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Thursday, December 31, 2020

pilar

há um um lindo sol

de tarde - o sol da 

última tarde -

e a gente amanhecendo

sem filas de trem

ônibus ou barcas

- a cidade é um feriado


[são vários sóis


vão-se as horas

por entre ruas desertas

e sombras de árvores

incansáveis - 

às vezes pequenas 

frutas se espatifam 

nas calçadas


a gata do vizinho está

derramada à cama e 

nua de doer - ela sabe

quem vê ao longe e ri

e debocha da própria

beleza em pêlo e riste


[ao longe, gentes reviram lixo

para ter o que viver


[ao longe gritam num pagode

bastante empolgante 


eis um carnaval sem 

desfile nem torcida

sem apoteose e fantasia

- a última tarde 

- o sol da última tarde


[casais que não trocam 

bom dia


[mensagens secas que 

não chegam 


[peitos estufados com vã

valentia e rostos nus


é melhor deixar a 

cortina fechada

o som bem mais baixo

a campainha desligada

pequenas esmolas de

paz em tarde ensolarada

- o sol da tarde

- o sol da última tarde 

do ano que desaconteceu


[talvez o som de ornette coleman

seja uma pequena liberdade


[ou a fúria juvenil de albert ayler

em sopros tortuosos


do outro lado da cidade

a pequenina figura de 

um menino caminhando

pela calçada perto da baía

de guanabara sem camisa

nem horário e nem família

de chegada


[tão pequeno e novo 


as pessoas amanhecem 

numa linda tarde de sol

- o último sol da tarde

- a tarde do último dia


alguém assobia uma canção 

popular nos arredores da 

central do brasil, perto de 

onde joão goulart fez seu

último discurso antes de 

sequestrarem o país


[são sóis demais 


@pauloandel

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