 

Na próxima quadra fica o aterrorizante esqueleto do Instituto Médico-Legal. Há um clima sombrio, um cheiro de morte. O poder público não se mexe para mudar o cenário. É sempre assim. Vamos às ruas buscar drogas legais e ilegais para aliviar nosso dia a dia. 

Perto da Cruz Vermelha, uma senhorinha passa com seu cachorro, tentando não atrapalhar o sono desmaiado e sofrido das calçadas.

Agora é domingo. Poucos acordam para as compras de padaria, muitos vão para o sono da madrugada, outros permanecem insones de tanto stress. 

Vai ter clássico no Maracanã, mas virou amistoso para cumprimento de tabela. 

Um amigo será enterrado. 

@p. r. andel

Sunday, February 25, 2024

Lindoya

Nesta madrugada, descobri que a água mineral Lindoya passou a ser engarrafada em 1972. Curioso, porque eu me lembro muitas vezes de meu pai pedi-la em botequins quando parávamos para nos refrescar, justamente em volta de 1973, 74, então ela era uma novidade e eu não sabia. Isso era antes dele ter adoecido com álcool.

Gostei do nome desde que o ouvi pela primeira vez. 

No botequim, a garrafa era de vidro. Bebíamos em copos americanos. 

Naquela época havia poucas lanchonetes. Você ainda encontrava alguns armazéns e também lojas com animais prontos para abate. Coitados. E não há hipocrisia alguma nisso. Não é porque o peixe e o frango são gostosos que vou deixar de ter pena deles. Voltando, também tinha padarias e vários botequins, botecos estilo pé sujo. Hoje eles são cada vez mais raros, substituídos pelos bares gentrificados. 

Em Copacabana eu lanchava no Rick da Figueiredo Magalhães, cujo proprietário era Ricardo Amaral, o rei da noite. O misto quente deles era delicioso, crocante como deve ser. Também lanchava misto quente no Boni's, que continua intocado na esquina de Siqueira Campos com Avenida Copacabana. 

O que fez meu pai sucumbir ao alcoolismo? Fácil: derrocada financeira, desgosto pelo irmão exilado do Brasil, tristeza e problemas psicológicos vindos ainda da infância como órfão de pai e mãe. Agora é fácil entender isso, mas naquela época eu só sofria e ponto. Ainda lembro dele calmo e silencioso com uma garrafa de Lindoya em cima do balcão. Eu bebia também, além de uma Coca Cola que hoje chamam de KS. 

Tudo isso me veio à tona porque acabei de tomar um gole de água e descobri que a garrafa de casa era Lindoya. Cada dia tem uma marca na padaria. Agora as garrafas são recicláveis e quase estouram à toa, de tão fininhas. E fico assustado porque qualquer lembrança já tem quarenta ou cinquenta anos. Tudo bem, a vida é breve e precisamos aceitar o processo.

Oh, Susanna!

Um dos grandes baratos na internet é justamente você conseguir rever pessoas e personalidades que estão sumidas da mídia há certo tempo, gente que você não viu nem ouviu mais.

Por exemplo, um dia desses eu estava passeando pelo Instagram quando me deparei com ninguém menos do que a Susanna Hoffs. Belíssima, sessentona, cantando e postando fotos de seu cotidiano, respondendo aos fãs com toda educação e simpatia. Naturalmente alguém vai perguntar quem é Susanna Hoffs, por motivo justo. Os olhos e ouvidos mais atentos dos anos 1980 vão responder: era a cantora das Bangles, banda de pop que nem era lá essas coisas todas, mas que fez um sucesso enorme para canção “Walk like an egyptian”. E, claro, o grupo tinha quatro integrantes gatas que deixavam os adolescentes em puro êxtase - e Susanna era a referência.

Outro caso: no Facebook, você pode seguir a página de Ferrugem, que não é o sambista tricolor, mas sim o mitológico ator mirim que dominou a TV brasileira nos anos 1970 e 1980. Ferrugem ainda continua em plena atividade em rádio, podcasts etc, embora não esteja na TV aberta com regularidade. 

Enquanto isso, a própria TV tem usado o expediente de resgatar artistas populares que, de alguma forma, já não têm a mesma visibilidade de outrora. É o caso de Serginho Groisman. O apresentador tem investido em programas temáticos nas noites de sábado. A turma da Jovem Guarda, os veteranos do sertanejo, o pessoal da música romântica em inglês. Sábado passado mesmo rolou de Perla a Ednardo, passando por Márcio Greyck, Tony Tornado e Adriana. Silvio Brito incendiou a galera ao vivo e o próprio Tony, aos inacreditáveis 94 anos, fez uma apresentação emocionante de "BR-3”, o clássico que o consagrou instantaneamente no V Festival Internacional da Canção de 1970. 

Quando a gente revê essa turma viva e ativa, um pensamento é inevitável: temos um exército de grandes artistas que não somente precisam ser redescobertos, como também têm pressa porque a ampulheta tem cada vez menos areia desabando. Já escrevi o mesmo aqui sobre o rock internacional. São muitos os septuagenários e octogenários ainda em atividade. Ao mesmo tempo que é maravilhoso ter tanta gente boa, todos sabemos que daqui a algum tempo vai ter uma grande revoada, por que o tempo não para e é inevitável. 

Outra coisa também faz pensar: continuidade. Quem está fazendo a nova grande música popular brasileira? Deve ter muita gente boa nos porões da internet que nunca vimos ou ouvimos falar. Os tempos mudaram, você já não tem mais os grandes festivais, nem a grande consagração popular, o rádio é diferente. Assim, é certo que a nova música brasileira não terá ídolos do mesmo tamanho que ainda temos. Lá fora basta dizer que, nos grandes festivais de rock pelo mundo, quem ainda dá as cartas são as bandas veteranas, chamadas de “rock clássico”, com seus integrantes geralmente acima dos 70 anos. 

Tudo bem. Sem lamentações. Vamos aproveitar. Que seja eterno enquanto dure. Susanna Hoffs ainda é muito gata. 

Wednesday, February 21, 2024

um dia de depressão

Está tudo bem. No seu pequeno mundinho todos estão felizes, até porque eles não se importam com ninguém além de si mesmos. Ninguém tem qualquer sofrimento. A vida até parece uma festa. Será que é isso mesmo? Às nove da manhã? 

Então você olha para o teto e tenta pensar numa saída, mas ela não existe. É seu dia de folga e é como se fosse jogado fora. Você chora, se desespera, sabe que tem problemas praticamente insolúveis, sabe que talvez o melhor seria que tudo acabasse mas você não tem forças nem para cometer suicídio. Enquanto você chora desesperadamente, pessoas que sabem do teu sofrimento mandam mensagens de auto ajuda ou falam de coisas que são inalcançáveis para você. Elas sabem que você está na merda em todos os sentidos, mas o que isso importa para elas? Nada. Absolutamente nada. E você sabe disso. Se você morrer hoje, elas vão colocar carinhas de choro, dizer "meus sentimentos" sem sentimento algum e, se você tiver sorte, alguém cuida do seu enterro. É o máximo.

Você olha para o teto e tenta pensar numa saída, mas ela não existe sem o apoio de terceiros. Alguns deles, quando precisaram, tomaram muito tempo e trabalho teu, mas agora você é simplesmente um pária, um mala que deve ser evitado e silenciado. As mais hipócritas falam até de democracia e inclusão, mas não para o seu caso. Você não tem mais utilidade. 

E quando você olha para o teto, tem a exata noção de que só se salvará por muita sorte, inclusive porque já não tem nenhum amigo, pelo menos vivo, e os espíritos não têm dado conta de te dar a mão. 

Olhe para trás. Quanta coisa foi feita e vivida, mas agora parece tudo em vão, porque você não tem forças para limpar a casa, lavar a roupa, arrumar o caos, sequer pagar as contas, podendo escolher se prefere pular pela janela ou morar na calçada, depois de tanto trabalho e estudo, tanta aplicação, tanta generosidade que não significou nada que não seja derrota. 

O teto. Ele esconde o céu, o infinito. Melhor assim. 

A janela e a cortina fechadas, melhor assim. 

Espie as redes sociais, com seus patetas ditando normas de comportamento. Você precisa ser forte. Ninguém deve saber da tua tristeza ou derrota. Você precisa ser superior e enganar a todos, inclusive a sim mesmo. 

Quando se dá conta, o dia passou, você não almoçou, não tomou os remédios, não se cuidou e talvez este dia a menos seja até alívio. É melhor chorar sozinho do que ouvir idiotices em vão, palavras vazias que muitas vezes são ditas apenas porque o orador quer se sentir bem. Os religiosos de araque dizem que você precisa de socorro espiritual, porque essa linguagem é sempre mais cômoda para eles. Tudo que você queria era uma pequenina casa sem luxo, com uma TV, celular, alguns livros e discos, geladeira e cama. Só. Você queria ver a TV em paz, sem notícias permanentes sobre assassinatos, chacinas e guerras que fazem muita gente sofrer loucamente. Você só queria ir uma vez ou outra ao cinema ou ao museu, ou a algum show barato, algum drinque num bar modesto, mas você não tem nada disso. Duas calças, dois pares de tênis, um chinelo, duas bermudas, camisas. Bastava isso. Ter dois ou três amigos de verdade, amores de verdade, camaradagem e solidariedade de verdade, mas nada disso existe. Uma família? Era boa, mas acabou. Só ficaram as lembranças. 

Abra o WhatsApp. Está tudo bem. Todos estão felizes. Você teve azar: num mundo de hipocrisia, justamente você foi o escolhido para dizer o que realmente sente. 

(continua)




Monday, February 19, 2024

No Leme

(original 05/2020)


O que será que está acontecendo no bairro que nunca dorme? 

[o que foi feito dos moradores do edifício Elmar, demolido nos anos 1980?

A pizzaria Sorrento está fechada para sempre. 

O silêncio do Leme é uma montanha sem sinais aparentes de rajadas de tiros. 

O quartel não mudou: é silencioso pela própria natureza. 

No caminho dos pescadores há uma placa em homenagem ao ator e ex-lutador Ted Boy Marino, que foi morador do bairro por muito tempo. Mais à frente o mar pode ser desafiador e mortífero, tal como numa noite de 1988, quando levou o bailarino Graham Bart para o nunca mais. É preciso ter cuidado com as ondas impetuosas. 

O escritor Valterson Botelho dorme tranquilo em seu apartamento cheio de homenagens ao Fluminense, perto do Sindicato do Chope, vizinho de Nelson Rodrigues Filho, outro baluarte. Telê Santana também morava pelos arredores. Um reduto de tricolores. 

No Sindicato, pouco antes de se tornar uma mega celebridade nacional, Zeca Pagodinho gostava de beber chope garotinho em pé. Numa mesa próxima, jovens ex-alunos da UERJ gostavam de fazer piada pedindo testículos de boi à milanesa, só para verem as reações das respeitáveis mesas vizinhas. 

[Como foi possível o edifício Elmar ter empenado? Agora o supermercado Zona Sul está lá. Que fim levaram os moradores? 

Grandes jogos de futebol de praia: Copaleme, Areia, Embalo, Colorado. Babilônia e Chapéu Mangueira formando craques para o mundo. 

Ali atrás, na Gustavo Sampaio, é fácil ver Jairzinho, seja trazendo o pão ou sorvendo um trago. Tricampeão mundial em 1970, é o único jogador que marcou gols em todas as partidas de uma Copa do Mundo. Nós temos os nossos maiores da Terra, e eles vão à padaria! 

Antes, muitos outros viveram o charme do irmão de Copacabana em seus apartamentos e/ou nas boates locais, nos anos 1950, 1960 e 70: os atores Jardel Filho e Anselmo Duarte, o menestrel Juca Chaves, a Miss Brasil Martha Rocha, as cantoras Marlene e Emilinha Borba, o pintor Candido Portinari, a escritora Clarice Lispector, o showman Chacrinha, o dramaturgo Nelson Rodrigues, o presidente Juscelino Kubitschek, o cirurgião plástico Ivo Pitanguy, a musa Marina Montini, o maestro Egberto Gismonti, o monumental Milton Nascimento, as atrizes Beth Goulart e Rogéria, a multi artista Zezé Motta, a dark singer Waleska. Até Robert de Moto deu as caras por lá, Omar Shariff também. E quem mais poderia definir melhor o cenário do que Elke Maravilha? 

“O Leme é uma cidade pequena dentro de uma cidade grande. Não é um bairro de passagem, tenho vizinhos. Cheguei, gostei e fiquei”.

[Marina Montini, a musa de Di Cavalcanti 

Noites inesquecíveis no Sacha's, Vogue, Fred's, Régine's e outros, muitas vezes registradas pelo colunismo social de Jacintho de Thormes ou Ibrahim Sued. La Fiorentina ainda está firme e forte. O Marius também. O Bar do David no Chapéu Mangueira. 

Quando se chega à esquina da praia com a avenida Princesa Isabel, fica o imponente Hotel Hilton, portal do Leme. Mas não adianta: a sede da mais famosa cascata de fogos do réveillon carioca vai se chamar Meridien para sempre. 

@pauloandel


A jovem que não disse adeus

(original 01/2019)

Por alguns meses de 1973, morei com meus pais em Cascadura. Até hoje sei qual é o prédio e, se não estiver enganado, morei no penúltimo andar, sem elevador e com poucos andares. Estudei no Colégio Pinguinho de Gente, o primeiro em minha vida, ali perto. E foi em Cascadura que, pela primeira vez, me lembro de ter tirado fotos coloridas com minha mãe. No mesmo prédio, minha mãe inventou minha primeira namorada, Ilana. Eu tinha cinco anos de idade...

Eu tinha a Lúcia, que cuidava de mim. Lembro que ela falava pouco e ria bastante, mas envergonhada. Colocava a mão na boca e ria. Acho que tinha vindo de Minas. Naqueles tempos todos fazíamos refeições à mesa juntos. Ela não era uma funcionária, uma babá, mas uma familiar. E minha mãe pensava o mesmo: lembro vagamente de tentar demovê-la de usar o uniforme que a Lúcia fez questão na hora da contratação, sem sucesso. Minha mãe, cuja vida dá um livro dos bons, humilde e sofrida, precisava de uma funcionária mas nem de longe agia como uma patroa: tivemos várias em casa e testemunhei. Mas dela minha mãe gostava demais. 

Certa vez, eu estava triste porque o Multi-Homem tinha sumido. Lúcia havia ido ao mercado e minha mãe estava enlouquecida porque não achava o brinquedo. Meia hora depois, Lúcia volta, minha mãe pede a ela pra achar o desgraçado e a vê quase rindo, mexendo numa latinha de Nescau pequeno, abrindo e... tirando um Multi-Homem recortado de alguma revistinha ou figurinha, que não tinha mais de um centímetro de tamanho. Minha mãe caiu na gargalhada, todo mundo riu e voltei a brincar com meu herói de papel. 

Éramos felizes dentro do possível, eu acho. Meu pai saía bem cedo, só voltava para o jantar. Minha mãe às vezes o ajudava, noutras vezes estava em casa. E Lúcia acompanhava minhas aventuras com o Multi-Homem, o Zé Colmeia, o Fred e outros seres míticos. 

Numa manhã, Lúcia desceu para fazer compras. Já tínhamos tomado café, eu não tinha aula por algum motivo. Minha mãe lhe deu a lista e o dinheiro, ela desceu mas antes fez questão de colocar o uniforme, que a mãe detestava. E desceu. Lá perto, no Largo de Cascadura, tinha algum supermercado. 

O tempo começou a passar, Lúcia não voltava, deu uma, duas, três horas e nada. Minha mãe, bem nervosa, me puxou pela mão e descemos para procurá-la. No caminho, comprou fichas para telefonar no orelhão (só ricos tinham telefone em casa) e pedir socorro a meu pai. Ele largou a loja em Madureira com o sócio e veio. Os dois estavam desesperados e sei porque, apesar da pouca idade, tinha sido a primeira vez que eu os via daquele jeito.  Quando escureceu, eles me deixaram na vizinha, a mãe da Ilana, e foram para a delegacia. Os dois desesperados e tristes. Para piorar, meu pai era fichado como subversivo devido à militância de meu tio, a época exilado em Israel. 

"Minha senhora, como é que eu vou saber de uma empregada que sumiu? Isso é coisa de homem, fugiu de paixão". 

(Uma resposta tão estúpida que tem tudo a ver com o Brasil negacionista).

Quem ia contestar policiais numa delegacia em plena ditadura de Médici?

Voltaram desolados. No dia seguinte, meu pai não foi trabalhar: peregrinou pelo bairro em busca de alguma pista. Ninguém sabia dizer, ninguém viu, ninguém sabia. Eu fiquei triste mas em minha ingenuidade de criança achei que ela logo voltaria. E minha mãe chorava, chorava, aquilo me deixava tão triste quanto agora, quando relembro o acontecimento. Ela desapareceu com a roupa do corpo, deixou suas coisas, documentos, nenhum contato de parentes, nada além de alguém dizer que era de Minas. Nada. Semanas e semanas de perguntas, agonia, eu vendo meus pais sofrerem em vão. 

Meses depois, voltamos para Copacabana. Fui morar na Santa Clara, estudar no Pernalonga (de onde fui convidado a me retirar por "comunismo"). Voltamos a ter funcionárias em casa, mas nunca mais para cuidar de mim. Muitas vezes depois, minha mãe chorou ao recordar a história. Até meu pai, que muitas vezes abafava suas emoções por completo, se emocionava. 

Esta é uma história de 1973. São 46 anos em tese. Meus pais estão mortos. Nunca mais vi Lúcia. Talvez eu seja o único sobrevivente daqueles meses de pequenas felicidades, trabalho, estudo a começar e o mundo pela frente. Ou um mundo interrompido, voluntária ou criminosamente falando, o mais provável. Vivi para contar e chorar disso. 

Já ouviu falar que naquele tempo era bom, não é? 

Mentira escrota. 

Todo mundo da minha infância e juventude sabe de alguém ou ouviu falar de alguém que subitamente desapareceu (foi "desaparecido").

Vejo meus pais chorando de novo. Imaginem a minha dor. Mas amanhã vai ser outro dia.  

Só gostaria que Lúcia soubesse que foi muito importante na minha vida. Ainda me lembro direitinho do Multi-Homem de um centímetro.

Sunday, February 18, 2024

A ruiva da Siqueira Campos

Ela era linda. Volta e meia estava de vestido curto preto, que contrastava com sua pele clara e os cabelos from hell - as mulheres são belas de todos os jeitos, mas as ruivas têm um charme à parte. 

Era batata. Mesmo. Frita. O bar ficava na Siqueira Campos, embaixo da casa de um amigo meu da faculdade, então volta e meia marcávamos lá para comer e beber algo, às vezes voltando da aula. Chamava-se Fry Chicken e, de acordo com o nome, sua especialidade era frango frito - delicioso, aliás. Ótimo atendimento, preço justo. Ali perto ficava o Let It Be, lendário bar de shows da Copacabana mais underground, digamos assim, quase na esquina com a Travessa Santa Margarida. 

Quando o amigo marcava para que eu o esperasse lá, invariavelmente eu chegava e lá estava a ruiva dos sonhos. Isso aconteceu muitas vezes e ela estava sempre sozinha à mesa, algo não tão comum no começo dos anos 1990. 

Ai, minha maldita timidez: às vezes parecia que ela olhava para a gente ou para mim, mas até aí nenhuma surpresa porque o bar estava quase sempre vazio, embora fosse ótimo. Claro que eu jamais iria à sua mesa: perdi a conta das garotas que me beijaram e depois me perguntaram porque eu não tinha tomado a iniciativa. Bom, o que importa é que ela era linda demais, charmosa demais e misteriosa. Vinha, sentava, bebia um pouco, quase não comia. Em algumas ocasiões escutava o walkman - que sons a encantavam? Naquele tempo eu ouvia de tudo, feito hoje: Alice in Chains, Stone Temple Pilots, Tom Jobim, Candeia. 

É, é verdade: ela olhava sim, mas acho que era por curiosidade em saber quem estava na outra mesa. Nunca sorria. O ar severo deixava seu rosto delicado ainda mais belo. Frequentemente parecia escrever coisas. 

Na outra mesa, eu falava bobagens desinteressantes por meses com meu amigo ou ficava mudo, sozinho. Sonhando com a carteira assinada no estágio e o diploma ainda distante - dois anos depois ele veio. 

Depois de umas vinte vezes, o platonismo acabou: parei de frequentar o bar porque me mudei, ele próprio fechou depois de algum tempo - uma tremenda injustiça, porque era ótimo - e ficou por isso mesmo. Anos depois, meu amigo fez chacota: "Lembra daquela gata que ficava te olhando? Agora está na novela". Fez sucesso, ficou mais linda, continua por aí. O tempo só lhe fez bem. 

Oh, bares de Copacabana onde um jovem e desconhecido candidato a cronista admirava uma linda jovem branquinha de cabelos cor de fogo, num vestidinho preto - ou de camiseta branca simples - enquanto ela parecia fitar o horizonte enquanto ouvia sons secretos e escrevia num diário. Era o começo dos anos 1990, onde os jovens de vinte e poucos anos de idade sentiam-se invencíveis, mas na verdade eram mesmo uns românticos enrustidos. 

Se fosse hoje, chamariam a linda jovem ruiva de crush. 

@pauloandel

Originalmente publicado em 2020

Triste fim de Lima Barreto (por Di Cavalcanti)

(compartilhado pelo escritor e poeta Ricardo Soares)


- Lima Barreto, olhe aqui o Di Cavalcante.

Foi assim que o Schettino me levou até o grande romancista do Triste Fim de Policarpo Quaresma.

Lima Barreto olhou-me com seus olhos mortos e um sorriso de mofa no canto dos lábios:

- Vi os seus Fantoches da Meia-noite, com o prefacinho do Ribeiro do Couto. Agradeço-lhe o exemplar que me deixou.

Estávamos sentados num cafezinho da rua Sachet. Eu me sentia um pouco  contrafeito entre o livreiro e o escritor. Fiquei calado.

Foi Lima Barreto quem resolvera abrir-se a respeito do meu álbum de desenhos que Monteiro Lobato acabava de editar. Para ele, o Lobato demonstrara ter muita coragem, “porque no Brasil essas coisas de livros de luxo não dão resultado, aqui só vinga o futebol.”

Tinha raiva de futebol.

Schettino falou do prefácio de Ribeiro do Couto.

- Está bom o prefácio – disse Lima Barreto com certa secura.

Procurei desviar a conversa para outro assunto. Comecei a falar dos subúrbios cariocas, de meu desejo de fazer desenhos sobre a vida daqueles recantos tão pitorescos. E, através da evocação dos subúrbios , animou-se minha primeira conversa de botequim com Lima Barreto.

Os Fantoches da Meia-noite saíram em fins de 1921. Em fevereiro de 1922 realizou-se a Semana de Arte Moderna. Acredito que meu primeiro encontro com Lima Barreto data de meados de 1922. Foi também nessa época que conheci Capistrano de Abreu, por intermédio de Paulo Prado.

Ano extraordinário aquele, cheio de grandes aventuras! Abandonei São Paulo logo depois da Semana. (...)

Soldado na Vila Militar e morando em Botafogo, eu acordava de madrugada para chegar as seis horas no II Regimento. Era um inferno! E posso dizer, hoje, que era um inferno adorável.

Numa dessas minhas viagens para a Vila Militar, encontrei no trem Lima Barreto, que voltava para casa, cambaleante, sujo, cheirando a cachaça. Meus companheiros, reservistas como eu, olharam com desdém para aquele triste mulato e ficaram surpresos de ver que eu o acolhia com simpatia e mesmo com respeito.

- Quando chegar Engenho de Dentro, avise-me! – disse o boêmio espichando no banco e caindo num torpor barulhento, entre arrotos e uivos.

Queria saltar no Engenho de Dentro para continuar bebendo.

Estava no fim da vida o grande Lima Barreto. Muitas vezes conversei com ele na Livraria Schettino. O livreiro era o seu grande amigo.

Certa manhã, em minha companhia, Schettino abriu a pequenina loja da rua Sachet. E eu vi, espantado, emocionado, com estes olhos que sabem ver , o Lima Barreto emborcado sobre um montão de livros que ele atirara das estantes ao chão. Serviam-lhe de cama e estava roncando.

Schettino olhou com os olhos rasos de água. E eu confesso que, ao recordar aquela cena, me vem um nó na garganta.

O drama da vida de Lima Barreto sempre me comoveu profundamente. As inúmeras vezes que conversei com o grande romancista, não raro em companhia de Enéas Ferraz, Schettino, Agripino Griecco, pude observar que atrás daquele desleixo se escondia alguma coisa de muito puro, nobre, forte. Sua revolta era contra a sordidez e as aparências hipócritas da sociedade, não contra o homem. Para este, ele guardava todas as simpatias, dedicando aos humildes todo o seu amor.

Hoje, Lima Barreto esta ao lado dos nossos mestres do romance: Machado de Assis, Aluísio Azevedo, Manoel Antônio de Almeida. A nova geração sabe admira-lo. Seus livros são reeditados. Seu nome é lembrado sempre.

Teve um triste fim o grande Lima Barreto. Enéas Ferraz me telefonara.

- Você não vai ao enterro do Lima?

Subi a rua esburacada do subúrbio. Ele morava em Todos os Santos.

No porão da casa, o pai louco gritava. Chovia muito quando saímos com o caixão pesado escorregando de nossas mãos. O vagão mortuário levou-o da estação suburbana ate a Central.

Lembro-me da cara branca de adolescente afoito de Enéas Ferraz a olhar para o caixão do seu ídolo. E me lembro também de dois guardas-civis solenes, um deles irmão do morto, montando guarda ao corpo no vagão sacolejante.

Da Central, num carro de terceira classe, o corpo seguiu ate o cemitério São João Batista. Era pequeno o acompanhamento. No cemitério, entre os amigos humildes do morto, entre os que tinham a cara inchada pelo álcool e cortada pela insônia, vi alguns intelectuais. Felix Pacheco, Olegário Mariano, Agripino Griecco.

A chuva não parava. A terra caia, enlameada, sobre o caixão negro.

Nunca me esquecerei do grande Lima Barreto, que eu conheci já nos seus últimos anos de vida. Lembro-me dele com uma ternura imensa.

Como uma caricatura dolorosa, e como se eu o estivesse vendo, encostado a uma porta modesta de botequim, a sorrir para a imbecilidade anônima dos bem-confortados...

Di Cavalcanti, Folha da Manhã, 27/6/1943