Monday, December 28, 2009

OUTRAS PROCISSÕES



RASANTE

depois que ficou
rasante
sugeriu a morte
num rompante
para o belo
virar traste
no estalar de um
instante
depois que ficou
rasante
porque a chapa era
quente
há fúria de um fuzil
estridente
depois que ficou
rasante
é que se entende
o estúpido da luta
onde todos vivem
derrota –
mesmo a vida
fugitiva
doravante


SÃO

não me espere
pois vou embora
já passou do ponto
e da hora
quero a gíria preferida
que me faça
dar o fora:
a noite já virou
senhora
a moça que amei
é folha morta
e o bom daqui
se fez coisa tão rara
que fadiga à demora
não desespere
porque vou embora:
qualquer vida desses
eu volto;
basta que a pena de valer
seja
clara


DRIVE-THRU

transito
pelo vaivém do ar
que freqüenta
meu peito

cada segundo, uma rua
cada suspiro, uma via

entre a poeira
e o engarrafamento
a tristeza
é um atropelamento
a saudade
é a morte no acidente
que aborta a mocidade
um rompante me namora –
é o ostracismo!
basta somente
o carro vazio
perdido
no estacionamento.


TRANSPARÊNCIA

o primeiro fonema
e mais dez minutos
de prosa barata
forjam prazo
suficiente
para você me desvelar
até o fim
dos
nossos
dias


MANIPULAÇÃO

men
in pool:
action!


RELICARIUM

saudade:
o nunca-mais
repousado
em lençol esplêndido
insone e ansioso
pelo até-breve
que não tilinta
o telefone
pela madrugada


CENA COTIDIANA

Casa vazia. Um berimbau adorna certa canção popular que milita à sala. Olhos de gula saboreiam a bela mulher estampada numa cena de televisão muda. E telefones adormecem. Todos estão muito ocupados para conversar; precisam viver suas televisões mudas, cada um de modo distinto e todos crus. O justo é invadir cada um dos canais pagos, sem maiores intimidades, sem fincar raízes, feito um voyeur contemporâneo. O jeito é postergar as louças em débito e roupas na fila. O jeito é contemplar o passarinho que ladeia a janela, para depois voar ao longe, onde todos estão mortos. O óbvio é um corpo cansado que mendiga descanso, longe dos indigentes em penitência nos arredores. E os braços ficam abertos para o coração da capital – o teto. A fé que não transforma reluz numa parede mal-caiada. As cortinas cerradas, de tom azul-cobalto, velam o mundo. O prazer do repouso à cama escorre pelo horizonte que lhe cabe.


DIALÉTICA MODERNA

não me cabe
regar rancores
por conta de meu
destempero
e este papel já não me serve:
certas vezes, ou muitas,
desenhei tatuagens perversas
nos olhos dos que me
opuseram
e vieram ódio, mágoa, tristeza.
vieram lágrimas sensatas
em sabor de alecrim
que lhes emprestou
alguma beleza.
hoje, deitado no recato,
o máximo que me permito
é replicar
tolices conservadoras
a mim cuspidas
no século do twitter:
palavras rápidas,
nem tão ácidas,
mas limitadas em número
a tal ponto
de tentarem somente
fustigar
tamanha cegueira
de um todo


COR

a paixão da minha cor
só faz todo sentido
quando se despe do púrpura
que alumia
um vestido fino
quando se despe
em meu desejo
e intento o sono profundo
que não se interrompa
no sonho
é que a paixão do meu sono
é branca
e quase loura
e quase doce
quando dança aos mares
e pouco fala
entre um riso raso
e outro aos goles
a cada mal, ela me reza
a canta canto, faz-se voz-guia
e o desejo de meu desejo
é que seja infinita
feito o tesão que me arrebata:
uma covardia!
a paixão da minha cor
é bem mais que uma procissão
uma religião
é maior do que a rebeldia
nas calçadas
e mesmo com tudo isso
me desampara
porque dorme tão

longe

de
mim


LEITE E MEL

não é preciso ser um gênio
um ivalski
um catalano
tibúrcio
ou qualquer takimoto
para ver com alegria
o semblante firme de john lennon
no filme de penny lane
e perceber que o bardo
também é um gênio
basta
respirar
e ver.
não há importância alguma
no estúpido assassino
que lhe ceifou a vida
frente ao edifício dakota:
o inferno católico servir-lhe-á
de penitência quando for a hora
da fogueira acesa.
fato posto, nem convém
reiterar o amargo desgosto
na orfandade de minha eletrovitrola:
penny lane a namora.


RUBRO CINZA

na uva pisada
exala o cheiro doce
do sangue tinto
a vinho

na pedra polida
o pó de brita flutua
até fazer no céu
o cinza

no cimento da lápide
a pá escorre a pasta
que trancafia
a morte
na urna

no bustier escarlate
moram seios de encanto
mamilos intumescidos
e vida


TRADIÇÃO

Quiseram me perguntar a respeito do que rezava minha tradição, como se isso dissesse de alguma relevância na insensatez desta terra. E perguntaram, pedindo uma resposta sucinta, com sabor de drive-thru. Respirei e falei: sou Copacabana, menino. Resposta exata para um bom entendedor: dizer de um pouco de tudo, um pouco de todos nós. Quiseram me perguntar de minha tradição e isso vem de longe, feito a história que cada um de nós carrega no ventre. Eu era criança do Lido, com chupeta de cordão de ouro e minha mãe com riso de menina toda vez que me cortejavam, especialmente um Sérgio Brito ou um Bornay, para ciúmes de alguma tia da praça. Eu brinquei de bola na beira do Atlântico Sul e visei o Copacabana Palace com entediado, mas respeitoso, olhar de déja-vu. E fui criança do Bairro Peixoto e da Figueiredo Magalhães, mais precisamente no coração da rua Tenreiro Aranha, que o progresso assassinou junto com minha escolinha. E vi a mendiga Lina falando francês na calçada de Siqueira Campos enquanto esmolava. Depois, aprendi o Leme, o Posto Seis, o Arpoador e todas as fronteiras d’água. O Fernando me ensinou do Botafogo no Edifício Keats; do Fluminense, já nasci sabendo. E morei muitos anos num prédio cheio de personalidades e anônimos, num esbaforido entra-e-sai típico daquele bairro-mundo, num apartamento que não fazia jus ao que meu pai possuiu no passado. Ele chorava o rancor nos bares, enquanto envelhecia e empobrecia. Minha mãe chorava e sofria, chorava e trabalhava porque Deus era bom e ia extirpar nosso sofrimento. Nossa turma era pule de dez nos jogos de praia, de futebol de botão e nos acampamentos dos escoteiros – e também nas reuniões vespertinas na casa do Fred. Eu passava na porta do São Sebastião para fitar Eliane e ela continua linda. Eu fitava Kátia na galeria do Cine Condor e ela continua linda. A Vera pagava meu picolé depois da aula de basquete no quartel, eu suspirava por aquela mulher perfeita e sei que o tempo lhe foi inerte. Estudei muitas coisas, aprendi muitas músicas com o Gustavo, bebi cerveja com o Jorge e me iludi pensando ser adulto. Entrei para a faculdade e o pessoal desconfiava das minhas camisas de manga comprida, só por eu ser Copacabana. Alguém me ensinou o caminho dos mafuás e puteiros, eu ensinei aos demais. Escutei com atenção qualquer palavra que os mais velhos me diziam na porta dos botequins. E o tempo e o tempo são tempos. Aos poucos, Copacabana deixou de ser a minha vida para ser a minha grande paixão: virei da Vila, do Méier, do Grajaú e Bangu, eram outras palavras. Um dia a sirene tocou; faltava derrubar o muro, somente. Dezenove de novembro de mil, novecentos e noventa e três, seis e meia da manhã. Tranquei a porta sem saber meu novo endereço; parecia a guerra. Nunca mais voltei. Copacabana mora dentro de mim. Meus pais continuaram sofrendo, tiveram dias felizes e ficaram comigo até outro dia, eu com eles porque lealdade sempre foi a nossa sina. Foram embora sem se despedirem e creio que preferiram assim. Eis minha tradição e seu próprio jazigo.


Paulo-Roberto Andel, 28/12/2009



Tuesday, December 22, 2009

DIAS DE DEZEMBRO



(ou porque as coisas não dão certo coletivamente)

I

Chegou o verão. A estação dos sonhos cariocas, quero dizer, daqueles que têm disponibilidade para freqüentar praias e outros regalos da vida. A maioria se espreme nos coletivos e trens apinhados. Certa turma, com mais de dez salários-mínimos no bolso, também reclama: queriam as vias livres para desfilarem com seus “0kms”. Não há espaço. É coisa do mundo. Carro nunca deveria ter sido caro; agora que é mais fácil para assalariados, todos têm. Eu não. E acho ótimo.

A três dias do Natal, são ruas calorentas, as classes média e alta se engalfinhando por presentes para alcançar a bênção de Deus, a classe oprimida esperando a mesma ajuda do tímido Deus. Dizem que nesta época, nos dias finais do ano, as pessoas tendem a ficar mais sensíveis. Procuro, procuro, mas não acho.

O Natal, o Ano-Novo, o Carnaval, a Copa do Mundo. O resto é de intervalos para dor. Dor dos que sofrem, dor dos que se incomodam com a presença dos sofridos. Parece incrível, mas não é.


II

Meu amigo Marco, apressado por conta das atribuições e nós, sentados numa mesa de lanchonete. Posso dizer: Bob’s. Não sou pago para escrever. Faço porque gosto. Não riam com a simulação de certa propaganda. Antigamente nossa lanchonete oficial era o Gordon, mas o Plano Collor acabou com tudo.

Falávamos da dor do mundo e das pessoas, da falta de capacidade do próximo e dividir. Os apressadinhos querem falar de demagogia e paternalismo. Eu quero falar de baixa acuidade social. Ele me conta que, baseado em experiências pessoais, sabe de casos dos moradores de condomínios que, ao verem suas vizinhanças sendo ocupadas por moradores de rua que vêm buscar comida doada por instituições de caridade, reclamam com as mesmas: “Bota esse pessoal noutro lugar”.

Para alguns, isso parece o medo de encarar a realidade dura de que o mundo é cheio de infelicidade, por mais beleza plástica e natural que possua. Sempre vivemos em guerra, essa é a verdade. Mas, sinceramente, acho que é coisa bem pior.

Nazismo.


III

Já se foi a primeira década do século XXI e ainda me surpreendo com os seres humanos.

Impedir alguém de receber uma esmola, um prato de comida, parece coisa de Auschwitz.
Mas acontece.

Depois de tudo o que temos vivido nessa cidade, com direito a gente carbonizada e helicópteros derrubados por bazucas, há quem seja capaz de acreditar que a segregação e a remoção de pobres das favelas/ ruas seja solução.

Há quem creia que o que está aí é imutável, sempre foi assim, não tem o que mudar e será assim sempre. O que me parece o ponto de inflexão entre a humanidade do ser e seu avesso. Se você perdeu o senso de humanidade, babau! Não adianta rezar, não adianta fazer amigo-culto nem pedir para Papai do Céu (sem deboche). Não sendo capaz de valorizar o próximo na Terra, na vida real, onde o fará?


IV

Se você não é capaz de pensar e valorizar o próximo, como pode esperar de quem sempre foi criado como selvagem um comportamento de lorde?


V

Discurso hipotético:

“A culpa é do governo. É do Lula. Por que eu vou dar meu dinheiro para estes salafrários que não fazem nada? Sonego imposto mesmo. Se tiver que usar nota fria, eu uso. É a lei da vida. O dinheiro é meu! É muito bonito ter casa para todo mundo, ter emprego para todo mundo e hospital, mas quem vai pagar por isso? Eu? Na-na-ni-na-nã!”

Alguma vez você já ouviu alguém dizendo algo parecido com isso?

Se ouviu, uma coisa é certa: antes de estar à frente de um idiota, você está à frente de um brasileiro. O típico brasileiro que faz o país andar para trás.


VI

Dizem que capitalismo move o mundo. A julgar pelos números, atravanca. Livre iniciativa é uma das maiores mentiras da Terra, repetida por papagaios cheios de opinião e vazios de argumentos consistentes. O mais incrível disso tudo é que os sistemas liberais se sustentam defendidos justamente por quem mais é explorado por eles: trabalhadores assalariados, clientes de banco com água na garganta dos juros do “chequespecial”. Um contra-senso admirável.

Outra coisa que me chama atenção é como jornais, revistas e noticiários de televisão passaram a ser verdadeiras autoridades da verdade. “O Mainardi escreveu”, “O Jabor falou”. Os famosos “quem?”, notoriamente conhecidos por força da propaganda massiva (outra característica herdada do Reich) que os torna “gênios” de uma hora para outra, mesmo que a formação intelectual e acadêmica passem longe de qualquer graduação. Se algum desses sujeitos vociferar que estrume de cavalo é bom para a pele, imagino a orla do Leblon num domingo, em campanha para a “saúde” das pessoas. Inevitável imaginar o fedor da merda.

Depois de uma boa campanha ou passeata, nada melhor do que uma relaxadinha.

A probabilidade de alguém não telefonar para o Disk-Junkie é zero. Mas convém ressaltar: eles são contra a violência, ao menos entre a estátua do Zózimo e o costão do Leme. Fora disso, não tem “lugar bonito para passar na tevê”.


VII

Ano que vem tem eleição.

Ano que vem tem mil eventos.

O país tem mudado – e muito – para milhões de miseráveis que vivem fora das zonas televisivas. Mas ainda é pouco.

Enquanto não impulsionarmos uma verdadeira revolução supra-partidária, supra-religiosa, supra-econômica, nada mudará de vez para melhor.

Enquanto se ignorar o próximo, o humilde, o desassistido, o indigente, tratando-os como se fossem lixo, entulho de remoção, nosso caos não cessará.

Qualquer garoto de dez anos que domine bem a tabuada sabe que o modelo de “liberdade” vigente no Brasil não liberta ninguém além dos abonados: inescrupulosos, herdeiros, coça-sacos, parasitas e outros que, por terem o “seu dinheiro”, jogam titica de pombo na cabeça dos pobres e riem.

Onde está o espírito de Natal destas pessoas?

No shopping!

Há que se olhar para a cidade, o país e o mundo. Mas, sinceramente, eu gostaria que em 2009 a hipocrisia fosse menor.

No Morro dos Macacos, os direitos humanos são dez mil vezes mais desrespeitados do que em Cuba, Honduras, Venezuela e – pasmem – Irã. Macacos, Adeus, Alemão, Juramento, Borel, Providência. Al outro lado del Rio.

Nas favelas cariocas, mata-se mais do que na eterna guerra em Bagdad.

Não sejamos tolos de comparar a dificuldade financeira do artista plástico do Leblon com o sertanejo de Paraopeba. A dureza de um é não ir ao Antonio’s. A do outro é sobreviver à fome.

Não sejamos patéticos em achar que as dificuldades são iguais se bem sabemos que as oportunidades não são.

Ainda há tempo em se acordar. E isso não depende do governo, do Lula, do Cabral, de ninguém. Só nós mesmos, e nossa solidariedade que hoje mora no Rio Sul ou no Barrashópi.


VIII

Para enxergar melhor o Rio sombrio, o Brasil que se perdeu, o mundo com o dar de ombros ao próximo, vale uma dica.

“Monodrama”, de Carlito Azevedo.

Á boca-pequena, podemos confabular: um dos livros de poesia em língua portuguesa da década. Desde já, condenado a ser página eterna das nossas melhores letras em todos os tempos.

A quem ler, repare no poema que trata da junkie se espetando no Aterro do Flamengo.

Zona Sul não é só beleza e alegria da bossanova.

Por boas festas e um ano de menos cegueira coletiva.


Paulo-Roberto Andel, 22/12/2009

Friday, December 18, 2009

PROCISSÃO MENDIGA















choram
porque a fome lhes esmaga o ventre,
porque a chuva é cruel
e faz dilúvio nas camas de pedra,
despidas de lençóis e fronhas
ou qualquer conforto
que não seja
o entorpecente capaz de inebriar
aquela mesma fome de esmagar,
o frio, a dor
e tantas mazelas que ninguém
há de descrever ao certo

choram porque sofrem
e são esquecidos,
sem direito a vitrines “sold out”,
marcas importadas,
lanches coloridos
ou alguma futilidade qualquer:
choram sem janelas ou paredes,
choram sem anistia,
choram enquanto as estrelas,
brilhantes e já tão mortas,
fazem vezes de telhado
numa terra de covardia

cá fora, o mundo tão bonito
com suas ruas apinhadas
e o corre-corre das compras,
o clingue-clangue do metrô
e outros veículos modernos;
o fascinante mundo a crédito,
a fatura, a prestações,
a cheque sem limite –
do outro lado da calçada,
do lado de fora das grades,
aqueles choram;
vivem um sofrer
que nunca dorme,
um pesadelo que não fenece:
a humilhação de milhões
e milhões
para tudo se tornar um corpo inerte,
abandonado e decomposto à maca
de uma casa médico-legal:
a casa que sempre lhes faltou
agora é um berço de carne pútrida -
horror de morte na celebração
insensata da indiferença


antes disso, choram e choram
por que o mundo lhes despreza,
dá de ombros e desconversa:
o mal que lhes atinge
é problema de deus!
é problema do outro,
sempre o outro –
somos inquestionáveis,
infalíveis e dotados da mais
pura isenção:
quando viemos para cá,
já era assim;
o que nos traz culpa então?
eles choram e choram
porque falamos de deus,
de amor ao próximo,
de boas festas e prosperidade,
mas achamos que eles
não são de deus,
não são da terra,
não são gente feito nós –
e é assim que floresce
todo crepúsculo
da indignidade da gente
que se diz humana:
como se fosse possível
sermos mais gente
do que a gente.
eles choram
por água e pão, somente:
isso me lembra
a beleza de um livro
que não conseguiu nos mudar,
nem transformar
o mundo abominável
que nos cerca,
o qual disfarçamos
com as mesmas vitrines,
as mesmas cores e sacolas
para tentarmos mascarar
nossos piores sentimentos.


Em homenagem ao bilhão de miseráveis na Terra, desprezados pelos governos, pela “livre-iniciativa” e que não terão Natal, Ano Novo, Carnaval, aniversário...

Paulo-Roberto Andel, 18/12/2009

Thursday, December 17, 2009

POEMAS DO SER - PARTE II



GAFE


houve um amanhã,
um mais-à-frente
e me deparei
com a réstia de lembrança
do meu amor,
numa lista de casamento
chique
estampada num computador:
a lembrança
do que já não é amor
nem chique,
nem sequer está à venda.
quando
o amanhã chegou,
o que se imaginaria
era meu vale de mágoas,
minha praia em lágrimas;
porém, meu choro não sucedeu.
não sou mais eu mesmo,
nem meu outro.
o que devia ser rancor
floresceu-se estranheza.
o que merecia ser espanto
tomou praça de lugar-comum.
a saudade quase colidiu
com a indiferença.
resta-me outro amanhã
que ainda não veio.
o mais distante de tudo
é ser adulto:
tempero a fogo
de sobriedade,
tatuagens de serenidade
e um até-breve
que desfoca todo amor
da nossa vã
juventude.


NUA

nua nos meus anseios,
nos desejos mais lascivos
e intimistas,
de modo que me cultiva
à alma:

nua de tão encantadora,
tão romântica e rascante
que só a vejo minha e nua,
numa obsessão catalânica
que me foge à vida.

uma estátua de carne tenra
e fino aroma:
botões de flor à mostra,
receita de lascívia
que me enche o peito,
os sonhos,
me acende na alvorada
e mora no meu pecado:
baila meu ventre,
minha boca seca,
faz meu sexo viver.


GRITO URBANO I

paralelas de concreto,
nacos de ferro,
pedra e néon.
paralelas às ruas
e passarelas:
látex no asfalto,
fumaça liberta no ar
e tudo é um formigueiro
claustrofóbico, cinemático,
que nos logra
a miraculosa
maldição do progresso.


Paulo-Roberto Andel, 17/12/2009

Monday, December 14, 2009

UMA VERGONHA PARA A ETERNIDADE!


Clique no cartaz para melhor visualização!

























Em memória de Mendel Andel, jovem formando de Medicina da Universidade do Brasil que, por não concordar com o nazismo imposto ao Brasil pelos militares, a elite econômica e as multinacionais de origem norte-americana, foi condenado à expulsão do país em 1970.

Nunca mais retornou à terra natal.

Faleceu em julho de 1987, em Israel, onde foi enterrado.

Mendel, meu tio.



Paulo-Roberto Andel, 14/12/2009


JINGOMBÉU


I

Então, o Natal se aproxima. Aquele sujeito que falou mal de você o ano inteiro no emprego quer se mostrar um pouco mais afável. A vizinha de andar, fofoqueira de sempre, dá “bom-dia” com maior intensidade. Um real para o Natal. Vamos dar comida às criancinhas (ao menos) na Noite Feliz. Prosperidade (?), saúde (?), amor (!!!!?). Algum desavisado lembra que precisamos ter mais (?) consciência social. Mais?

Era 1973, corria o fim dos dias e eu andava de mãos dadas com minha mãe na rua Figueiredo de Magalhães, lugar onde vivi boa parte da minha história. Antes, um refresco de côco (com o devido acento) na lanchonete das Lojas Americanas, que ficava na porta de entrada. Algum filme no Condor, o Metro era ali perto, com seu hiper-ar-refrigerado (ou seria condicionado?). O tempo que se foi e não volta mais. Eu vi um mendigo dormindo perto da sensacional Lanchonete Akay, onde hoje reside um Bob´s. Tive medo. Nunca entendi por que pessoas tinham que dormir na rua, no relento, sujas e com fome. Antes que os tresloucados de plantão empunhem armas, atesto que isso foi muito antes de me tornar comunista. Para os mesmos, não custa lembrar que o mesmo comunismo tem mais pontos em comum com a doutrina católica do que se gostaria – aí está Dom Helder Câmara, centenário, para confirmar os alfarrábios.

Tempos depois, muito tempo depois, me apaixonei por uma menina linda chamada Patrícia. Amor de garoto, de menino que sonha com coisas que, quando a gente cresce, não vê jamais, de acordo com o canto maravilhoso de Roberto Ribeiro. No primeiro dia que a levei em casa, olhei para o outro lado da rua. A Akay em grande forma, com seu misto-quente de arrastar multidões; no entanto, a imagem que me atormentava era do mendigo de uma década antes.

As ruas vêm e vão, lá estão os mendigos, os párias que criamos na hipocrisia da sociedade em que vivemos. Achamos Cuba uma ditadura (eu, não!); achamos que Honduras segue um caminho de legalidade (eu, também não!) – e não somos capazes de enxergar a perversidade que se desfolha em nossas calçadas e marquises. Dia desses, assassinos derrubaram um helicóptero policial, em verdadeira ação terrorista, tudo culpa da guerra em que vivemos por conta de porcarias que só servem para destruir famílias, amizades e laços. A polícia, bem sabemos, tem gente de bem mas infiltrados idem. Matamos e morremos mais do que no Iraque, mais do que no Vietnam. É isso que chamamos de democracia?

Ninguém melhor do que um gênio comunista feito Oscar Niemeyer para definir solução de favelas, sempre embonecadas com “humanização” por governos. Perguntado sobre o tema, disse o mestre: “Nenhuma. O importante teria sido não invadir os espaços vazios, respeitar a natureza e conter o poder imobiliário”.

Tapar o sol com a peneira, fingir que não se vê o mendigo de mão estendida, fingir que não se vê o favelado morando na palafita entre ratos, tiros e tristeza. “Eu pago meus impostos e pronto (leia-se “O Estado é meu serviçal”)”. Fingir a velha e mofada falácia de que "é tudo vagabundo que não quer nada". Mas no Natal tudo vai ser diferente.

Quanto a mim, jamais tolerarei um sistema de livre iniciativa que mantém pessoas em favelas e no abandono das ruas. Estou há trinta e cinco anos com esse pensamento e, conseqüentemente, velho demais para mudá-lo. Acredito, piamente, que todos os que se posicionam de forma cruel contra essas pessoas, seja através do desprezo e descaso, seja através de raciocínios ainda mais espúrios como a remoção delas para lugares onde não sejam vistas, são cúmplices do Estado quanto à esta verdadeira atrocidade.

É muito cômodo falar de livre iniciativa com a bunda na poltrona, a tv a cabo ligada e o jantar multivariado assegurado. A realidade da esmagadora maioria não é essa.


II

Houve um tempo em que César Maia, esse mesmo que pode ter forte ligação com os panetones milionários do Governo Arruda, era sucesso no Rio de Janeiro. Gostavam de sua admiração por ordem e autoridade, sem perceber que o ex-prefeito recheava seus discursos com teses e frases claramente emprestadas da doutrina de Mussolini. O pessoal da orla gostava, sim, e muito. E a turma do outro lado do túnel a ver navios – na fotografia. Sujeito que é metido a mandatário sempre faz sucesso. Lembram do Collor? E de Sandra Cavalcanti, braço-direito de Carlos Lacerda nas remoções criminosas de moradores de favelas na Guanabara, tempo em que não faltavam “incêndios acidentais” nas comunidades carentes? Virou braço-direito de Maia.

Há vinte e cinco anos, a cidade era o caos. Vinte também. Dez, hoje. Havia sempre um discurso pronto: “A culpa é do Brizola”. Raras vezes a seguir, o imaginário popular foi tão bem-dotado de completa idiotice. Atualmente, há outra: “A culpa é do Lula”.

Poucos anos depois da confusão que insiste em permanecer nublada, dado o interesse de muitos, o desconforto em ver Delúbio, Silvinho e a cara amarrada do Deputado Genoíno ainda é muito grande. Mas existe uma diferença enorme do jingombéu de Brasília: faltam imagens claras, gravadas, de um governador agradecendo a caridade dada (em notas). E a crise da Arena 2009 não foi denunciada por Roberto Jefferson, ex-advogado do povo (na tv), ex-companheiro de auditório de Serginho Mallandro e que, ao ser questionado sobre as provas que teria a respeito das denúncias do “mensalão” (péssimo neologismo popularizado pelo obeso ex-parlamentar), afirmou com singeleza: “São histórias que vi e vivi”.


III

Os traficantes sanguinários que hoje trazem dor e desespero à cidade maravilhosa do Rio de Janeiro pertencem justamente à geração herdeira dos milhões de desempregados no governo Collor, em paralelo sem precedentes que foi o desgoverno de Marcello Alencar. Seria alguma coincidência? Ou a “culpa” vai cair sobre Saturnino Braga?


IV

Gente é gente todo dia. Gente precisa de atenção e amparo todo dia.

O individualismo das ruas extirpe essa idéia.

Ou se muda a sociedade ou ela desabará por seus próprios meios. E não vai adiantar correr para o São Conrado Fashion Mall em busca de abrigo – a Rocinha é bem ali.


V

Pouca gente é capaz de conviver com seus super-heróis. Eu consegui.

Minha mãe não tem paralelo na minha vida por ter sido minha mãe, somente. É porque foi a melhor pessoa que conheci na vida.

Em 1978, vivíamos muita dificuldade em casa por conta da derrocada financeira de meu pai. Eram tempos de coisas contadas, mesmo, bem diferente da pujança de pouco tempo antes. Certo dia, caminhávamos pelo Bairro Peixoto quando a vi assustada: ela tinha acabado de avistar um rapaz com quem trabalhara em alguma loja. Ele, de mãos estendidas, se chamava Matias. Tinha virado mendigo.

Toda a praça parou para nos ver, claro. Se hoje, 2009, não é comum uma pessoa “bem-vestida” conversar com um mendigo na rua, imaginem trinta anos antes. Além do mais, minha mãe estava arrumada e ainda era muito bonita, o que aumentava o choque de preconceito. Não lembro bem o que conversaram, mas sei que minha mãe me trouxe com ele, comprou algumas roupas no shopping center de Copacabana (hoje, o “Shopping dos antiquários”) e subiu conosco para nossa minúscula casa. Desnecessário dizer da reação das pessoas na rua, mas minha mãe nem estava aí para nada quando o assunto era fazer o bem. O Matias subiu, tomou banho, trocou de roupa. Descemos novamente, fomos ao barbeiro também no shopping. Virou outra pessoa, mesmo.

Como nossa casa tinha se tornado muito pequena, não havia como hospedá-lo. Minha mãe tinha pouco dinheiro, mas comprou um jornal, parou num orelhão daqueles que usavam fichas da Cetel e telefonou: conseguiu uma vaga para o Matias num anúncio de jornal. E pagou dois meses. Lembro que, depois da ligação, ele não parava de chorar e eu não entendia, claro: na verdade, estava agradecido.

O tempo passou, um, dois anos talvez. Por razões que a memória esqueceu, lá estava eu na rua com a minha mãe de novo em algum lugar do bairro. Num súbito, deu um grito de alegria: era o Matias. Estava com avental, na hora de folga, flanando: era cozinheiro de algum restaurante de Copacabana. Quando nos despedimos, eu lembro bem da alegria que tomou conta da minha mãe; criança ainda, eu não tinha a real noção de grandeza daquela situação. Literalmente, com alguns trocados, uma ficha de orelhão e muita atitude, minha mãe mudou a vida de uma pessoa sofrida para sempre.

Felizmente, as histórias que vi e vivi são bem diferentes das contadas pelo Sr. Roberto Jefferson. E das registradas em vídeo com a participação especial do Governador Arruda.

Meu Natal é minha mãe.


VI

Vale a pena reproduzir aqui o excelente artigo escrito por Frei Betto a respeito do novo fenômeno da internet, a blogueira cubana Yoani Sánchez, cantada e decantada como uma versão latino-americana de Mahatma Gandhi a lutar contra as injustiças de Cuba. Não se trata de uma verdade absoluta; tão-somente, um instrumento de reflexão. O artigo de Frei Betto foi publicado em inúmeros jornais e veículos recentemente. Veja:

“O mundo soube que, a 7 de novembro último, a blogueira cubana Yoani Sánchez teria sido golpeada nas ruas de Havana. Segundo relato dela, “jogaram-me dentro de um carro... arranquei um papel que um deles levava e o levei à boca. Fui golpeada para devolver o documento. Dentro do carro estava Orlando (marido dela), imobilizado por uma chave de karatê... Golpearam-me nos rins e na cabeça para que eu devolvesse o papel... Nos largaram na rua... Uma mulher se aproximou: “O que aconteceu?” “Um sequestro”, respondi. (www.desdecuba.com/generaciony )

Três dias depois do ocorrido nas ruas da Havana, Yoani Sánchez recebeu em sua casa a imprensa estrangeira. Fernando Ravsberg, da BBC, notou que, apesar de todas as torturas descritas por ela, “não havia hematomas, marcas ou cicatrizes” (BBC Mundo, 9/11/2009). O que foi confirmado pelas imagens da CNN. A France Press divulgou que ela “não foi ferida.”

Na entrevista à BBC, Yoani Sánchez declarou que as marcas e hematomas haviam desaparecido (em apenas 48 horas), exceto as das nádegas, “que lamentavelmente não posso mostrar”. Ora, por que, no mesmo dia do suposto sequestro, não mostrou por seu blog, repleto de fotos, as que afirmou ter em outras partes do corpo?

Havia divulgado que a agressão ocorreu à luz do dia, diante de um ponto de ônibus “cheio de gente.” Os correspondentes estrangeiros em Cuba não encontraram até hoje uma única testemunha. E o marido dela se recusou a falar à imprensa.

O suposto ataque à blogueira cubana mereceu mais destaque na mídia que uma centena de assassinatos, desaparecimentos e atos de violência da ditadura hondurenha de Roberto Micheletti, desde 27 de junho.

Yoani Sánchez nasceu em 1975, formou-se em filologia em 2000 e, dois anos depois, “diante do desencanto e a asfixia econômica em Cuba”, como registra no blog, mudou-se para a Suíça em companhia do filho Téo. Ali trabalhou em editoras e deu aulas de espanhol.

Em 2004, abandonou o paraíso suíço para retornar a Cuba, que qualifica de “imensa prisão com muros ideológicos”. Afirma que o fez por motivos familiares. Quem lê o blog fica estarrecido com o inferno cubano descrito por ela. Apesar disso, voltou.

Não poderia ter assegurado um futuro melhor ao filho na Suíça? Por que regressou contra a vontade da mãe? “Minha mãe se recusou a admitir que sua filha já não vivia na Suíça de leite e chocolate” (blog dela, 14/08/2007).

Na verdade, o caso de Yoani Sánchez não é isolado. Inúmeros cubanos exilados retornam ao país após se defrontarem com as dificuldades de adaptação ao estrangeiro, os preconceitos contra mulatos e negros, a barreira do idioma, a falta de empregos. Sabem que, apesar das dificuldades pelas quais o país atravessa, em Cuba haverão de ter casa, comida, educação e atenção médica gratuitas, e segurança, pois os índices de criminalidade ali são ínfimos comparados ao resto da América Latina.

O que Yoani Sánchez não revela em seu blog é que, na Suíça, implorou aos diplomatas cubanos o direito de retornar, pois não encontrara trabalho estável. E sabe que em Cuba ela pode dedicar tempo integral ao blog, pois é dos raros países do mundo em que desempregado não passa fome nem mora ao relento...

O curioso é que ela jamais exibiu em seu blog as crianças de rua que perambulam por Havana, os mendigos jogados nas calçadas, as famílias miseráveis debaixo dos viadutos... Nem ela nem os correspondentes estrangeiros, e nem mesmo os turistas que visitam a Ilha. Porque lá não existem.

Se há tanta falta de liberdade em Cuba, como Yoani Sánchez consegue, lá de dentro, emitir tamanhas críticas? Não se diz que em Cuba tudo é controlado, inclusive o acesso à internet? Detalhe: o nicho Generación Y de Sánchez é altamente sofisticado, com entradas para Facebook e Twitter. Recebe 14 milhões de visitas por mês e está disponível em 18 idiomas! Nem o Departamento de Estado do EUA dispõe de tanta variedade linguística. Quem paga os tradutores no exterior? Quem financia o alto custo do fluxo de 14 milhões de acessos?

Yoani Sánchez tem todo o direito de criticar Cuba e o governo do seu país. Mas só os ingênuos acreditam que se trata de uma simples blogueira. Nem sequer é vítima da segurança ou da Justiça cubanas. Por isso, inventou a história das agressões. Insiste para que suas mentiras se tornem realidades.

A resistência de Cuba ao bloqueio usamericano, à queda da União Soviética, ao boicote de parte da mídia ocidental, incomoda, e muito. Sobretudo quando se sabe que voluntários cubanos estão em mais de 70 países atuando, sobretudo, como médicos e professores.

O capitalismo, que exclui 4 bilhões de seres humanos de seus benefícios básicos, não é mesmo capaz de suportar o fato de 11 milhões de habitantes de um país pobre viverem com dignidade e se sentirem espelhados no saudável e alegre Buena Vista Social Club”.

Moral da história? “Assim não é, se lhe parece”.


VII

Foi-se o tempo em que eu acreditava na bondade dos homens no Natal. No Papai Noel, também.

Era 1974. Eu e meu amigo Júnior estávamos em minha casa, na rua de Santa Clara, 345, num prédio que não mais existe – agora é um moderno fléti. Era véspera de Natal, dia 24.

Bateram à porta. Ficamos assustados e nervosos. Minha amada mãe disse que poderia ser o Papai Noel. Corremos, abrimos a porta e lá estava um sacão de brinquedos de enlouquecer qualquer criança. Imediatamente, corri para a banheira a testar um pequeno submarino que flutuava n’água. O Júnior ficou muito contente também com muitos presentes. A ingenuidade de crianças não nos permitiu perceber que o Papai Noel era meu pai, que levou o sacão e voltou ao apartamento pela porta dos fundos. Foi uma grande noite. Eram tempos de fartura econômica para meu pai, infelizmente despedaçados para sempre a seguir. Tudo bem antes da história do Matias.

Fui uma das poucas crianças deste país a ganhar um presente desses numa noite de Natal, embora o gesto de carinho seja infinitamente maior do que os objetos presenteados. Sou e serei eternamente grato a meus pais por tudo o que me ofereceram; até mesmo nas inúmeras dificuldades, aprendi bastante. Se é que os perdi para sempre, o passado está intacto.

Dedico aquela grande noite à minha querida família, que sempre estará por aqui de alguma forma.

E também ao mendigo sofrido da lanchonete Akay.


Paulo-Roberto Andel, 14/12/2009

Friday, November 27, 2009

FRAGMENTOS

A ESTE

este, este
o vento que me sopra
inteiro
e faz do meu amor
um corpo
celeste

este, o tempo
que nos deixou tão longe
de toda mocidade
de cada incerteza
e vige numa frieza
que não se sabe encanto

este, a vela
que viaja na vista
e recorta o mar:
histórias do atlântico,
céu e guerra,
amor e terra,
tudo bem mais
do que sei contar



A ÚLTIMA DANÇA

não sei dizer
do que vejo neste olhar;
parece volúpia ao retrato,
e distância frente a frente

parece indiferença
uma sentença
que já não me cabe
ao fronte

não sei dizer
se peço

que não vá embora,
se puxo e beijo
numa hora,
se peço à frente
num altar de oração:
é que deus não me reconhece
os santos me dão de ombros
e alguém quase me atropela
numa multidão –
por isso, me faço canção
nota por nota
e peço a ela,
num leve falsete,
que ainda fique por ora

eu não quero
a última dança
eu não quero
a última música
e não desliguem as luzes
mesmo que ninguém
aplauda no salão
agora


Paulo-Roberto Andel, 27/11/2009

Wednesday, November 25, 2009

RESUMO DA ÓPERA!

Paulo-Roberto Andel, 25/11/2009

Friday, November 06, 2009

AS COISAS/ PESSOAS SÃO







Em homenagem a Arnaldo Antunes








AS COISAS

Composição: Arnaldo Antunes e Gilberto Gil

As coisas têm
peso, massa, volume,
tamanho, tempo, forma, cor, posição,
textura, du-ração,
densidade, cheiro, valor,
consistência,
profundidade, contorno, temperatura, função,
aparência,
preço, destino, idade, sentido.
As coisas não têm paz.


PESSOAS SÃO

Paulo-Roberto Andel

pessoas são
rentes
frias
tortas
mornas

pessoas mortas
para serem redivivas

pessoas têm
derme
face
sonho
tato

pessoas no abstrato
para o que empalidece

pessoas não doam muita atenção
por serem ocupadas
pessoas são carros nas estradas
pessoas são preces nas igrejas
pessoas são arranha-céu e a indiferença
pessoas têm doença

pessoas não
são pessoas simplesmente
pessoas poucas
não são números ou traços
não são folhas e retratos somente
pessoas são
o contrário do que se pensa
normalmente
pessoas são gente
mesmo que
inutilmente


PERSUASÃO

Paulo-Roberto Andel

pessoas
são
persuasão

pessoas são
por sua
ação

06/11/2009

Wednesday, November 04, 2009

TEOREMA

Para melhor visualização, clique na imagem-poema.




Paulo-Roberto Andel, 04/11/2009

Friday, October 30, 2009

QUASE!

OBS: Clique na imagem para melhor visualização.



Paulo-Roberto Andel, 30/10/2009

Wednesday, October 28, 2009

PERGUNTA






















Paulo-Roberto Andel, 28/10/2009


Tuesday, October 20, 2009

LEVE / PROCURO



LEVE


e a palavra
leve
sugere que flana
pelo
breve:
a sutileza na tangente,
o anseio da secante,
o zênite da
r
e
t
a
permanente!
a palavra,
leve,
sugere a graça
dum boneco de neve –
tão leve quanto pluma
que voa ao vento
sem testemunhar
quem a desprendeu
num

momento



PROCURO

o progresso chegou ao meu bairro:
cenas de ordem e progresso
paredes e casas foram
derrubadas
e modificadas;
a rua, esburacada;
a pobreza, removida;
todavia
tudo parece tão longe
do que ainda
procuro

brilham o céu e o inferno
enquanto
o moderno
disputa espaço com
o eterno
e o efêmero manda lembranças
porque também é vida;
austero, ele reúne os outros,
mas todos permanecem
alheios
ao que ainda procuro

de um lado, os mortos;
de outro, os feridos –
em qualquer visada,
a solidão dos miseráveis;
meus olhos não sabem
disfarçar a frustração
de não ter encontrado
o que
procuro

frente ao ventre
que me cobiça,
a fartura dos seios,
a leveza da pele:
a beleza infinita que mora
na jovem ousada
na linda mulher amadurecida –
cada uma delas
traz um cântico
de imagens sedentas
de vida, tesão, desejos
enquanto uma outra vida
me oferta um amargo gracejo:
são todas distantes,
muito distantes
do que almejo
e procuro

bondade não é delírio
e o fascínio
não é bivaque
na mediocridade;
a cidade, rompida,
esconde seus rancores em festas,
folguedos
e armistícios;
não me furto a espiar por uma fresta
o meu temor redivivo:
ainda não estive frente à frente
com o que
ainda
procuro

suspiros de vida e morte,
presságios e agouros,
azar ou sorte;
medos e coragens
roçam faces nas ruas:
são veias abertas,
sofridas,
donde escorre o sangue
límpido,
o sangue bravio
que faz tambor
em meu peito –
e, por isso, reitera
i n t e n s a m e n t e
que ainda moro longe,
muito longe
do que procuro

banhado em mar salgado
de ilusões,
náufrago do real;
colosso sem grandeza nacional,
sem pecados
ou
religiões:
nas vias, as procissões
se agigantam
e saúdam o deus da vida nova,
do além prometido,
onde todos são bons
e tudo é perfeito –
mas tudo me parece
tão suspeito,
tão diferente,
que percebo subitamente
a ausência
do que procuro

e ainda procuro, procuro

p r o c u r o

Paulo-Roberto Andel, 20/10/2009

Friday, October 16, 2009

MAIS DO MESMO - MORE THAN SAME


























































Em homenagem aos versos perenes de Renato Russo, 1987.

Paulo-Roberto Andel, 16/10/2009

Thursday, October 15, 2009

RECORDANDO CACASO

Biscoitos finos de um dos maiores poetas da língua portuguesa.

3 Poemas

Cacaso (Antônio Carlos Ferreira de Brito)

Descartes

Não há
no mundo nada
mais bem
distribuído do que a
razão: até quem não tem tem
um pouquinho


Fatalidade

A mulher madura viceja
nos seios de treze anos de certa menina morena.
Amantes fidelíssimos se matarão em duelo
crepúsculos desfilarão em posição de sentido
o sol será destronado e durante séculos violas plangentes
farão assembléias de emergência.

Tudo isso já vejo nuns seios arrebitados
de primeira comunhão.


Lar doce lar
(para Maurício Maestro)

Minha pátria é minha infância:
por isso vivo no exílio


Cacaso (Antônio Carlos Ferreira de Brito) nasceu em Uberaba (MG), no dia 13 de março de 1944. Com grande talento para o desenho, já aos 12 anos ganhou página inteira de jornal por causa de suas caricaturas de políticos. Antes dos 20 anos veio a poesia, através de letras de sambas que colocava em músicas de amigos como Elton Medeiros e Maurício Tapajós. Seu primeiro livro, "A palavra cerzida", foi lançado em 1967. Seguiram-se "Grupo escolar" (1974), "Beijo na boca" (1975), "Segunda classe" (1975), "Na corda bamba" (1978) e "Mar de mineiro (1982). Seus livros não só o revelaram uma das mais combativas e criativas vozes daqueles anos de ditadura e desbunde, como ajudaram a dar visibilidade e respeitabilidade ao fenômeno da "poesia marginal", em que militavam, direta ou indiretamente, amigos como Francisco Alvim, Helena Buarque de Hollanda, Ana Cristina Cezar, Charles, Chacal, Geraldinho Carneiro, Zuca Sardhan e outros. No campo da música, os amigos/parceiros se multiplicavam na mesma proporção: Edu Lobo, Tom Jobim, Sueli Costa, Cláudio Nucci, Novelli, Nelson Angelo, Joyce, Toninho Horta, Francis Hime, Sivuca, João Donato e muitos mais. Em 1985 veio a antologia publicada pela Editora Brasiliense, "Beijo na boca e outros poemas". Em 1987, no dia 27 de dezembro, o Cacaso é que foi embora. Um jornal escreveu: "Poesia rápida como a vida".

Em 2002 é lançado o livro "Lero-Lero", com suas obras completas.

Os poemas acima foram extraídos da publicação "Inimigo Rumor 8", Viveiro de Castro Editora, Rio de Janeiro – 2000, págs. 06 a 19.

Fonte: http://www.releituras.com

Wednesday, October 07, 2009

TÃO/ TÃO OUTRO

CLIQUE NO POEMA-IMAGEM PARA MELHOR VISUALIZAÇÃO.


TÃO
























TÃO OUTRO

eu nunca fui tão outro/ para que deixasse de me ver no que faço ou penso/ eu nunca fui tão outro/ para trair as verdades que cortejo/ eu nunca fui tão outro/ para exercer seduções mentirosas, cobiça vazia ou desencanto atroz/ eu nunca fui tão nunca quando quase fui tão outro/ e, assim, estou debruçado em meu exagero do mesmo/ entre percalços e enganos/ prestes a mergulhar no infinito mar de fé/ no que ainda existe de compaixão e sinceridade/ no que ainda resiste da fidalguia e da solidariedade/ há um mundo somente/ e vejo a gente descrente/ tão solitária nas multidões/ tão rasa perante a profundidade da vida/ eu nunca fui tão outro/ para rasgar o que um dia escrevi/ e malversar outros corações/ eu nunca fui tão outro/ para desperceber o hoje, o novo, o agora/ eu nunca fui tão outro/ para estar por ora tão longe/ do que pensei na mocidade/ e que, hoje, faz papel de velha senhora


Paulo-Roberto Andel, 07/10/2009

Tuesday, October 06, 2009

A SANGUE-FRIO (UM IMPIEDOSO BLUES PARA A DECADÊNCIA)



CLIQUE EM CIMA DO POEMA-IMAGEM,
PARA MELHOR VISUALIZAÇÃO





























Para Truman Capote e Muddy Waters.

Paulo-Roberto Andel, 06/10/2009

Wednesday, September 30, 2009

PARA OS QUE ESTÃO EM BRASÍLIA

















Rapeize, rola no sábado na Planaltina a já antológica Festa da Maria, com direito a hits roqueiros e dançantes no som do DJ Gu. Quem estiver em Brasília e puder aproveitar, é excelente a oportunidade!

Friday, September 25, 2009

50 GRANDES POEMAS DE PAULO LEMINSKI



01
lembrem de mim
como de um
que ouvia a chuva
como quem assiste missa
como quem hesita, mestiça,
entre a pressa e a preguiça

02
já me matei faz muito tempo
me matei quando o tempo era escasso
e o que havia entre o tempo e o espaço
era o de sempre
nunca mesmo o sempre passo
morrer faz bem à vista e ao baço
melhora o ritmo do pulso
e clareia a alma morrer de vez em quando
é a única coisa que me acalma

03
um homem com uma dor
é muito mais elegante
caminha assim de lado
como se chegando atrasado
andasse mais adiante
carrega o peso da dor
como se portasse medalhas
uma coroa um milhão de dólares
ou coisa que os valha
ópios édens analgésicos
não me toquem nessa dor
ela é tudo que me sobra
sofrer, vai ser minha última obra

04 e 05

LÁPIDE 1
epitáfio para o corpo
Aqui jaz um grande poeta.
Nada deixou escrito.
Este silêncio, acredito
são suas obras completas.

LÁPIDE 2
epitáfio para a alma
aqui jaz um artista
mestre em disfarces
viver
com a intensidade da arte
levou-o ao infarte
deus tenha pena
dos seus disfarces

06
AÇO E FLOR
Quem nunca viu
que a flor, a faca e a fera
tanto fez como tanto faz,
e a forte flor que a faca faz
na fraca carne,
um pouco menos, um pouco mais,
quem nunca viu
a ternura que vai
no fio da lâmina samurai,
esse, nunca vai ser capaz.

07
a estrela cadente
me caiu ainda quente
na palma da mão

08
parem
eu confesso
sou poeta
cada manhã que nasce
me nasce
uma rosa na face
parem
eu confesso
sou poeta
só meu amor é meu deus
eu sou o seu profeta

09
desta vez não vai ter neve como em petrogrado aquele dia
o céu vai estar limpo e o sol brilhando
você dormindo e eu sonhando
nem casacos nem cossacos como em petrogrado aquele dia
apenas você nua e eu como nasci
eu dormindo e você sonhando
não vai mais ter multidões gritando como em petrogrado
aquele dia
silêncio nós dois murmúrios azuis
eu e você dormindo e sonhando
nunca mais vai ter um dia como em petrogrado aquele dia
nada como um dia indo atrás do outro vindo
você e eu sonhando e dormindo

10
para a liberdade e luta
me enterrem com os trotskistas
na cova comum dos idealistas
onde jazem aqueles
que o poder não corrompeu
me enterrem com meu coração
na beira do rio
onde o joelho ferido tocou a pedra da paixão

11
en la lucha de clases
todas las armas son buenas
piedras
moches
poemas

12
WITH THE MAN
aqui
no oeste
todo homem tem um preço
uma cabeça a prêmio
índio bom é índio morto
sem emprego
referência
ou endereço
tenho toda a liberdade
pra traçar meu enredo
nasci numa cidade pequena
cheia de buracos de balas
porres de uísque
grandes como o grand canyon
tiroteios noturnos
entre pistoleiros brilhantes
como o ouro da califórnia
me segue uma estrela
no peito do xerife de denver

13
manchete
CHUTES DE POETA
NÃO LEVAM PERIGO À META

14
POESIA:
"words set to music"(Dante
via Pound), "uma viagem ao
desconhecido" (Maiakóvski), "cernes
e medulas" (Ezra Pound), "a fala do
infalável" (Goethe), "linguagem
voltada para a sua própria
materialidade" (Jakobson),
"permanente hesitação entre som e
sentido" (Paul Valery), "fundação do
ser mediante a palavra" (Heidegger),
"a religião original da humanidade"
(Novalis), "as melhores palavras na
melhor ordem" (Coleridge), "emoção
relembrada na tranqüilidade"
(Wordsworth), "ciência e paixão"
(Alfred de Vigny), "se faz com
palavras, não com idéias" (Mallarmé),
"música que se faz com
idéias" (Ricardo Reis/Fernando Pessoa),
"um fingimento deveras" (Fernando
Pessoa), "criticismo of life" (Mathew
Arnold), "palavra-coisa" (Sartre),
"linguagem em estado de pureza
selvagem" (Octavio Paz), "poetry is to
inspire" (Bob Dylan), "design de
linguagem" (Décio Pignatari), "lo
impossible hecho possible" (Garcia
Lorca), "aquilo que se perde na
tradução (Robert Frost), "a liberdade
da minha linguagem" (Paulo Leminski)...

15
quero a vitória
do time de várzea
valente
covarde
a derrota
do campeão
5 X 0
em seu próprio chão
circo
dentro
do pão

16
eu queria tanto
ser um poeta maldito
a massa sofrendo
enquanto eu profundo medito
eu queria tanto
ser um poeta social
rosto queimado
pelo hálito das multidões
em vez
olha eu aqui
pondo sal
nesta sopa rala
que mal vai dar para dois

17
podem ficar com a realidade
esse baixo astral
em que tudo entra pelo cano
eu quero viver de verdade
eu fico com o cinema americano

18
quando eu tiver setenta anos
então vai acabar esta minha adolescência
vou largar da vida louca
e terminar minha livre docência
vou fazer o que meu pai quer
começar a vida com passo perfeito
vou fazer o que minha mãe deseja
aproveitar as oportunidades
de virar um pilar da sociedade
e terminar meu curso de direito
então ver tudo em sã consciência
quando acabar esta adolescência

19
de ouvido
di vi
di do
entre
o
ver
&
o
vidro
du vi do

20
sim
eu quis a prosa
essa deusa
só diz besteiras
fala das coisas
como se novas
não quis a prosa
apenas a idéia
uma idéia de prosa
em esperma de trova
um gozo uma gosma
uma poesia porosa

21
coração
PRA CIMA
escrito em baixo
FRÁGIL

22
nada que o sol
não explique
tudo que a lua
mais chique
não tem chuva
que desbote essa flor

23
o novo
não me choca mais
nada de novo
sob o sol
apenas o mesmo
ovo de sempre
choca o mesmo novo

24
quatro dias sem te ver
e não mudaste nada
falta açúcar na limonada
me perdi da minha namorada
nadei nadei e não dei em nada
sempre o mesmo poeta de bosta
perdendo tempo com a humanidade

25
um dia
a gente ia ser homero
a obra nada menos que uma ilíada
depois
a barra pesando
dava pra ser aí um rimbaud
um ungaretti um fernando pessoa qualquer
um lorca um eluárd um ginsberg
por fim
acabamos o pequeno poeta de província
que sempre fomos
por trás de tantas máscaras
que o tempo tratou como a flores

26
moinho de versos
movido a vento
em noites de boemia
vai vir o dia
quando tudo que eu diga
seja poesia

27
ver
é dor
ouvir
é dor
ter é dor
perder
é dor
só doer
não é dor
delícia de
experimentador

28
o pauloleminski
é um cachorro louco
que deve ser morto
a pau a pedra
a fogo a pique
senão é bem capaz
o filhodaputa
de fazer chover
em nosso piquenique

29
CÍRCULO
cansei da frase polida
por anjos da cara pálida
palmeiras batendo palmas
ao passarem paradas
agora eu quero a pedrada
chuva de pedras palavras
distribuindo pauladas

30
apagar-me
diluir-me
desmanchar-me
até que depois
de mim
de nós
de tudo
não reste mais
que o charme

31
ascensão apogeu e queda da vida paixão
e morte
do poeta enquanto
ser que chora enquanto chove lá fora e alguém canta
a última esperança da luz e pegar o primeiro trem
para muito além das serras que azulam no
horizonte
e o separam da aurora da sua vida

32
Amor, então,
também acaba?
Não, que eu saiba.
O que eu sei
é que se transforma
numa matéria-prima
que a vida se encarrega
de transformar em raiva.
Ou em rima.

33
HAI
Eis que nasce completo
e, ao morrer, morre germe,
o desejo, analfabeto,
de saber como reger-me,
ah, saber como me ajeito
para que eu seja quem fui,
eis o que nasce perfeito
e, ao crescer, diminui.

34
KAI
Mínimo templo
para um deus pequeno,
aqui vos guarda,
em vez da dor que peno,
meu extremo anjo de vanguarda.
De que máscara
se gaba sua lástima,
de que vaga
se vangloria sua história,
saiba quem saiba.
A mim me basta
a sombra que se deixa,
o corpo que se afasta.

35
as coisas estão pretas
uma chuva de estrelas
deixa no papel
esta poça de letras

36
duas folhas na sandália
o outono
também quer andar

37
nem toda hora
é obra
nem toda obra
é prima
algumas são mães
outras irmãs
algumas
clima

38
BEM NO FUNDO
No fundo, no fundo,
bem lá no fundo,
a gente gostaria
de ver nossos problemas
resolvidos por decreto
a partir desta data,
aquela mágoa sem remédio
é considerada nula
e sobre ela - silêncio perpétuo
extinto por lei todo o remorso,
maldito seja que olhas pra trás,
lá pra trás não há nada,
e nada mais
mas problemas não se resolvem,
problemas têm família grande,
e aos domingos saem todos a passear
o problema, sua senhora
e outros pequenos probleminhas.

39
EU
eu
quando olho nos olhos
sei quando uma pessoa
está por dentro
ou está por fora
quem está por fora
não segura um olhar
que demora
de dentro de meu centro
este poema me olha

40
INCENSO FOSSE MÚSICA
isso de querer ser
exatamente aquilo
que a gente é
ainda vai
nos levar além

41
uma carta uma brasa através
por dentro do texto
nuvem cheia da minha chuva
cruza o deserto por mim
a montanha caminha
o mar entre os dois
uma sílaba um soluço
um sim um não um ai
sinais dizendo nós
quando não estamos mais

42
pariso
novayorquizo
moscoviteio
sem sair do bar
só não levanto e vou embora
porque tem países
que eu nem chego a madagascar

43
HAICAI
a estrela cadente
me caiu ainda quente
na palma da mão
cortinas de seda
o vento entra
sem pedir licença

44
NADA ME DEMOVE
nada me demove
ainda vou ser
o pai dos irmãos Karamazov

45
SE
se
nem
for
terra
se
trans
for
mar

46
NÃO DISCUTO
não discuto
com o destino
o que pintar
eu assino

47
ROSA RILKE RAIMUNDO CORREIA
Uma pálpebra,
Mais uma, mais outras,
Enfim, dezenas
De pálpebras sobre pálpebras
Tentando fazer
Das minhas trevas
Alguma coisa a mais
Que lágrimas

48
ACORDEI BEMOL
acordei bemol
tudo estava sustenido
sol fazia
só não fazia sentido

49
AMOR BASTANTE
quando eu vi você
tive uma idéia brilhante
foi como se eu olhasse
de dentro de um diamante
e meu olho ganhasse
mil faces num só instante
basta um instante
e você tem amor bastante

50
um bom poema
leva anos cinco jogando bola,
mais cinco estudando sânscrito,
seis carregando pedra,
nove namorando a vizinha,
sete levando porrada,
quatro andando sozinho,
três mudando de cidade,
dez trocando de assunto,
uma eternidade, eu e você,
caminhando junto

Wednesday, September 23, 2009

A SOCIEDADE DOS BURROS VIVOS

Não é de hoje que a burrice cerca o Brasil. Mais ainda, burrice misturada com sectarismo, intolerância e ganância pelo absolutismo: assim não fosse, Lula, com seus erros e acertos, não teria sido o presidente da república mais xingado que já vi – até porque, nos “maravilhosos” tempos das ditaduras militares, defendidas expressamente por delinquentes como Jair Bolsonaro (devidamente surrado em Copacabana) e seus asseclas, xingar o presidente equivalia à pena de morte.

Antigamente, nem tão antigamente, a imprensa política do país ainda tinha um resquício de hipocrisia. Defendia seus candidatos oficiais, lançava “escândalos” contra os opositores mas, apertar o cerco mesmo, só em caso extremo (vide a farsa da edição do debate Lula x Collor). Agora não. Oficializou-se a prostituição. Quando não servem de porta-vozes dos patrões, alguns âncoras da televisão brasileira vomitam exatamente o que carregam em suas mentes perversas. Ou pervertidas.

Domingo à noite, me deparei com o “Canal Livre”, decano televisivo da inteligência brasileira. A mesa do programa sempre manteve a tradição de excelência dos membros; às vezes, vaza água. Joelmir Betting não estava, o comando ficou com a exótica presença de Boris Casoy. E porque exótica? Basta assistir sua atuação no “Jornal da Noite” para constatar: brados, gestos, uma tentativa quase esdrúxula de parecer contido e educado, ressaltada pelo batom róseo que lhe cabe em tela. Praticamente um palanque. É, entendo: menos patético do que o discurso ararazul de William Waack. Menos?

Volto ao “Canal”: à mesa, Ciro Gomes, um dos políticos mais bem-preparados intelectualmente da república. Perda de tempo tentar encurralá-lo com jogos de retórica fútil. A todo instante, entre quase desmunhecadas, Boris tentava “enquadrar” Ciro – e este, com sorriso alvar, falava o que queria. Faz pensar: até hoje, tento entender a fundo o que lhe fez deixar o PSDB (onde era o ponta-de-lança num futuro presidencial) para a labuta pública em partidos menores, onde é difícil se eleger. Tinha a faca e o queijo na mão, mas dispensou; se o fez por absoluta correção moral, é dos mais brilhantes e raros casos na república. Depois de vários rounds, Ciro venceu; um boxeur da argumentação como Boris, afetado e destrambelhado, não poderia ir à frente mesmo. De toda forma, a luta continua: Boris tem um excelente argumento para gastar nesta semana – a “intromissão” do governo brasileiro no golpe de estado praticado em Honduras, cujo presidente legítimo e agora abrigado na embaixada brasileira em Tegucigalpa, Zelaya, conta com a simpatia de Hugo Chávez e Lula. Prato cheio!

Golpe é golpe. Lugar de golpista é na cadeia. Os chiliques de Boris poderão ser vistos na televisão, democraticamente, por conta de sua velha subserviência à ditadura militar. Quarenta e cinco anos depois, políticos e cidadãos brasileiros desconhecem por completo os princípios básicos do Estado democrático de direito.

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Causa-me espécie a verdadeira chiliqueira que tomou a televisão e boa parte da imprensa escrita desde ontem, quando Zelaya se abrigou na embaixada brasileira. Gritos e berros, clamando pelo aceite de um presidente legalmente eleito (com apoio da direita hondurenha) em ser um asilado e, portanto, impedido de participar do processo político do país. CHEGA DE IMBECILIDADE! HÁ UM GOLPE DE ESTADO EM HONDURAS. Qualquer cidadão de bem, com um mínimo de informação política, deve saber que não é rasgando a decisão popular que se ajusta qualquer situação política. E, seja onde for, a direita não hesita: se apóia um candidato que se elege e não reza por sua cartilha, o golpe é a solução. Relembrem os últimos cinqüenta anos da América Latina.

Claro que a “grande” imprensa, cooptada pelos grandes interesses econômicos de sempre, só poderia seguir por este caminho: o do apoio velado ao golpe. Em paralelo, os mesmos nomes bizarros do Senado brasileiro, já “livres” dos escândalos recentes, aproveitaram a pauta para as vociferações ridículas de sempre. Arthur Virgílio, aquele que queria surrar Lula, mas se “esqueceu” do “funcionário” de gabinete que manteve por anos no exterior, com dinheiro público. Agripino Maia, velho coronel e lacaio do regime militar. O Demósthenes, que é engraçado até. Todos urrando pelo papel supostamente terrível do governo brasileiro em coadunar com a situação de Zelaya. Ora, papel vergonhoso seria o de apoiar um golpe de estado, jogando o processo eleitoral no lixo! Quem apóia golpe é golpista. E lugar de golpista é na cadeia – aliás, lugar onde Arthur e Agripino já deveriam estar há tempos. O mais incrível nisso tudo é que, por conta das falácias, conseguiram ficar num plano inferior a Zé Sarney: o imperador do Nordeste, afundado até a lama em escândalos, teve lucidez suficiente para ir a público defender a participação brasileira na questão.

Políticos sujos e prostituição da imprensa são temas recorrentes em qualquer república que viva dentro da liberdade dos mercados alimentada pelo desequilibro na concentração de renda. Em qualquer país do mundo. Portanto, não é coisa que me assombre.

Duro mesmo é dar uma espiada nos jornais para ler os comentários dos “leitores” sobre o tema. Não parecem brasileiros, mas sim extraterrestres. Uma enxurrada de gente criticando o Brasil porque há uma clara insatisfação internacional contra o golpe de estado praticado em Honduras. Sim, claro, deveríamos nos “abster” hipocritamente, tal como faz o burguês ao ver o mendigo na calçada e, “distraidamente” atravessa a rua (qualquer semelhança é mera verdade). A mentalidade do “não-tenho-nada-a-ver-com-isso-e-eu-pago-meus-impostos” é uma das coisas mais pavorosas que já se instalou na sociedade brasileira. Cidadania vai além disso. O Estado não é um mero serviçal: todos fazemos parte dele. Sem contar a cegueira da questão esquerda x direita, quando o foco dos acontecimentos está em um GOLPE DE ESTADO REPUDIADO INTERNACIONALMENTE.

Não votaria em Fernando Henrique nem para ser figurante da minha rua, mas, uma vez eleito, que exercesse seu mandato até o fim (como o fez, com Sivam e Daniel Dantas no encalço). Não votarei em Serra nem morto, mas jamais defenderia sua derrubada do eventual poder. A Marcha da Família com Deus pela Liberdade serviu para assassinar milhares de civis por ano no Brasil. Já era hora dos homens públicos terem um mínimo de decência ao se posicionarem sobre golpes de estado, seja onde forem. De toda forma, defendendo estas sandices, eles não estão no poder por decreto.

A culpa é dos leitores burros, que nunca leram nada além do jornal, aqueles lá de cima noutro parágrafo. A sociedade dos burros vivos.

Se o papel do Brasil na questão hondurenha está equivocado no formato, é uma coisa. No conteúdo, jamais. Não podemos coadunar com golpistas, quanto mais com a insensatez da mídia, de Arthur, de Agripino e outros dignos representantes da elite ignara. A primavera merecia coisa melhor.


Paulo-Roberto Andel, 23/09/2009

Friday, September 18, 2009

E O MUNDO NÃO SE ACABOU...














TRÊS ACTOS

I

Dá pena de ver os “grandes meios de comunicação” brasileiros. Subservientes a poderosos grupos econômicos, verdadeira materialização de vassalagem barata, lá estavam eles a previr o fim do Brasil em 2003 (nove anos antes do apocalipse mundial que vem por aí). Tiros n’água. O Brasil ia acabar por causa de um escândalo denunciado por Roberto Jefferson, o que seria equivalente a um Fernandinho Beira-Mar denunciar a indústria do crime organizado. Tiros n’água. Então, no fim de 2008, a grande-crise-que-ia-varrer-o-Brazyl-do-mapa apareceu; dessa vez, o barco rachava. Lula, eternamente ridicularizado por “articulistas” que desdenham de sua ignorância (na verdade, uma maneira de ocultar o verdadeiro motivo do ódio, que é o mesmo deles quando descem com uma empregada doméstica no elevador social), lançou ao vento mais uma de suas frases bem-humoradas, falando da “marolinha” que seria a gran crise ao chegar aqui. Oito meses e meio depois, vemos que faltou Viagra para a ereção do colapso mundial no Brasil – ele já chegou bem brochadinho por aqui, e pouco fez para saciar sexualmente a turminha do contra (melhor dizendo, a turminha a favor de si mesma). Os bancos não faturam como nunca (quer dizer, SEMPRE faturaram)? Bolsa-família não é choque de capitalismo na miséria? O que querem? Que se tire dinheiro de famintos para investir em rampas eletrônicas dos aeroportos?

Foram atingidos gravemente de morte os dispensáveis "executivos indispensáveis" de grandes companhias. Os desocupados de Ipanema e Leblon, crentes em seu mar verde-arroxeado que a América do Sul termina na subida da Niemeyer. Os falastrões de plantão que acreditam na social-democracia do capitalismo furioso e especulativo. E claro, as ararazuis denominadas parajornalistas que “escrevem” para “milhões” de pessoas (que as “lêem”) em ex-revistas como “Veja” e semijornais como “O Globo”. A turba pobre tomou um susto com a safadeza inicial dos bancos (sempre eles, não é de agora e nem desde 2003); depois, tudo assentou. O que temos de oferta de trabalho ainda é pouco, mas infinitas vezes superior aos governos de Estado mínimo e concentração de renda máxima.

Naturalmente, os dados de emprego divulgados ontem pelo Ministério do Trabalho não tiveram a mesma repercussão das galhofas de outrora, contra a “marolinha”. O Brasil, com todos os erros (e acertos) de seu governo atual, foi dos primeiros no mundo a dar suculenta banana para a gran crise. E la nave va. Ver o texto dos ararazuis é risível: orgulhosos, prepotentes, vendo suas previsões apocalípticas ruírem como lama na chuva, são “obrigados” a desconversar sobre o tema. Piada.

Assis Valente já debochava desse tipo de comportamento nos anos vinte. Foi muito mal-ouvido. O realismo fantástico que cerca as ruas, as telas e o texto. Vivemos num mundo onde 90% das pessoas passam fome, e essa deve ser uma prioridade supra-religiosa, supra-social, até supra-humana se for o caso. Não adianta tratar a gente pobre do mundo como se fosse lixo. Só existe chance de evolução humana com atendimento a princípios de justiça social. Lembram dos “emergentes” da Barra, buscando conforto entre grades e prédios com nomes franco-ingleses? Pois é, a Linha Amarela chegou e, do outro lado, a Rocinha impera. Na porta do maravilhoso shopping, com sua patética Estátua Cover da Liberdade, dezenas de vendedores de churrasquinho, refrigerantes e vans piratas. Não há como fugir. Perda de tempo. Remoções? Trata-se do nazismo fracassado de Lacerda. A cidade precisa ser integrada. O Estado. O país.

“Pânico” e CQC estão dentre os que mais nos fazem rir no Brasil, por conta de seus diferenciados talentos. No entanto, é preciso reconhecer que os órfãos do frango a um real bateram com a cara na porta. O ventre na roleta. O trem já era.


II

Twitter. Faço parte. Divulgo meus blogs nele. Tentei trabalhar poemas curtos, limitados aos 140 caracteres da brilhante invenção; ainda não deu certo. Recebo recados, a maioria sem qualquer relevância. Envio frases de cronistas e poetas. Tem algum humor. É divertido. Pedi ajuda a meu amigo Ricardo Bolinha para que destrinchasse o que havia de útil ali. O trabalho está em andamento.

Engraçado quando você vê conhecidos com quem, há muito, não tem contato. Conhecer alguém no esplendor dos vinte anos e, agora, lê-lo(a) perto dos quarenta. Em dez chances, nove correspondem ao sujeito(a?) ter se tornado um verdadeiro pateta. Não me perguntem sobre estatísticas.

Tempos atrás, eu flavana nas ruas do Centro, munido de meus sensacionais bermudão e chinelos pelas nove da noite, quando encontrei um ex-chapa dos tempos de faculdade. Usava um terno vulgar, mas ostentava autoridade - o Brasil é uma terra onde um sujeito de terno se sente superior. Cinco minutos de conversa. O cara me olhava de cima a baixo. Perguntou se eu estava trabalhando; devia supor que não. Expliquei que, como meu trabalho é intelectual e plantonista, além de morar perto da labuta, posso tomar meu banho e colocar roupa de brasileiro para voltar às vielas. Convidei-o para um chope com nossos amigos de sempre, recusou; agora está “muito feliz com sua esposa e não tem tempo para atividades que não sejam com ela, exclusivamente”. Entendo a volúpia: anos sem atividade sexual. Não me disse, mas era fácil notar. Quem fala demais tem pouco a mostrar. Ou lembrar dos tempos da academia de ciências: “no kiss, no love, no sex, virgin forever!”. Falava do sucesso do emprego, das maravilhas de se dar aula em cursinhos e de como se impressionava ao rever antigos colegas da faculdade com, digamos, o “mesmo” aspecto de antes. Para mim, seria alívio: dose é encontrá-los humanamente piores do que antes. Não devia, mas falei.

O ônibus suburbano do sujeito demorava, o meu também. Cansado das baboseiras, dei a cartada final para me livrar da M.P.I. (mala pesada inarrastável):

- Vou pegar um táxi. Tem algum lugar onde fique melhor para você pegar tua condução?

Versão otimista:

- Puxa, creio que não. Aqui é o melhor lugar mesmo. Obrigado e boa sorte.

(Ufa! Me livrei.)

Vida real:

- Não tenho dinheiro para dividir a despesa do táxi e minha hipocrisia não me permite admitir isso. Uso terno, mas estou bem mais durango do que o camelô da esquina.

Dez reais para me livrar de um chato insuportável. Muito bem pago!

Na rua, dá para fazer isso. No Twitter, não. O sacripanta leu meia dúzia de crônicas, comprou um Paulo Coelho no encalhe, ouviu Maria Gadú (excelente cantora, aliás) e já sai pelos quatro cantos do mundo ostentando sua, bem, “entelectualidade”. Mantenho meu silêncio. A maravilhosa invenção internauta desfralda as bandeiras e, por isso, qualquer bobalhão se considera um novo Mainardiota (com toda justiça, por sinal, já que o parajornalista esquisitão de Ipanema não acrescenta absolutamente nada de importante à vida literário-acadêmica mundial – é apenas uma ararazul), com tudo de pior que isso possa significar.

O homo sapiens estragou o avião, estragou a camada de ozônio e usa a internet como verdadeira bostalhada. O problema está em nós? Claro.

Por falta de opção, continuo lá.

Twitter: o mais fantástico meio de comunicação mundial entre pessoas que não têm nada de importante a dizer.

Quando piorar, vira televisão!


III

“A televisão me deixou burro/ muito burro demais/ oi! oi! oi!/ agora todas coisas que eu penso/ me parecem iguais/ oi! oi! oi!... / oh! cride, fala prá mãe/ que eu nunca li num livro/ que o espirro fosse um vírus sem cura/ vê se me entende pelo menos uma vez criatura!/ oh! cride, fala prá mãe!... é que a televisão me deixou burro/ muito burro demais/ e agora eu vivo dentro dessa jaula junto dos animais...” (Fromer/ Belotto/ Antunes, 1985)


Paulo-Roberto Andel, 18/09/2009


http://tvmiscelanea.blogspot.com

Monday, September 14, 2009

NOITE















noite
me escurece
um novo açoite
me entorpece
enganou quem não
merece
um orixá
mais uma prece
noutra noite
ensandecida
queima na
vela votiva
na fumaça da boate
numa artéria da cidade
cabe a noite
emotiva
corte numa
carne ardida
sangue ao vento
e despedida
outra hora numa prosa
outro choro
outra roupa encardida
numa corda
na varanda
do casebre na viela
na favela
outra mesma noite
outro corpo no asfalto
mais uma vela
mais um plástico preto
e deus perdoa
o morro não tem vez
a miséria atordoa
mar de insensatez
choro do pobre ecoa
noite
não me conforta
noite
mãe minha aflita
noite
meu amor ao longe
noite
meu sentimento num altar:
uma alegria fenece
e o silêncio adormece –
fermenta o tempo
de sonhar!


paulorobertoandel14092009

Tuesday, September 08, 2009

FERIADO



Trata-se de um feriado.

Um esticadão.

A sexta que vai até segunda, num só pacote, ainda que eu tenha de trabalhar “unplugged” no período.

Muitos dizem que nós, brasileiros (com relativa ênfase a cariocas e soteropolitanos), gostamos por demais de um feriado – a maioria dos críticos, na verdade, tem suprema ânsia de cooptar o Posto Nove, a erva-doce e a maresia somente para si. São uns egoistões. Melhor dizendo, uns bobalhões. Permitam-me os superlativos mal-empregados.

Depois de um mês com a coluna em abalo sísmico – o que significa dor até para respirar -, há indícios de que voltei. Sim, eu e o tricolor do Morumbi estamos de volta. Não digo o mesmo do meu amado Fluminense; enquanto isso, ainda rolam os dados. Uma semana de muito trabalhão, o que significa dizer a travessia de quilômetros pela cidade-luz do Brasil, em busca de reuniões nem sempre infrutíferas. Agüentei um blazer arábico no primeiro dia; camisão no segundo. Tênis? Claro. Não desgrudo de minha mania rebelde.

A noite de quinta tinha sido um ufa! Não consegui encontrar Alessandra no meio da Miami carioca: Barra da Tijuca, com suas towers, deliveries, offs e uma só estátua da... Liberdade (entre as grades do condomínio, ou do corredor do prédio). Meu mano Raul. Raras vezes um chope bléqui da Brahma caiu tão bem, a ponto de afugentar a conhecida cafonice do shopping-center. Mais tarde, um delicioso hamburger King. Nestas horas, o império da liberdade americano serve para alguma coisa, e só. Queríamos falar de mil coisas em duas ou três horas, se muito. Assunto não faltava. O que nos atordoava – e continua – era o Fluminense. Sim: a imprensa quer matar o Fluminense, quer usá-lo como mártir para a ressurreição do futebol brasileiro nas mãos do Bispo Ricardo Teixeira. Amém. Não sei a conta corrente para depósito. O abraço de sempre, o tempo escasso de sempre, a solidão do táxi por ruas lindas do Rio, hoje esvaziadas por medo de comboios, fuzis, bombas e outros artefatos de, digamos, “diálogo”. Cidade Maravilhosa!

Sexta-feira era para dar um tempo. O trabalho mais calmo, não fosse ainda a danada da coluna. Cairia bem um chope gelado na beirola do mar. Lanchinho em casa, uma ou outra Skol. O Bola não aparece, por conta de seu realismo fantástico. Taty não me liga e sinto falta. Leo trabalha. Doria some. Bom ver os cadernos de cultura dos jornais: show e filme bom é que não faltam. São Paulo também: fosse uns trezentos quilômetros mais perto, já valeria a visita para navegar nas músicas e nas artes. Gosto de ver os discos novos e os velhos. Há quem ache loucura em tempos de internéti, dáumlôdi: basta baixar a música preferida. Reitero: quem manja de música e literatura sabe que não é bem assim. Sentar-se para devorar um livro, assim como abrir um cedê é um ritual; é mais do que somente o ler ou ouvir.

Sábado com certo sol. Manhã de certa pachorra. A fome pede massas, muitas massas, talvez um pouco. O velho Vulcão da Evaristo da Veiga. Simpático o último dos garçons remanescentes de 1989, quando estive lá pela primeira vez. Boa gente, sempre me cumprimenta e serve bem. Diz para eu não esquecer daquele lá de cima. Juro que tento, mas o céu azul só faz com que eu procure meus pais, o Xuru, o Fred – e tudo com um azedo sabor de fracasso marcial. À frente, uma moça bonita, com voluptuosidades a saber. Na diagonal, duas amigas gordinhas e lindas, do curso preparatório que funciona ao lado. Ficam à minha frente na hora do caixa. São Tricolores: descobri pelos chinelos de uma e do toque de celular da outra. Não digo nada. Por quê?

Poderia ter assistido “Coração Vagabundo”, apoteótico documentário sobre recente turnê de Caetano Veloso, na maravilha do Cine Glória, pertinho. Contudo, gosto de desafios. Pegar o metrô até Vicente de Carvalho, adentrar o Cinemark e faturar “Confissões de uma garota de programa”, com a belíssima (porém, magrinha) pornostar Sasha Grey. Taty me faz falta de novo, mais ainda. Dura a vida. Para conseguir chegar cronometrado, a saída teria que ser feita em um minuto da estação Cinelândia. Deu certo. É Opportrans – leia-se Daniel Dantas. Preciso rir.

Bom o filme. Não era o que eu esperava, ainda mais de Soderbergh. Boa diversão. Em algum momento, me dei conta que não ia ao Cinemark de lá há sete anos. Na última, com um amor que se foi, vi a refilmagem de “Onze homens e um segredo”, na sala sete, George Clooney e tal. Adivinhem qual era a sala de “Confissões”? Sete. Não havia me tocado antes, mas o diretor também era Soderbergh. O que mais me parece sensato? Antes só do que mal-acompanhado. Alguns amores são ótimos de recordar; outros, melhores ainda quando estão banidos de nós.

Há uma lenda lendária que afirma sobre as fracas vendas de discos de rock na zona norte. Bom, hoje em dia as vendas são fracas em qualquer lugar da terra. Menos mal: Dire Straits, “Love over gold” a cinco mangos. James Taylor eu já tinha. Hoje de voltar. Adeus, Vicente de Carvalho; adeus, rua Caroen. Que tal comprar com desconto um bom ingresso para o sensacional show de Itiberê Zwarg, o líder da Orquestra Família e baixo alucinante de ninguém menos do que Hermeto Pascoal? Vambora. Teatro da Caixa na avenida Chile. Meu feriado que começou sexta não descansa.

Rápida espiadinha no jogo do Vasco. Eles vão voltar. E nós não vamos cair.

Sete da noite, que show! Que show. Uma garotada da pesada, só craques. Como pode, ainda se ouve música de altíssima qualidade no centro do Rio a cinco reais! Quem quiser aprender sobre a estupenda qualidade da (boa) música brasileira, precisa ouvir e ver a Itiberê Orquestra Família. Pelas tabelas, um bom Hermeto e seu discípulo Carlos Malta, dos maiores do mundo. E pensar que isso era apenas a preliminar...

Saio em êxtase do Nelson Rodrigues. Encaro o silêncio da avenida Chile. As luzes, as grandes torres do capital. A imponência verde-amarela da Petrobrás.

Dez minutos de caminhada, e lá vem o Brasil subindo a ladeira, atropelando os argentinos com a sutileza de um aríete à porta.

E o domingo, agora que o final de semana já foi bem vivido? Pernas para o ar, Maracanã com os amigos pela frente. Não importa a pontuação, a crise, a tragédia. É uma procissão. Empatamos. Droga! Vai melhorar. Pelo menos vejo Marô e Raul. E Tiba.

E a segunda? Dez cedês para ouvir, um calor do cão lá fora. A Taty longe. O Leo trabalha. O Bola mergulhado no berço esplêndido de seu realismo fantástico. Dória fora. Três poemas esperando feitura.

Comida. Bebida. Nudez respeitosa.

Descansar para compensar a maratona desde quinta.

Contar nos dedos as horas que faltam para o futuro. Procuramos independência.

Amanhã tem cálculos e cálculos desde as oito da manhã. Fisioterapia.

A vida segue. É normal.

E gosto disso.



Paulo-Roberto Andel, 08/09/2009

Friday, September 04, 2009

FLASHBACKS





















O CONCRETO DA FESTA

todos reunidos
todos reunidos
festa da ilusão

solidão

todos estão rindo
debochando e rindo
tudo soa em vão

depreciação

música gritada
corpos seduzidos
inaptidão

desvinculação

copos, tragos, fumos, balas
degeneração

p*tas, trouxas, broncos, vis
representação

festa da ilusão

decadência em vão

alma em contramão


O DEPOIS

depois do turno, o descanso;
depois da sova, o descenso;
depois da lua minguante,
depois do quarto crescente

depois do parto, criança;
depois da morte, esperança;
depois do beijo, a carícia;
depois do afago, a delícia;
depois do júri, a sentença;
depois da pena, o castigo;
depois do amigo, a presença;
depois da crença, o perdido

depois do ardor, brisa fina;
depois da sina, tenência;
depois do gozo, o conforto;
depois do fardo, a leveza.


RAP RETO

tudo no manto reto, completo,
exceto o incerto,
para intervir discreto,
repleto no ato secreto,
retrato do fato incorreto e concreto;
portanto, noves fora nada,
tudo perto e deserto.


DEFERENTE

acende feito água,
refresca feito fogo;
alumia toda noite,
adormece vespertina;
brada em trinta silêncios,
sussurra em cem decibéis.
é mansa de loucura,
vulcânica em poemas;
recusa meus amparos
pelo aparato da carência.
no fim das contas,
no raiar do farto dia,
não foge da minha mente,
tanto em foz quanto nascente:
ela é deferente!
ela é deferente!


COISA

coisa empilhada/ organizada/ restrita?/ há coisa prática, vã temática enrustida/ desenrolada, complicada, arredia/ a coisa mole que escorre pelo ralo da pia/ há piedade numa coisa feita com galhardia/ fidelidade hoje mora numa casa vazia/ enquanto o homem corre e cria muitas coisas por dia/ há coisa plácida, errática, translúcida, vadia/ o tempo é coisa contra a qual lutar é causa perdida/ a vida fútil é uma cousa inútil por analogia/ casa caiada por matizes que não brilham sozinhas/ o caos das ruas é aspecto de coisa encardida/ pelo desdém/ pelo descaso/ rimados com apatia/ a coisa tem mão estendida por miséria de esmola/ a coisa tão dissimulada passa e nunca dá bola.


TRANSAMOR

amar –
verbo intransitivo em transe,
tão indefinido em foco;
ânsia e fôlego por romance,
efeméride a cada facto.


DELÍCIAS DO MUNDO

a fruta nua, sem pêlo;
a casca crua, empilhada;
o prato róseo, um espelho;
a faca rija, afiada.

a boca, o gosto, o anseio;
rodeio lancinante de tes*ão.

a mordida quente, provocante –

maçã despida, empinada;
saborosa musa deflorada.


CALMA!

era um basta! assanhado,
até que um calma! ousado
o assediou

doravante, entenderam-se
sobre inefável caminho
onde havia, claramente,
mortos e feridos –
os pensamentos bruscos.


NUVEM DE NEGRUME

oh, nuvem negra,
és tu a emanar desamparo
aos que vão perder?

há tempestade no teu ventre
e tu flanas tão vadia,
para a dor dos miseráveis,
enquanto os insensíveis
te desprezam em sossego –
e fazem das grandes cortinas
a porta em tua face crua.

és tu, nuvem negra,
a promessa ingênua,
a receita vulgar do novo dia?


AUTO-FLAGELAÇÃO

é certo que não tenho sido um homem bom

minha oferenda aos hipócritas veio servida
numa bandeja de prata e desprezo frio

os egoístas sorvem meu cálice,
mas suas papilas só esbarram em fel;
os que entregam descaso em minhas mãos
têm como réplica minhas frases menores -
todas feitas de cuspe acre, asqueroso

não tenho sido um homem bom

falta-me compaixão para com a vastidão
das imundícies humanas –
e, por conta disso, uma bússola em meu peito
segue astuto norte por discreta coerência


paulorobertoandel