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Sunday, March 31, 2024

60 anos de nojo de 1964

Eu não aprendi sobre a ditadura imunda na TV, nem nos livros. Só a posteriori. Eu a vivi dentro da minha casa, desde que nasci, e até hoje carrego sequelas irrecuperáveis dela. 

Aos oito dias de VIDA, fui carregado por minha mãe desesperada. Ela saiu correndo de casa depois que soldados foram à nossa casa para prender meu tio, um jovem estudante de 23 anos. Um simples tropeço da minha mãe na rua, também uma jovem de 23 anos, teria sido a minha morte, mas felizmente não aconteceu. 

Tempos depois, novamente para prender meu tio, a ditadura simplesmente deteve meu pai para usá-lo como refém. Desesperado, o irmão se entregou. Nunca fez mais do que reuniões no Partido ou panfletar contra a ditadura em passeatas, mas ditadores são assim: covardes. Prenderam-no, deram-lhe o abominável "telefone" e lhe tiraram uma das audições. Não aguentando mais, um garoto que tinha sido criado em colégio interno, órfão, virou um jovem humilhado que teve como única saída o exílio. Nunca mais voltou. As sequelas da ditadura contribuíram para seu suicídio, anos mais tarde. 

Deprimido, aos poucos meu pai caiu no alcoolismo e isso nos provocou uma tragédia familiar e econômica que jamais superei. Só parou de beber quando não pôde mais andar, e isso foi o que lhe deu uma sobrevida de treze anos. 

Minha mãe sofreu demais. Jovem ainda, passou a ter vários problemas de saúde que abreviaram sua vida. Faleceu com 61 anos, mas uns 100 de sofrimento.

Além de destruir a harmonia da minha família, a ditadura ainda me expulsou de uma escola no jardim da infância. Numa excursão até à Praia Vermelha, simplesmente perguntei à Tia Diva porque a praia tinha aquele nome. Perto dela, estavam dois senhores de farda. Nunca me esqueci do olhar odioso que me dirigiram por uma pergunta da criança. Psicopatas, queriam saber quem era a criança de "traço comunista". Foram à escola, pegaram meu nome, encontraram o do meu tio, avisaram que eu deveria ser expulso para não contaminar as outras crianças. A diretora recebeu minha mãe e, chorando, comunicou minha expulsão. Uma semana depois, eu estava em outro colégio, sem saber de nada. 

Ah, muito provavelmente foi a ditadura que sumiu para sempre com a Lúcia, que era minha babá em 1973. Morávamos uma temporada bem no Largo de Cascadura. Ela desceu para comprar pão e nunca mais voltou. Meus pais desesperados foram em delegacias, hospitais, no IML, choravam o tempo todo, eu vivi aquela agonia. Isso tem 51 anos. Sou o único sobrevivente daquela casa. Nunca mais tive sinal de Lúcia. E por que teria sido a ditadura? Simples: porque naqueles anos e nos seguintes as pessoas simplesmente "sumiam" para sempre, num tempo em que o tráfico e a milícia engatinhavam. 

Perto de 1979, o Jorge sumiu. Trabalhava num depósito de bebidas que ficava na Figueiredo Magalhães, em Copacabana, perto da Vila. Nada disso existe mais: é o terreno do Metrô e do Batalhão da PM. Lá para 1981, quem sumiu foi o Carlos, jornaleiro. A banca de jornais simplesmente ficou sem abrir por dez dias, o dono apareceu, ninguém tinha notícias. Veio um novo jornaleiro. Carlos, nunca mais. 

Uma coisa que sempre me intrigou foi quando me tornei um torcedor mirim fanático. Eu ouvia todos os clássicos do Maracanã, meu pai me levava e tal. Pois bem: volta e meia noticiavam que alguém morreu na geral, tentando roubar alguém, teve troca de tiros. Estranho é pensar que alguém entrasse armado justamente no setor mais popular do estádio, com muitas pessoas pobres ou muito pobres, para roubar - os outros setores tinham gente com mais grana. Ao mesmo tempo, se sabia que muitos militantes de esquerda gostavam de ver jogos na geral para ficarem com o povo. Será uma coincidência a morte de tantas pessoas ali? É um assunto silenciado. 

A maldição da ditadura tirou a saúde dos meus pais. Doentes e sem renda, passei a sustentar a casa. Isso ajuda a entender minha penúria e minha ausência de bens. Mas eu não deixei de produzir: fiz muitas estatísticas e escrevi muitos livros. Mas é difícil, muito difícil viver com esse peso. 

Se a ditadura fez tanta coisa ruim para quem era literalmente inofensivo, imagine todo o resto que já descobrimos nos arquivos pavorosos. Em nome de uma farsa corrupta, torturaram, mataram, estupraram, incendiaram, esquartejaram e desintegraram muita gente. Vários dos crimes horríveis que você vê na TV, cometidos pela milícia e pelo tráfico, são reproduções de técnicas utilizadas pela ditadura. 

Quanta gente foi socada no sanatório de Barbacena para morrer em vida? Ou jogada na Baía de Guanabara? Ou enterrada na então deserta Zona Oeste do Rio há 40 ou 50 anos? 

E que ninguém seja ingênuo: houve muita corrupção. Muita. Essa é a principal motivação de todo golpista. Só verdadeiros otários acreditam nesse discurso de pátria, família e religião - é melhor trocar por hipocrisia, desfaçatez e corrupção. 

Há muitas pessoas feito eu por aí. Algumas não falam porque são traumatizadas. Outras, porque têm vergonha de se expor. E outros motivos. Só que muita gente sofre com isso. São dores na alma, no peito e na geladeira vazia. Na saudade das pessoas queridas, que poderiam ter mais tempo na Terra. 

Eu tenho o mais profundo nojo das pessoas que defendem a ditadura. A elas desejo as piores coisas. Essa não é uma causa de ricos contra pobres, de brancos contra negros, de conservadores contra progressistas, de direita contra esquerda, mas sim a causa dos seres humanos contra monstros que defendiam e defendem - ainda - o nazifascismo, e isso é intolerável. 

Há pouco o Brasil quase passou por mais um golpe. Que as pessoas tomem consciência dos fatos e pensem em suas famílias, em seus filhos. Não é mais possível que em 2024 as pessoas defendam uma aberração como a ditadura. É inaceitável e merece as piores reprimendas. 

Nenhuma criança deveria ter passado pelas coisas horríveis que eu passei, por causa dessa ditadura nojenta. E o pior é que, perto do que muitas sofreram, eu sou até um privilegiado. Não fiquei na primeira fila da sessão do horror. 

A você, que tolera ou defende isso, pense que as pessoas mutiladas, estupradas e covardemente assassinadas poderiam ser suas próximas, ou até da sua família. A ditadura começa eliminando seus alvos prioritários, depois ataca qualquer um. E se você vê algo parecido com a milícia e o tráfico, isso está longe de ser mera coincidência. 

@p.r.andel

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