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Wednesday, November 25, 2020

panqueca

Acabei de comer uma quentinha. Chamam de prato executivo. Frango, arroz, batata frita, feijão, tomate, alface e, sei lá por que, molho à campanha. Comi sozinho enquanto vi o jogo do Botafogo. Lembrei de quase 40 anos atrás.

Minha mãe teve que fazer uma cirurgia. Estávamos muito pobres mas, não sei como, meu pai conseguiu interná-la num hospital particular que ficava na Alameda São Boaventura. Era para ser uma coisa rápida mas acabou levando dois ou três meses porque contraiu infecção hospitalar. 

Eu só podia ir visitá-la aos domingos. Durante a semana, ficava sozinho. Meu pai só chegava à noite. Eles brigavam, ele bebia muito, mas naquele momento ele ficou bem preocupado. 

Eu já sabia fazer alguma comida, mas meu pai preferiu deixar dinheiro comigo em dias alternados, para que eu comprasse uma refeição pronta. De noite lanchava. Já estava de férias, tinha passado em tudo, o que me restava era esperar o Fred chegar da recuperação e ir pra casa dele até meu pai chegar. Às vezes ficava em casa lendo e pensando no Fluminense: Afonsinho, Deley e Mário. 

Tinha um restaurante perto da minha casa, dentro do shopping dos antiquários, chamado Afonjá. Seu dono se chamava João Pedro, era um cabeleireiro respeitado em Copacabana pelo estilo afro, também tocava o restaurante. Na primeira vez em que fui lá, tinha um prato chamado panqueca e gostei do nome, então pedi para viagem. Três panquecas de carne, arroz, feijão, batata frita e tomate. Quando cheguei em casa e comi, gostei para sempre. Panqueca é muito gostoso. Voltei no restaurante várias vezes e pedi panqueca. 

Nos domingos em Niterói, antes de entrar na visita, eu tomava um Mineirinho no bar com meu pai. Era perto do hospital. A Alameda estava cheia de cartazes do cantor Marcelo, lançando sua música "Abre coração". Minha mãe demorou um tempo mas ficou boa. Ela nunca recuperou integralmente a saúde mas ainda viveu 25 anos. Sofremos muito mas também nos amamos e rimos bastante. 

Hoje não tinha panqueca, mas a quentinha me lembrou aquele tempo. Eu sonhava em ser jogador de futebol, ou trabalhar na lanchonete vendendo misto quente. Eu queria ter uma casa pra morar com minha família. Queria ficar adulto logo pra ajudar em casa. Eu jogava botão, estudava polinômios, desenhava escudinhos de time, ia à praia, jogava bola. A gente ouvia discos na casa do Fred. 

Maradona já era um cracaço em 1981. Agora na TV Fernando Vanucci narra uma crônica de Armando Nogueira sobre Maradona. Muito tempo depois, um psicopata de redes sociais ia dizer que eu fazia imitação barata do Armando Nogueira, mas era tão estúpido que não percebeu minha imitação do Ivan Lessa. 

Joguei a quentinha vazia fora. Vai dar meia noite. Como acontece todo dia há muitos anos, tenho saudade dos meus pais. Tenho saudades do Mineirinho gelado na Alameda São Boaventura. O Marcelo eu vi há dez anos, no show do Youssou N'Dour. Tenho saudades de ser um garoto, ou de ter tempo, talvez eu seja garoto até com rugas e cansaço. 

Agora Maradona dá um passe espetacular na TV para Caniggia liquidar o Brasil. Estávamos na casa do Luizinho. Xuru falou muitos palavrões. Eu já tinha mais de 20 anos mas continuava um garoto. 

Tenho saudades da panqueca. 

Quase todos os personagens desta pequena história desimportante estão mortos. 

@pauloandel

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