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Friday, June 12, 2020

travessa • dos poetas • de calçada

era só mais um poeta de calçada • estendido à miséria entre ratos e paralelepípedos • um poeta um garoto • sem pai nem mãe • sem irmão nem nome • exausto da vida enquanto o mundo dorme • até que venha o dia e a tragédia permaneça • enquanto correm para os shopping centers mon amour • enquanto correm para as praias • que mal tem quarenta mil mortos • além da dor de quarenta mil famílias • e cinquenta mil amigos? • era só mais um menino cumprindo pena sobre as pedras portuguesas • pelo crime de ser pobre • e não ter amparo • há quem não veja mal nenhum • porque é só um vagabundo • que não arruma um trabalho • mas nunca se viu um pequeno ou grande mendigo • na dinâmica de grupo • num endereço corporativo • por que será? • é só mais um garoto cumprindo uma sentença injusta • numa sociedade patife • cheia de gente louca para dar sua esmolinha • e sair correndo para não se comprometer • pois eles não têm nada com isso • não criaram o mundo • e com a estupidez que lhes é peculiar • não pretendem melhorá-lo • porque precisam correr para o shopping center • e precisam correr para as praias • uhu! • eis o maravilhoso berço esplêndido da meritocracia • onde as pessoas são livres para o suicídio • e para morrer sobre as calçadas • depois de estender os braços por dez mil dias • em troca de moedas e caras de nojo e gente desviando • e gente que nem é gente atravessando a rua • para poder não olhar • a cortina do passado está rasgada e rota • enquanto se lê manchetes estúpidas • sobre cafuzos nazistas • e mamelucos fascistas • mas todos estão muito ocupados para se comprometer • com um menino mendigo • à espera da verdadeira morte sobre a calçada • cumprindo uma pena inaceitável • enquanto dizem que não deveria ter nascido • só porque veio pobre • então chegam quatro da manhã e uma pergunta dá um soco na alma • pow! whow! boom! crash! • quem inventou essa bendita sociedade de merda? 

@pauloandel

Wednesday, June 10, 2020

tempos modernos itaú

No assento do metrô há um livro, mas ninguém mexe nele nem senta ao lado. Diabos, pedir licença? O jeito é ficar em pé, ainda que a luva faça um fric-frac no suporte do vagão. Ninguém reclama.

Roça-roça na hora do rush, nunca mais teve. Se alguém ri, as máscaras não deixam ver: eis a lei marcial. Os rostos, outrora indiferentes, viraram mais do mesmo. Perdemos nosso tom informal. Beijo? Já era. Cotovelo e só.

Próxima estação: Central. A correria para a gare dá saudade. Lentamente, a mão de obra que suporta o Brasil deixa o metrô, sobe as rolantes sem pressa nem vizinhança, até avançar nas roletas em busca do subúrbio.

Perto, um menininho pede esmolas e ri por baixo do pano roto, sobra de uma camiseta do Flamengo. Nem tudo é novo nos tempos modernos.

@pauloandel

(Microconto em 800 caracteres devidamente desclassificado no concurso Itaú Cultural de Emergência, focado no pós pandemia. Não serviu lá, mas serve de post aqui. Talvez não tenham gostado do final, muito agressivo para o mundo neoliberal)

remanescente

tenho morrido muitas 
vezes e foram tantas 
vezes na semana 
passada que não pude 
dormir

e perto da minha cabeceira
um poderoso ventilador ligado
parece a turbina de um avião

[olho para o teto e finjo uma 
viagem

[a janela é a porta principal

uma aeronave rumo a destino 
algum
e minha poltrona esgarçada
enquanto sinto fome
sede, cansaço e o peso da 
morte:
é que tenho morrido vezes 
demais
e isso me tira o sono
- meu teto é um céu sem 
estrelas

ela dorme ao lado e viaja 
tranquila demais
a minha paz é a mão estendida
mendiga
pedindo esmolas num circo
lotado na avenida brasil
e por isso morro sem dormir

em algum lugar do teto tem 
lua
o ronco do motor à rua
denuncia outra morte
[a noite que não dorme, o corpo 
que não sonha, o grande irmão

copacabana, vejo teus brilhos
teus galãs e fêmeas da noite
e boates encerradas 
meu coração na janela
procurando o sentido do fim:
para onde se mudou o amor?

a turbina em meu ouvido
não cessa
minhas fomes e dores
o meu amor que dorme
a dor que me adormece

copacabana, meu abraço
os garotos ficaram distantes
é que o sonho já deu no pé
a luz da janela é a derrota
a saída principal sem voz

@pauloandel

Wednesday, June 03, 2020

Mapa astral no pátio da igreja

Via de regra, o grupo de escoteiros vivia sem grana e precisava se capitalizar. A festa junina da igreja parecia ser uma boa, mas era preciso fazer algo diferente a quinze dias do evento. 

Bom, diferente já era todo o cenário: um grupo de escoteiros que realizava suas atividades no pátio da igreja católica, o mesmo lugar onde a festa iria acontecer. A igreja, cercada por condomínios na altura do terceiro andar de um shopping center. A vizinha de baixo era uma termas com alucinantes GPs de arrepiar - GPs: garotas de programa. Outro vizinho: um teatro de malucos e com espetáculos consagrados na história da MPB e da ribalta brasileira. No térreo, um supermercado, lojas de brinquedos e botequins. Traduzindo: Copacabana. 

Os jovens chefes escoteiros adoravam o mé e batiam ponto toda noite em um dos botecos do shopping, o Sniff's. Aos pés da escada de acesso para o Teatro Teresa Raquel, e também para as Termas L'uomo, o bar era palco de várias reuniões de bate papo entre os tipos mais inusitados, de estudantes a intelectuais, passando por artistas, executivos, vagabundos, maconheiros de praia, jogadores de purrinha e, claro, os escoteiros. Dentre o cast de malucos, um nome reluzia: Eduardo Victor Visconti, o Seu Visconti, presença constante no Sniff's - sem jamais consumir - e multi homem: poeta, escritor, piloto de avião, filósofo, membro de academias de letras e astrólogo.

Entre refrigerantes, sucos de morango ao leite e cervejas, uma das escoteiras teve a ideia: e se o Seu Visconti fizesse voluntariamente mapas astrais durante a festa junina? Em plenos anos 1980, astrologia era a moda, mas era preciso acertar os detalhes com a patronesse do evento junino: a Paróquia de Santa Cruz de Copacabana. Afinal, não convinha ferir suscetibilidades religiosas. O filósofo, conhecido por sua excentricidade, topou ajudar o grupo numa boa.  

Dias depois, uma comissão dos escoteiros reuniu-se com o pároco, Padre Ítalo Coelho, também fundador do próprio grupo no ano de 1963. As coisas se assentaram sem maiores problemas; afinal, a igreja - que tem um maravilhoso formato de base lunar - era conhecida por não ter imagens de santos, afora os cochichos em pleno pós-ditadura sobre o apelido do padre: "Vermelho". Os mais conservadores não engoliam a seco a ideia de irem à missa rezada por um padre comunista, mas em nome de Deus e com o balanço frenético de Copacabana, tudo se resolvia - muitas vezes com abraços entre santos, pecadores e diabos. O fato é que Padre Ítalo deu a benção ao projeto astrológico. 

Duas semanas depois, começou a festa. Gente pelo ladrão, literalmente, subindo e descendo os três andares do shopping center, por meio de uma bela rampa circular. Churrasquinhos, batidas, jogo da lata, pescaria, canjica, tinha de tudo. Gatinhas a valer, marmanjos na azaração, gays alertas. Era o evento de Copacabana em junho. 

Nos fundos da igreja, os escoteiros montaram uma grande barraca de acampamento para o atendimento de Seu Visconti aos clientes. E o que se esperava ser um reforço de caixa acabou se tornando a maior arrecadação da história do grupo em todas as festas. Nos três dias de comemoração, a barraca de mapa astrológico foi um sucesso, com uma fila a valer repleta dos típicos personagens do bairro: dondocas, gatinhas, naturebas, os próprios escoteiros, suas mães, amigas, os atores do Teresa Raquel e até às garotas das Termas L'uomo! Todo mundo em busca dos mistérios do futuro, das alegrias e decepções à frente, dos amores e tudo que pudesse valer a pena. Depois da festa tinha fila de espera para consultar Seu Visconti, que foi o verdadeiro popstar junino. 

Dias depois, os escoteiros comemoravam o sucesso da festa no balcão do Sniff's: a grana dos mapas deu para comprar barracas novas para os acampamentos. No terceiro andar do shopping, Padre Ítalo agradeceu o donativo para as obras sociais da igreja, ainda que nenhuma imagem de santo testemunhasse. Alguém jura que duas garotas das Termas L'uomo largaram a labuta e encontraram os amores milionários de suas vidas, tudo previsto nos mapas astrais de Seu Visconti. Uma dondoca abriu sua cabeça na barraca e depois fundou uma ONG para combater a fome e a miséria.  Um respeitável empresário desbundou, pediu o divórcio e assumiu sua sexualidade com um parceiro trinta anos mais jovem. E tudo começou numa conversa de botequim com a breve ideia de uma adolescente. 

Seu Visconti já era respeitado no balcão do Sniff's, mas depois do sucesso dos mapas astrais ele experimentou a sensação de ser uma celebridade local, o que lhe fez muito bem em termos de humor. Até Paulinho Cana, seu vizinho, bebum e rival histórico nos debates de boteco, o aplaudiu sem rancor.  

@pauloandel