Monday, December 28, 2009

OUTRAS PROCISSÕES



RASANTE

depois que ficou
rasante
sugeriu a morte
num rompante
para o belo
virar traste
no estalar de um
instante
depois que ficou
rasante
porque a chapa era
quente
há fúria de um fuzil
estridente
depois que ficou
rasante
é que se entende
o estúpido da luta
onde todos vivem
derrota –
mesmo a vida
fugitiva
doravante


SÃO

não me espere
pois vou embora
já passou do ponto
e da hora
quero a gíria preferida
que me faça
dar o fora:
a noite já virou
senhora
a moça que amei
é folha morta
e o bom daqui
se fez coisa tão rara
que fadiga à demora
não desespere
porque vou embora:
qualquer vida desses
eu volto;
basta que a pena de valer
seja
clara


DRIVE-THRU

transito
pelo vaivém do ar
que freqüenta
meu peito

cada segundo, uma rua
cada suspiro, uma via

entre a poeira
e o engarrafamento
a tristeza
é um atropelamento
a saudade
é a morte no acidente
que aborta a mocidade
um rompante me namora –
é o ostracismo!
basta somente
o carro vazio
perdido
no estacionamento.


TRANSPARÊNCIA

o primeiro fonema
e mais dez minutos
de prosa barata
forjam prazo
suficiente
para você me desvelar
até o fim
dos
nossos
dias


MANIPULAÇÃO

men
in pool:
action!


RELICARIUM

saudade:
o nunca-mais
repousado
em lençol esplêndido
insone e ansioso
pelo até-breve
que não tilinta
o telefone
pela madrugada


CENA COTIDIANA

Casa vazia. Um berimbau adorna certa canção popular que milita à sala. Olhos de gula saboreiam a bela mulher estampada numa cena de televisão muda. E telefones adormecem. Todos estão muito ocupados para conversar; precisam viver suas televisões mudas, cada um de modo distinto e todos crus. O justo é invadir cada um dos canais pagos, sem maiores intimidades, sem fincar raízes, feito um voyeur contemporâneo. O jeito é postergar as louças em débito e roupas na fila. O jeito é contemplar o passarinho que ladeia a janela, para depois voar ao longe, onde todos estão mortos. O óbvio é um corpo cansado que mendiga descanso, longe dos indigentes em penitência nos arredores. E os braços ficam abertos para o coração da capital – o teto. A fé que não transforma reluz numa parede mal-caiada. As cortinas cerradas, de tom azul-cobalto, velam o mundo. O prazer do repouso à cama escorre pelo horizonte que lhe cabe.


DIALÉTICA MODERNA

não me cabe
regar rancores
por conta de meu
destempero
e este papel já não me serve:
certas vezes, ou muitas,
desenhei tatuagens perversas
nos olhos dos que me
opuseram
e vieram ódio, mágoa, tristeza.
vieram lágrimas sensatas
em sabor de alecrim
que lhes emprestou
alguma beleza.
hoje, deitado no recato,
o máximo que me permito
é replicar
tolices conservadoras
a mim cuspidas
no século do twitter:
palavras rápidas,
nem tão ácidas,
mas limitadas em número
a tal ponto
de tentarem somente
fustigar
tamanha cegueira
de um todo


COR

a paixão da minha cor
só faz todo sentido
quando se despe do púrpura
que alumia
um vestido fino
quando se despe
em meu desejo
e intento o sono profundo
que não se interrompa
no sonho
é que a paixão do meu sono
é branca
e quase loura
e quase doce
quando dança aos mares
e pouco fala
entre um riso raso
e outro aos goles
a cada mal, ela me reza
a canta canto, faz-se voz-guia
e o desejo de meu desejo
é que seja infinita
feito o tesão que me arrebata:
uma covardia!
a paixão da minha cor
é bem mais que uma procissão
uma religião
é maior do que a rebeldia
nas calçadas
e mesmo com tudo isso
me desampara
porque dorme tão

longe

de
mim


LEITE E MEL

não é preciso ser um gênio
um ivalski
um catalano
tibúrcio
ou qualquer takimoto
para ver com alegria
o semblante firme de john lennon
no filme de penny lane
e perceber que o bardo
também é um gênio
basta
respirar
e ver.
não há importância alguma
no estúpido assassino
que lhe ceifou a vida
frente ao edifício dakota:
o inferno católico servir-lhe-á
de penitência quando for a hora
da fogueira acesa.
fato posto, nem convém
reiterar o amargo desgosto
na orfandade de minha eletrovitrola:
penny lane a namora.


RUBRO CINZA

na uva pisada
exala o cheiro doce
do sangue tinto
a vinho

na pedra polida
o pó de brita flutua
até fazer no céu
o cinza

no cimento da lápide
a pá escorre a pasta
que trancafia
a morte
na urna

no bustier escarlate
moram seios de encanto
mamilos intumescidos
e vida


TRADIÇÃO

Quiseram me perguntar a respeito do que rezava minha tradição, como se isso dissesse de alguma relevância na insensatez desta terra. E perguntaram, pedindo uma resposta sucinta, com sabor de drive-thru. Respirei e falei: sou Copacabana, menino. Resposta exata para um bom entendedor: dizer de um pouco de tudo, um pouco de todos nós. Quiseram me perguntar de minha tradição e isso vem de longe, feito a história que cada um de nós carrega no ventre. Eu era criança do Lido, com chupeta de cordão de ouro e minha mãe com riso de menina toda vez que me cortejavam, especialmente um Sérgio Brito ou um Bornay, para ciúmes de alguma tia da praça. Eu brinquei de bola na beira do Atlântico Sul e visei o Copacabana Palace com entediado, mas respeitoso, olhar de déja-vu. E fui criança do Bairro Peixoto e da Figueiredo Magalhães, mais precisamente no coração da rua Tenreiro Aranha, que o progresso assassinou junto com minha escolinha. E vi a mendiga Lina falando francês na calçada de Siqueira Campos enquanto esmolava. Depois, aprendi o Leme, o Posto Seis, o Arpoador e todas as fronteiras d’água. O Fernando me ensinou do Botafogo no Edifício Keats; do Fluminense, já nasci sabendo. E morei muitos anos num prédio cheio de personalidades e anônimos, num esbaforido entra-e-sai típico daquele bairro-mundo, num apartamento que não fazia jus ao que meu pai possuiu no passado. Ele chorava o rancor nos bares, enquanto envelhecia e empobrecia. Minha mãe chorava e sofria, chorava e trabalhava porque Deus era bom e ia extirpar nosso sofrimento. Nossa turma era pule de dez nos jogos de praia, de futebol de botão e nos acampamentos dos escoteiros – e também nas reuniões vespertinas na casa do Fred. Eu passava na porta do São Sebastião para fitar Eliane e ela continua linda. Eu fitava Kátia na galeria do Cine Condor e ela continua linda. A Vera pagava meu picolé depois da aula de basquete no quartel, eu suspirava por aquela mulher perfeita e sei que o tempo lhe foi inerte. Estudei muitas coisas, aprendi muitas músicas com o Gustavo, bebi cerveja com o Jorge e me iludi pensando ser adulto. Entrei para a faculdade e o pessoal desconfiava das minhas camisas de manga comprida, só por eu ser Copacabana. Alguém me ensinou o caminho dos mafuás e puteiros, eu ensinei aos demais. Escutei com atenção qualquer palavra que os mais velhos me diziam na porta dos botequins. E o tempo e o tempo são tempos. Aos poucos, Copacabana deixou de ser a minha vida para ser a minha grande paixão: virei da Vila, do Méier, do Grajaú e Bangu, eram outras palavras. Um dia a sirene tocou; faltava derrubar o muro, somente. Dezenove de novembro de mil, novecentos e noventa e três, seis e meia da manhã. Tranquei a porta sem saber meu novo endereço; parecia a guerra. Nunca mais voltei. Copacabana mora dentro de mim. Meus pais continuaram sofrendo, tiveram dias felizes e ficaram comigo até outro dia, eu com eles porque lealdade sempre foi a nossa sina. Foram embora sem se despedirem e creio que preferiram assim. Eis minha tradição e seu próprio jazigo.


Paulo-Roberto Andel, 28/12/2009



3 comments:

  1. Andel,
    o poeta que dignifica o popular. Ousa nas palavras com um requinte peculiar de quem sabe o que escreve.
    Ama seu povo, seus amigos e todas as mulheres.

    Obrigado pela homenagem à família.

    Adorei tudo, particularmente TRADIÇÃO.

    Abraços e
    Saudades.

    PS. DIAS DE DEZEMBRO como sempre, uma porrada.

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  2. Querido Paulo Andel Leminski Gullar Braga Pessoa De Barros Rimbaud Baudelaire Camões Shakespeare Poe Mickiewicz Du Bois ...e por aí segue.
    Benza Deus!!! Que talento!! Me emociono e você sabe que estou falando a verdade.

    Concordo com o Nelson. Amei "Tradição" com suas lindas "memories " Isso é próprio de pessoas sensíveis.Não são todos que enxergam o que veem, meu amigo querido. Você consegue...os dois.

    Um beijo e muitos "BRAVO" pra você.

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  3. Nossa! é dificil escolher. Sao tantas imagens e sentidos.

    Meu querido, que venha muito mais inspiraçao, trasnpiraçao, tradiçao e MUUUUUUUU para 2010.

    Besitossss

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