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Tuesday, October 17, 2006

Strani

Certo dia, veio um amigo e falou-me do estranhamento que lhe causo, ora por ser fan do falecido cantor paquistanês Nusrat Fateh Ali Khan, ora por gostar de ir ao Maracanã a jogos de pouco público...onde não necessariamente comemoro os gols de meu time. Estranho. Riu, brincou, mas desvelou algum desconforto com a situação, o que me fez refletir a respeito.
Não foi a primeira vez que isso ocorreu. Amigos, alguns, já mencionaram algo semelhante antes. Uma ou outra namorada, menos afeita às artes e prosas, talvez. Contudo, foi suficiente para que, às vésperas de um sono que não se avizinhava conforme o devido, eu encarasse o teto de branco cinza e poeira lunar. Estranho?
Pode ser.
Nasci no dia do aniversário de minha mãe. Talvez não conte como um legítimo estranhamento, dado que um planejamento poderia viabilizar tal fato (o que, no caso, certamente não ocorreu). Quinze para as quatro da manhã. Coreto mais que alterado.
Assim, para efeitos documentários, meu primeiro estranhamento oficial foi quando aprendi a ler e escrever praticamente sozinho. Meu pai comprava hectares de revistas em quadrinhos, Pato Donald, Mickey, eu lia todas e, em alguma ocasião, tinha à mão lápis e papel. Pronto. De certa forma, como eu mal tinha três anos, ficava difícil discutir tramas de Walt Disney com meus contemporâneos de brincadeira na praça. Tornei-me quase um ermitão neste assunto, letras. Melhor jogar bola com os amigos. Escrever, sempre sozinho.
Um grande momento da minha estranha vida ocorreu em 1974, na Praia Vermelha, aos pés do Atlântico Sul. Houve uma excursão do colégio para a Urca - sim, para uma criança, qualquer deslocamento por mais de dez quadras pode ser considerado uma viagem. Lá chegando, eu lembro bem da professora Diva, nos enfileirando. Não lembro se a estátua de Chopin já existia na calçada. Vi vários sujeitos que depois identifiquei como soldados - para mim, eram iguais aos soldadinhos de acrílico que eu tinha de brinquedo e utilizava para tudo, menos guerras. Outros sujeitos, senhores, com outras roupas bonitas, nos esperavam. Perguntei algo como "Tia Diva, porque a praia se chama Vermelha?" e recebi como resposta uma dúzia de olhos arregalados em minha direção, seguidos de um silêncio sepulcral e o riso amarelo da mestra, que jamais me respondeu ao questionamento. Talvez tenham desconfiado de que eu fosse o mais jovem comunista brasileiro e estava na fila em missão de atentado à ordem nacional. Difícil entender porque incharam as vistas; era 1974, tempo difícil de entender qualquer coisa. Tempos depois, a mesma Tia Diva enviou um relatório ao serviço de orientação educacional; chamaram minha mãe ao colégio. Constava que eu era excessivamente tímido, retraído e com possível dificuldade em matemática - só desconfiei dessa história depois que me acostumei a falar para 500 pessoas em auditório, como presidente de centro acadêmico, e também ter colado grau em estatística mais meio bacharelado em matemática, tudo com letra minúscula. Realmente, julgar o outro é sempre complicado, mesmo que o julgador tenha seus trinta anos e o julgado, uns cinco.
Sosseguei até uns oito anos de idade, quando comecei a ler números do "Pasquim". Adorava palavrões de Ivan Lessa. Meus amigos achavam estranho, claro, que eu contasse piadas sobre o General Figueiredo, recente dito presidente da dita república. Tudo minúsculo.
Os tempos foram passando, eu sempre gostando de aprender coisas diferentes, sem especializações, ouvir falar de um pouquinho de tudo. Veio a moda do shopping, eu ia para o Arpoador. Espalharam-se fliperamas pela cidade, meu negócio era botão, futebol de praia e pingue-pongue. Leo Jaime tocava no rádio; reuníamo-nos na casa de Buja para ouvir Kiss, Genesis, um tal de Guns n' Roses, jogar botão e mau-mau. Todos viajavam para suas casas de campo, entre rocks rurais, e eu enfiado em barracas de lona, mosquiteiro, nos matagais mais próximos ou longínquos, conforme as conveniências.
Escolhi minha carreira em plena fila do vestibular, claro. Não tinha a menor idéia do que era aquilo. Alguém inventa que você, com seus dezesseis, dezessete anos, tem que escolhar algo com que pretende conviver por trinta e cinco - isso, se tudo correr bem com o FGTS. Tasquei a danada da estatística. Quase ninguém sabia do que se tratava, e acho que não sabem até hoje. Por causa da faculdade, acabei conseguindo meu primeiro estágio profissional no garboso hospital psiquiátrico da Venceslau Brás, Doutor Philippe Pinel, o Pinel. Estreei em 1990, junto com Collor na presidência. Eu sei, isso realmente parece muito estranho. Nos intervalos, para testar a veracidade da informação de que a média de pontos de um dado atirado infinitamente é de três e meio, resolvi atirá-lo. Quinhentas vezes. Era aquilo mesmo, teimosia de garoto.
Quando me formei, deu-me um peso danado de consciência. Eu ia embora, meus amigos iam ficam na faculdade. Fiz prova para dois mestrados, passei em um, não tinha bolsa; ri muito. Resolvi ficar mais um ano e meio prorrogando o melhor da vida acadêmica, faculdade matemática, apenas para manter o vínculo diário. Estranheza. Um dia, desisti. Ano depois, ingressei na faculdade de sociologia da federal, tudo minúsculo, e quase que meus amigos me mataram: Estatística e Sociologa, agora maiúsculas, quase saem no tapa todos os dias - migrar de uma para outro significa deixar a Young Flu pela Jovem Fla, trocar Meca pelo Maracanã da fé, ou ainda deixar de ser Fagundes para materializar Léo Áquila, se é que me entendem. Mais grave ainda trocar a velha camisa da UERJ para beijar o brasão na camisa da UFRJ. Durou pouco, mas fiz com fé, sem fé.
Estranho?
Não menos do que gostar de ter ido aos jogos do Fluminense na terceira divisão do campeonato. O Brasil vivia a sede da destruição tricolor e eu, lá, feliz com meu cachorro-quente, torcendo e vibrando com Joel Cavalo e outros não eleitos. Disse antes, melhor com estádio vazio.
Dispensei dois empregos em São Paulo só para não dar intimidade à cidade e ter que viajar de avião, um de meus poucos pavores. Gosto de ir lá por um, dois dias, nada além. Ensinou-me o velho Braga, relatando a história do hóspede e do peixe: ambos, depois de três dias, fedem.
Gosto de Bob Dylan, desde que eu tinha oito anos de idade, não perguntem a razão, eu não tinha sossegado. Houve um tempo em que todo mundo gostava. Hoje, não mais. Chamam-no de fanho e desafinado, eu desconfio que não entendem as letras.
Certa vez, apaixonei-me efemeramente por uma mulher casada. Minha turma toda de bar disse algo bem chalhorda "Deixe de besteiras e dilacere essa mulher!". Eu só pensava em carinho, sexo e amor. Quando contava a alguém, risada era reação. Estranho. E a outra, depois, que não valia um clipe enferrujado? É, acontece, perdemos tempo com coisas e gentes desnecessárias - e isso nem sempre é estranho, sabe-se. Ama-se à toa, apenas para redesenhar o novo amor.
Com as melhores companhias possíveis, senti-me muito sozinho; por vezes, foi muito bom. Mesmo.
Deixei de ir a algumas grandes festas e folguedos, tudo para ficar em casa lendo Graham Greene ou vendo o programa do Abujamra com trilha sonora de Tom Zé. Nenhum arrependimento.
Entre muita coisa séria e convencional, a estranheza morou e mora ali defronte. Parece vizinha, namorada, colega de classe que senta ao lado. Fazer o contrário, o não usual, o inesperado, pois. A tevê diferente, a música diferente, o sanduíche diferente, a prosa diferente, tudo me interessa.
Falando nisso, outro dia conheci uma garota do barulho, feito a velha canção do ministro. Podia dizer de seus bom-gosto, de sua conversa empolgante que dura horas e horas feito amor incessante, de seu notável saber das artes e letras. De seus ótimos piercings. Morena daquelas que inevitalvemente os incautos fitam, mesmo que acompanhada. Um doce. Uma graça, gatona. Veio um rompante, falávamos de ciência, soube que era formada em Estatística!
É ou não é algo para lá da ponta-esquerda de estranho?
Paulo Roberto Andel, 18/10/2006

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