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Saturday, January 02, 2021

quando peguei cássia eller

(Baseado em fatos reais e imaginários

Numa noite de quinta-feira de novembro de 1998, eu estava com meu amigo Bolinha em Copacabana. Resolvemos beber chopes. Estávamos fudidos emocionalmente por vários motivos mas estávamos lá, juntos, um dando força para o outro. 

Chegamos tarde ao Sindicato do Chope no Posto Seis. Pedimos frango à passarinho, caldo de feijão e chopes. Já passava de meia noite e tínhamos trabalho cedo, mas não estávamos nem aí - lembrando que nosso estado emocional era péssimo - parece até as minhas últimas seiscentas noites. Não bebemos de cair, éramos quase responsáveis, mas dava para rolar umas tropeçadas e até se machucar no calçadão. 

Uma da manhã, bar vazio, o garçom esperando que pedíssemos a conta, eu pedi foi uma empolgante caipirinha - beber liberta! -, e subitamente chega ao bar ninguém menos do que Cássia Eller, acompanhada de dois brous. Enchi meu peito de emoção e o Bolinha logo inflou a ideia: "Porra, cara, Cássia é foda demais, você tem que ir lá falar com ela!". E a vergonha? E o risco do toco? A gente nunca sabe. 

Comemos, bebemos, Cássia estava na dela e a gente na nossa, claro, só que era impossível não olhar porque ela já era uma celebridade nacional, uma super ídola e nossas mesas eram as duas únicas com gente no bar. 

O Bolinha sussurrando que nem o Diabo: "Cara,  quando ela for no banheiro, você vai em seguida e cerca ela no corredor". Os dois banheiros eram um de frente para o outro. Mas eu já tinha ido umas cinco vezes de tantos drinques. 

Um chope, dois, três, cinco, deliciosos, eu já tinha aliviado toda a tristeza daquele dia mas o destino foi implacável: Cássia se levantou, Bolinha me deu um cutucão, ela foi para o banheiro, contei até três, fiz o mesmo mas o tanque já estava vazio. Então fiquei lá dentro num silêncio típico de minhas noites de ronda escoteira, ouvindo os ventos, as folhas e o horizonte livre no campo, esperando que, no outro compartimento, surgisse um som de torneira aberta - sinal de que ela estava prestes a sair. 

Segundos, segundos. Tchoook. 

[A água da torneira batendo no dorso da pia.

Estou pronto, conto três segundos e abro a porta do banheiro. 

Dou de cara com Cássia Eller. Ela olha e quase ri. Eu paro e digo "Cássia...". Ela para, eu me aproximo e aí um dos pares de olhos mais expressivos da música brasileira se arregalou: provavelmente ela pensou que eu a agarraria, mas não foi nada disso. Não. Eu coloquei minhas mãos nos ombros dela, peguei firme e disse "Tu é foda pra caralho. Eu cantei muito lá na UERJ quando você fez um show no Teatrão. Meu amigo Rubens estava lá mas não desceu quando você sorteou a caixa de Brahma (patrocinadora do evento) - ficou com vergonha de ser a bicha da letra. Só sei que tu é foda. Teu show na Apoteose foi demais, você, Bob Dylan e Rolling Stones. Caceta!". 

[Nós dois, cara a cara, olho no olho, a poderosa rockstar encolhidinha com medo de um gigante gentil. 

[A baixinha tremeu. 

Ela, pequenininha, já calma quando tirei as mãos de seus ombros, olhões quase arregalados. "Pô, cara, brigado pela força. Valeu mesmo.". Cássia realmente se assustou com a possibilidade de um beijo roubado, mas a um verdadeiro cavalheiro bêbado só interesssam as causas amorosamente perdidas. 

Té mais. Té mais. Valeu. 

Saímos rindo pelo hall, os amigos dela me espiaram estranho, voltei para a mesa e comemorei o feito gloriosamente com Bolinha. Logo depois, pedimos a conta: não havia mais nada a fazer. Na hora de irmos embora, dei um tchau pra ela.

Fizemos o caminho de sempre: Atlântica, Aterro, Arcos. Bolinha gostava de dirigir. Era um tempo de dificuldades - quase nada se compararmos a hoje - mas ainda era possível você tomar um trago na madrugada e se deparar com Cássia Eller no banheiro do bar, muito tempo depois da velha Galeria Alaska ter encaretado por completo, antecipando as trevas de 2020 - ou pós-2018, permitam-me.

Três anos depois, Cássia Eller morreu. Por ironia do destino e sem saber, eu estava a 100 metros do hospital onde ela faleceu. Antes disso, ainda a vi ao vivo um showzaço que ela fez, para variar, na Concha Acústica da UERJ. Ela era demais. Meu amigo Rubens também morreu tempos depois. O Bolinha está bem vivo, falamos pelo whatsapp. 

Não vou mais a bares como gostaria. Talvez não vá mais. Talvez vá às vezes com Henrique, com Isys, com o Leo agora é tudo light. Ele está certo. 

Só dez por cento é mentira. O resto é a maravilhosa Copacabana dos anos 1990, puríssima, da boa. 

@pauloandel

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