Monday, July 31, 2023

De julho para agosto

Cai a tarde e a cidade namora seu próprio silêncio. É o fim de julho e quase todos estão duros, exceto a minoria de sempre. Logo, há menos carros deslizando, menos gente caminhando e, se você tiver mínima atenção, basta olhar pra cima e há um monte de cartazes "vende-se" e "aluga-se", ao mesmo tempo que muita gente é humilhada com despejos, em grande maioria sem a menor má fé, apenas sofrendo a pobreza que aí está. 

"Vende-se. Aluga-se. F0da-se você que não tem condições. Você não faz parte dos planos. Você, falido, fudid0, desempregado ou de baixa renda, é um estorvo para o progresso da nação. Você não consome, não gera empregos, não engorda receitas de bancos, qual é a tua razão de ser?" Por incrível que pareça, há gente que diz pensar assim. 

O fim de julho tem um silêncio de cemitério e não é em vão: foram-se ídolos, craques, amigos, pessoas famosas, anônimas, tudo porque a vida é assim e, para quem está sempre correndo mas longe do atletismo, não há tempo para lamentar. Se alguém morrer e você quiser ficar bem na fita, é só escrever um post emocionado, todos curtem e você faz a sua parte. Nós somos uma sociedade de migalhas: gostamos de oferecer aos outros o que detestaríamos que nos oferecessem, somos humanos e, por isso mesmo, cínicos. Podemos alegar a complexidade do ser humano como excelente desculpa. Fica tudo bem. Onde há hipocrisia, as piores escr0tidões alimentam sorrisos. 

Agora vem agosto. Nada muda. Ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais, na brilhante sacada de Belchior. Nossa solidariedade nos dói por cinco segundos, mas não temos tempo a perder e o coach deixa tudo claro: "Vamos ser feliz" (sic). Já, já, os noticiários vão mostrar as novas vítimas de balas perdidas, as novas chacinas, as novas crueldades que nutrem likes e nada vai mudar porque nós, humanos, estamos muito ocupados e não há tempo para investir no próximo, apenas no lucro. 

A cidade cheia de lojas fechadas e famílias agonizando nas calçadas. Vende-se, aluga-se, "vamos ser feliz", uhuuu!, é a galera, é o ritmo, é o resto kissfoudasse e mais uhuuuuuu! 

A dois quilômetros de onde você lê estas palavras planejadamente desconexas, existe tortura, estupro, humilhação e morte, todas praticadas por bandidos amparados pelo Estado ou mesmo pertencentes ao seu quadro funcional. Ao seu lado vai ter um idiota falando atrocidades aprendidas nas faculdades WhatsApp - quem precisa de livros? -, e invariavelmente ele defenderá golpistas, milicianos e assassinos, tudo em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo que, exista ou não, nada tem a ver com essas barbaridades. 

O mais difícil do fim de julho nem é a péssima atualidade, mas sim saber que agosto vem aí. 

Mas você só fala de derrota, de tristeza e miséria? Não, não, eu estou falando da vida real, cheia de cicatrizes, varizes, rugas e nenhum Photoshop. O que eu estou falando é a língua da vida óbvia, não a da gentrificação, não a que trata o outro como caixas de papelão a serem movidas para não atrapalharem o caminho. Gente que gosta de juros altos para destruir o próximo.

Eu falo dos garotos e trabalhadores que, à essa hora, sonham com o fim do expediente para almoçarem biscoitos recheados baratos andando à rua, pois só tomaram café às cinco da manhã e andam feito zumbis da Lavradio até a Central, onde poderão ser amassados pela covardia da Supervia. E esses têm sorte porque ainda conseguem biscoitos. Depois, a matéria da TV fala que os brasileiros estão obesos, sugerindo de forma canalha que há um excesso de consumo de alimentos. O que há é fome, distribuída entre refeições desequilibradas e só.

É claro que precisamos buscar combustível em pequenas alegrias do dia a dia, senão ninguém aguenta. Muita gente já não está aguentando. Você nunca verá a notícia, mas muitas vezes quando um transporte de massa sob trilhos tem uma paralisação, é porque estão tirando o cadáver de alguém que não aguentou tanta humilhação - e isso acontece muitas vezes, muitas mesmo. 

Apesar de tudo, ainda temos muitos heróis. Eles estão carregando peso debaixo do sol, fugindo com suas mercadorias do choque de ordem, aguentando firme todas as privações que a vida livre liberal lhes oferece. Alguns, derrotados pela pobreza, tentam sobreviver mas desmaiam de cansaço e fome debaixo das marquises - não é incomum que, mesmo nas piores condições, cuidem de animais de estimação, enquanto volta e meia vemos vídeos com carros de luxo atirando animais de estimação à própria sorte em vias. Temos heróis e heroínas que recusam a vida criminosa que se impõe na porta de seus barracos - e às vezes pagam caro por isso. Temos outros, mas a maioria nem sabe. 

Julho acaba aqui, mas a vaidade, o egoísmo, a arrogância e a ruindade continuam firmes, opressores. O problema não está nos meses, mas nos homens. E, por mais que haja a lacração dos discursos nas redes sociais, a verdade é que muitas vezes as práticas são desprovidas de qualquer sentimento progressista. Não é uma novidade. Foi Napoleão Bonaparte que dizia "Faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço"?

Falta uma hora para os famintos lancharem seus biscoitos. É o fim de julho, mas poderia ser de um mês qualquer. O problema é que o Rio está matando muitos cariocas e, se antigamente era preciso dizer "O último a sair apague a luz do aeroporto", a nova ordem do genocídio da cidade afirma: "A janela é a porta principal".

Só me resta um pedaço de bolo de chocolate.

@pauloandel

33 anos

Há exatos 33 anos, à essa hora - três da madrugada - eu poderia cruzar Copacabana a pé, até chegar às Casas da Banha da Siqueira Campos e comprar iguarias pra lanchar. Pão, frios, coca. Voltar para casa com alguma tranquilidade e fazer a boquinha em paz. Com sorte, poderia ver até conversas divertidas dentro do mercado, como a travesti tricolor zoando um general rubro-negro vizinho pela derrota num Fla x Flu. 

E podia ir para uma festa maluca em Icaraí, onde não conhecia ninguém, só pra ficar com Ana e depois nos mandarmos às seis da manhã, já com luz no domingo, para dar uma volta na praia e tomar café numa bela padaria do bairro. 

Cinemas, havia para todo lado. É perda de tempo tentar explicar para quem não viveu aquilo: um filme só tem sua verdadeira existência quando é exibido na grande tela. O resto é jeitinho. Um monte de cinemas em Copacabana, Tijuca, Centro, todos de rua, todos do jeito que tinham de ser. 

Maracanã, minha, nossa casa, lugar de povo e fantasia. A única catedral carioca 100% voltada para a população. Pobres e ricos se acotovelavam e se trocavam o tempo inteiro. Ingressos antecipados? Nem pensar. 

Shows para todo lado, pagos e gratuitos. Na Apoteose, na praia, no parque. Quem viu Tears for Fears, Marillion, o apoteótico  Bob Dylan? David Bowie e Eric Clapton na Apoteose, Oingo Boingo no estádio da Gávea. A Legião Urbana parando o Rio de Janeiro com seu show no dia da morte de Cazuza. 

Tempos depois, os clássicos do grunge: Alice in Chains e, claro, o desgovernado Nirvana. Caetano lotou a praia de Botafogo em 1992, cantando com Djavan. Já o espetacular Tony Bennett teve a areia vazia em sua apresentação no mesmo lugar, que desperdício.

Na Rio 92, os Arcos da Lapa viveram uma tarde inesquecível com as performances de Barão Vermelho, Jello Biafra e Mano Negra. No ano anterior o Maracanã foi tomado de assalto pelo Rock in Rio, com grande e variada programação. Futuramente, o maior estádio do mundo receberia ninguém menos do que Madonna Louise Ciccone para 100 mil pessoas.

Ainda falando de shows, os estudantes da UERJ, UFRJ e PUC foram agraciados com grandes espetáculos gratuitos para o público. Numa parceria com a Brahma, o projeto "Som do meio dia" ajudou a consagrar a então desconhecida Cássia Eller nas universidades, além de divulgar trabalhos espetaculares como Ney Matogrosso ao lado do violonista Raphael Rabello. Tinha até Lobão cantando samba. 

O Canecão pulsava e, com ele, um show antológico do Jethro Tull, o início dos Raimundos e, claro, conturbadas turnês de Tim Maia. Do outro lado da cidade, o Imperator abrigava até Peter Gabriel.

O Rio era cheio de bares em muitos bairros e, neles, as pessoas queriam conversar e trocar ideias. Nada de ficar olhando o reality show na televisão. As pessoas iam e vinham, os ônibus e barcas rodavam a noite toda. Tráfico e milícia já estavam nas paradas de sucesso, mas ainda era possível vivenciar partes maravilhosas da cidade.

Sunday, July 30, 2023

O último domingo de julho

Cinco e meia da manhã. Tudo escuro, chuva nem tão fina, frio e um silêncio de mil cemitérios. Julho vai embora com suas derrotas, lembranças e vivências. Gente como eu perdeu um amigo, uma crush, um ídolo. Temos perdido coisas demais. 

O pequeno barulhinho da chuva pipoca na janela e nos aparelhos de ar condicionado. O sofrimento das ruas é mudo. Tradicionalmente, quase ninguém escuta. 

[Levanto para tomar remédios e tentar me entorpecer com sonhos bons, porque a realidade é tão barra pesada e sufoca feito fosse um poderoso socão no peito, daqueles que tiram o ar, deixam tudo roxo e desesperam.

O último domingo de julho, tão logo as pessoas acordem, terá polêmicas no futebol, velhas notícias de velhacos da política - especialmente os que andam de mãos dadas com a milícia - e algumas notícias até boas, porém insignificantes para muita gente que tem vivido em desespero e não pensa em desistir só do trabalho ou de casa, mas de tudo no sentido estrito da palavra. Principalmente aqui no Rio, há muita gente sofrendo e não seria surpresa a nova nomenclatura Cidade Horrorosa, não por causa de sua beleza física comprovada, mas pela sua opressão econômica e social que destrói famílias e ceifa vidas em pleno voo.

Nem tudo ė perda. Em alguns pontos da cidade, os boêmios começam a sartar de banda e voltar para casa. Depois vão dormir por horas a fio e acordar para ver o Botafogo jogar, pois os outros três já jogaram ontem - o Vasco segue seu calvário. Os casais se abraçam mais forte, os camaradas trocam sorrisos de saideira, o dia ainda escuro vai clarear aos pouquinhos. Se a chuva não atrapalhar, vai ter gente pelas feiras da cidade comendo pastel e bebendo caldo de cana - um luxo que eu curto.

[Aqui estou sem pai nem mãe, sem irmão e sem meu amor, pensando nas piores coisas e tentando espantá-las, mas tudo é muito difícil quando você está sozinho e cercado por metralhadoras da alma - todas apontadas para a sua testa e peito. 

Parece que ainda tem um pouquinho de luz na janela, vamos ver no que dá. Ainda não é agosto, melhor assim. Estão rolando os dados.

@pauloandel.

Friday, July 28, 2023

397

Uma das coisas mais humilhantes no Rio de Janeiro hoje é a questão do transporte público. Não existe dia em que os passageiros não sejam desrespeitados em algum dos serviços, quando não em todos. 

Quarta-feira, um caso chamou a atenção: em plena avenida Brasil, um motorista abandonou seu posto de trabalho da linha 397, embarcou em outro ônibus e deixou para trás não somente o veículo que conduzia, mas também dezenas de passageiros que se apertavam como sardinhas em lata. 

Informações dão conta que o motorista chegou ao limite do esgotamento, depois de ter sido xingado e ameaçado ostensivamente pelos passageiros do 397, porque vinha parando em todos os pontos com o veículo já lotado. 

É o retrato fiel do caos carioca. 

Desde o golpe de 2016, com a Lava Jato destruindo 2/3 dos empregos formais cariocas, o número de passageiros caiu drasticamente no principal transporte de massa, o trem. Some-se a isso o péssimo serviço da Supervia e as disputas políticas, então a capacidade de operação da companhia caiu em 50%, de 700 mil passageiros por dia para 350 mil aproximadamente.

O que faz a Supervia então? Reduz a circulação de trens, que ficam cada vez mais cheios. Algumas pessoas, cansadas da ruindade do serviço, voltaram para os ônibus. Mas como o desemprego era marcante, o que aconteceu? As empresas passaram a colocar menos ônibus em circulação nas linhas, especialmente aquelas que cruzam a cidade e têm como rivais as vans e motos da milícia...

Ou seja, o passageiro, trabalhador ou estudante, simplesmente não tinha para onde correr. 

Com a pandemia, o desastre foi completo. Até agora não houve recuperação e a explicação é óbvia: anos de desgoverno, sucateamento estadual e federal. O Rio se espatifou e, mesmo que agora tenha uma retomada do emprego, ainda está muito aquém dos níveis de dez ou oito anos atrás, em termos proporcionais. Consequentemente, continuamos a ter menos trens circulando do que precisamos e menos ônibus. Na hora do rush vira o caos. 

O motorista é obrigado a parar nos pontos, mesmo com o ônibus lotado. Se passar direto e for fiscalizado, rua. 

O passageiro que embarca do centro para a zona oeste é praticamente um animal de abate embarcado num caminhão.

Não é difícil imaginar as situações que a população passa diariamente no universo do transporte público. 

Por sua vez, a milícia segue cada vez mais ameaçadora, ocupando o território metropolitano do Rio e humilhando as pessoas. 

Perto do que se vê todo fim de tarde na hora do rush no Rio e seus arredores, a tensão num ônibus se limitar a palavrões e um motorista extenuado desistir do trabalho é quase um milagre. O sistema funciona para que as pessoas se agridam até a morte, numa selvageria absurda. É uma pena que centenas de milhares de pessoas, incluindo passageiros e motoristas, cumprem diariamente. 

Que crime cometeram? Terem nascido pobres. 

Wednesday, July 26, 2023

Sinéad O'Connor

Justamente ontem, Sinéad O'Connor partiu para sempre. Ainda me lembro quando a vi pela primeira vez, na capa de seu disco que alguém levou para a casa do Fred. A beleza de seu rosto me causou um impacto absurdo, pois era acompanhada do crânio raspado, uma ousadia que pouquíssimas mulheres praticavam no mundo todo. Eu mesmo era o único careca voluntário das minhas turmas. Tinha o Alexandre Gomes na faculdade, que era gente muito boa e sumiu. Só. Em Copacabana, só Monique Evans, linda de enlouquecer, tinha coragem de usar o cabelo muito curto.

No apartamento, enquanto discutíamos qualquer coisa, alguém lembrava como Sinéad era linda e logo alguma amiga ciumenta reclamava. Ríamos e contestávamos. 

A beleza do rosto de Sinéad me impactou por muito tempo, aumentando ainda mais quando explodiu o vídeo clip de "Nothing compares to you", que ganhou o mundo - uma canção de Prince que ela transformou em sua com maestria - há cantoras com esse poder, Marina Lima, Adriana Calcanhotto, Tina Turner, que cantam e interpretam de um jeito único, virando parceiras dos autores. 

Nenhuma mulher raspa o crânio sem atitude. Sinéad era uma força da natureza. Lançou alguns álbuns ótimos que a intelligentzia desprezou porque estava mais interessada em fofocas e polêmicas. Enfrentou poderosos cara a cara e não arredou pé, o que lhe custou severos boicotes. 

Foi linda até o fim. Aguentou tudo, menos o pior castigo que sofre uma mãe: perder um filho. Morreu jovem demais. Os mais novos precisam conhecê-la.

Volto a 1989 e revejo a casa de Fred. Alguns amigos estão longe, as garotas também, alguns se foram para sempre. Não parece longe, foi outro dia. Eu não me esqueço da contemplação daquela beleza, que ainda tem uma marca: a tristeza do olhar e semblante. Tive sorte com garotas bonitas, fui amigo de muitas, namorei algumas, flertei com outras e me casei com uma.

Independentemente disso, tive e tenho minhas admirações pela beleza em si, que basta. Ana Paula era linda, assim como Luciene e depois Juliana, depois Gabriella. Amigas, colegas e admirações cujos rostos me remetem à beleza e que me lembro agora. A diferença é que me lembro de todas belas, muito belas mas com algum sorriso, desfraldado ou contido, emoldurado pelos cabelos. Sinéad não: era a beleza monumental do rosto triste e careca. Nela, tudo era desafio, até mesmo a beleza. A beleza.

Julho

Por aqui, no coração da Guanabara, é um mês que sugere civilidade. Férias escolares, ruas (ainda) mais vazias, às vezes frio e chuva. Dias e tardes gris. Nenhum feriado.

Quando julho corre, fica a sensação real de que mais da metade do tempo do ano passou, isso para nós que medimos o tempo em meses. Já começa o caminho para o próximo ano, o próximo ano, a próxima temporada e tudo corre com enorme velocidade rumo ao futuro, o fim ou o nada, conforme o gosto do freguês. 

São seis e meia e o dia ainda está clareando. Julho vai chegando ao seu final. Embora não haja nada de novo debaixo do sol discreto, quem sabe a vida não oferece uma surpresa boa? Quem sabe?

Sunday, July 23, 2023

De Ed Motta a Geraldo Vandré

Ouço música diariamente, no trabalho e em casa. É assim há muitos anos. Geralmente faço minha programação particular onde o cast possui 360 graus de amplitude, indo de Cauby Peixoto a Sepultura, Tom Zé a Radiohead, Almir Guineto a United Future Organization, Fevers a Brand New Heavies. 

Passei a sexta no trabalho ouvindo Ed Motta, neste domingo também. Eu o vi começando a carreira já monstruoso e seu trabalho só melhorou com o tempo, notadamente influenciado pelo Steely Dan, que é uma das instituições estadunidenses da música - embora Donald Fagen, o próprio SD com a morte de seu parceiro Walter Becker - já tenha dito que detesta bossa nova. Eu adoro e ponto. Viva São João Gilberto e São João Donato, que acabou de partir mas deixou uma carreira fantástica, repleta de álbuns sensacionais. 

Volto ao Ed. Algumas falas deturpadas fizeram com que o cantor colecionasse haters nas redes sociais, fruto desse ódio delivery que vivemos. E, claro, a tradicional hipocrisia dos puristas que adoram apedrejar os outros. O mais importante de tudo deveria ser seu trabalho musical, que é riquíssimo com 35 anos de carreira e muita qualidade.

[pausa por motivo de força maior]

Domingo, perto da meia noite, o mundo em agonia plena porque lá vem a segunda-feira, passo pelo documentário sobre Sidney Magal na GloboNews. Algumas falas bem interessantes. Mas fico de olho porque vai começar o Canal Livre e eu sempre espio o entrevistado. 

Meia noite em ponto e acontece a cena mais inesperada da TV brasileira em anos: anunciam o nome do entrevistado. Geraldo Vandré. O quê? É isso mesmo? É! 

[volto em seguida depois desse natural Impacto]

Ed Motta me remete ao começo da faculdade em 1988. Vi um show dele por lá. Era também o tempo da estreia de Marisa Monte, os dois fizeram um belo dueto em "Ainda lembro", segundo álbum da cantora. Os Titãs voltavam à tona com o álbum "O blesq blom". Os Paralamas arrasavam com a sonoridade latina de "Bora Bora". A Legião Urbana lotava estádios. Ciente do fim, Cazuza acelerava novos trabalhos, que iam da bossa de "Faz parte do meu show" ao protesto vigoroso de "Burguesia". De 1987 a 1990, isso foi uma pequena amostra. 

E de fora? Vieram ao Brasil The Cure, Metallica, Supertramp, Pretenders, Simply Red, Simple Minds, UB40, Tears for Fears, Terence Trent D'arby, Eurythmics, Bob Dylan, David Bowie, Eric Clapton, Paul McCartney, Oingo Boingo, muita gente importante. Com um verdadeiro furacão em fins dos anos 1980, a década de 1990 prometia muito. Musicalmente falando, um grande tempo.

[para não dizer que não falei da incrível aparição de Geraldo Vandré na TV]

Apesar dos experientes entrevistadores do Canal Livre, o programa não deve ter sido dos mais fáceis. Ao mesmo tempo em que muitas pessoas admiram Vandré, suas respostas são lacônicas, evasivas e dão a impressão de que alguma coisa está fora da ordem, para não dizer de omissões. Mesmo assim, alguns momentos são engraçados até. Pela primeira vez, vi o grande artista falar após 45 anos de espera. A reprise da entrevista me será útil para tirar várias dúvidas. 


Monday, July 17, 2023

Fluminense 121

Ainda me lembro do exato momento em que me tornei Fluminense, há 50 anos: meu pai veio me mostrar um álbum de figurinhas da Copa de 1970 e abriu na página da Seleção Brasileira. Apontou e disse: "Esse é o Félix, ele é do Fluminense". Desde então, essas duas palavras nunca mais saíram da minha memória, Félix e Fluminense. Eu não me apaixonei pelo escudo, pelas cores ou pelas bandeiras, mas pela palavra - e se coincidência não existe, está explicado porque, muitos anos depois, escrevi vários livros sobre o clube. 

Cheguei em 1973 e o Flu já tinha uma história maravilhosa. Embora não seja o primeiro clube de futebol do Brasil, foi o pioneiro de tudo: inventou os campeonatos, o estádio, a torcida, o cuidado com a grama - pelo impecável burro Faísca -, o ídolo - e sex symbol - e, por fim, a Seleção Brasileira, para quem forneceu dezenas de jogadores nas Copas do Mundo. 

Provando sua vocação suprema para o futebol, o Fluminense logo tratou de ganhar muitos títulos na era do amadorismo. Depois deu um tempo e, quando veio o profissionalismo, montou aquele que provavelmente foi o maior time de sua história, dominando o Rio de Janeiro em fins dos anos 1930 - e se não fosse a Segunda Guerra Mundial, o Brasil era candidato certo a ganhar o Mundial de 1942 com um escrete tipicamente tricolor. E já que a guerra veio, o Fluminense colaborou com um avião de combate para o Brasil. No fim dos anos 1940, a Taça Olímpica deu ao Flu o título de perfeita organização desportiva. Quando o futebol brasileiro foi reduzido a pó na Copa de 1950, correndo grande risco até de desaparecimento, veio o Fluminense e ganhou o Mundial de Clubes, reacendendo o interesse popular pelo esporte. 

Desde então, o Fluminense viveu de tudo, tal como um verdadeiro ator de cinema: ganhou e perdeu grandes títulos, foi condenado à morte com rebaixamentos mas ressuscitou para sempre, teve dezenas de grandes craques, vários perebas, lutou muito e atravessou décadas. Foi às vias de fato, encarando a luta. Time de guerreiros. Tudo isso foi testemunhado pela maravilhosa massa tricolor, muitas vezes imersa na mais apaixonante nuvem de pó de arroz que já se tem notícia. O grande Flu dos clássicos imortais, de times inesquecíveis como a Máquina Tricolor de 1975/17, a mocidade independente de 1980 e o grande grupo tricampeão carioca e campeão. O time do gol de barriga, os campeões da Copa do Brasil em 2007, o vice-campeão da Libertadores em 2008, os dois títulos brasileiros em 2010 e 2012, mais o recente bicampeonato carioca em 2022/23.

O Fluminense é o time dos gols no último grão da ampulheta, das vitórias inacreditáveis, dos heróis improváveis. É o time da playboyzada que não se limita aos bairros nobres - é muito mais um estilo do que qualquer outra coisa. O time das garotas mais bonitas de todos os tempos, não importando se têm 18, 27, 42 ou 66 anos. O time que, por sua longa trajetória, já irritou e contrariou as redações e estúdios de boa parte da imprensa convencional. De Waterman a Welfare, depois passando por Batatais e Romeu, Rivellino e Edinho, Assis e Washington, Renato e Romário, até agora desembocar em Arias e Cano, o Tricolor é sonho, realidade, drama, conquista e emoção, tudo isso envolto em três cores que contam a história do futebol brasileiro há 121 anos. 

@pauloandel @p.r.andel

Sunday, July 16, 2023

Três atos em Copacabana

I


Cruzei a cidade na noite de sexta-feira e fui parar no único bairro do mundo onde me sinto em casa: Copacabana, é claro. Acontece que agora sou um haole, um estrangeiro, um turista, só que com o olhar mais atento de todos os habitantes locais. Bem antes de fechar a corrida, perguntei ao motorista se preferia receber em dinheiro ou pix. Deu pix na cabeça. Vale o escrito. 


Parei no Teatro Brigitte Blair. Fiquei contente. Um palco de resistência, com programação variada e grande ênfase musical. Aconchegante e vintage, a cara de Copacabana. Fui assistir o show da Conexão Planetária, para conferir a ótima impressão que tive do EP no Spotify. Nenhuma surpresa: ótimo no áudio, ótimo ao vivo e saboroso. A Conexão é um duo formado por Mariana Moulin (voz) e Marco Lima (guitarra), também compositores, acompanhado nas apresentações por Ivo Ricardo (baixo), Rabicó (bateria) e Rodolfo Bragantini (guitarra). Raras vezes vi um show tão bom e azeitado de uma banda que está começando um trabalho, mesmo que tenha músicos tarimbados. Há ecos de soul, rock, pop, MPB e peso agradável nas guitarras (sem barulheira) que fazem um contraponto excelente à doce voz de Mariana. Enfim, me diverti por uma hora e meia e espero revê-los em breve. 


II


Depois de um bom show, cabe uma boa janta ou lanche, uma boquinha talvez. Meu plano era visitar Katia, no outro lado de Copacabana, começo da Barata Ribeiro. Deixei o Brigitte Blair ainda cheio, parei numa esquina e mandei mensagem pelo WhatsApp. Katia não respondia, nem Rodrigo, meu amigo que mora nos arredores do teatro. Então andei uma quadra, duas, nenhuma resposta e parei na porta de um restaurante a quilo que ainda funcionaria por uns dez minutos. Uma boquinha leve, dois pedacinhos de frango, meia colher de arroz, um pedacinho de pernil e quarenta reais no peso. Socorro!


Sentando à mesa, Katia respondeu. Já tinha uma pizza em casa, mas não estava muito empolgada. Respondi e avisei que sairia em instantes do restaurante. Meu prato tinha tão pouca comida que terminei em dois minutos. Paguei a conta, a caixa foi simpática, logo peguei o Uber e tanto a pergunta quanto a resposta se repetiram: "Você prefere pagamento em dinheiro ou pix?", "Prefiro pix, senhor". Tempos modernos. 


III


O elevador do prédio de Kátia é um paradigma de Copacabana, com duas portas pantográficas - uma somente para o térreo. Leo, o cão oficial, pequenininho e super legal, me espera com latidos. 


Com o pratinho do restaurante caro, a fome ainda batia. Eu sou um comilão: tracei a pizza que a Kátia rejeitou, ela ligou pro Caravelle, pediu uma lasanha e uma outra pizza de chocolate. Então conversamos e rimos, passamos tempo, falamos de amigos queridos - alguns, infelizmente mortos - e comemoramos quando o pedido chegou. Num mundo onde tanta gente passa fome, poder comer é um privilégio. 


Como tudo que é bom dura pouco, chegou a hora de ir embora. O Leo correu de um lado para o outro, me despedi da amiga e fui para o terceiro Uber. Depois de cochilar no sofá, o Rodrigo respondeu mas já era tarde, fica para a próxima. 


"Tudo bem? Você prefere o pagamento em dinheiro ou pix?"


"Prefiro pix, senhor." 

Wednesday, July 05, 2023

frag mentos

[tudo no LinkedIn é falso

[é necessário respirar bem às três da manhã, enquanto tiros explodem em algum lugar de Santa Teresa e aqui na Cruz Vermelha o desespero é outro. cada um tem a desgraça que lhe cabe

[a cada dia que passa o tempo escorre cada vez mais rápido e, quando olhamos para trás, já se foram trinta ou quarenta anos. então tenho pressa porque sei que estou no terço final. ao mesmo tempo, minha cabeça ainda alimenta tantas ideias e esperanças, às vezes inúteis, às vezes combustível para fazer desta última parte a mais dessa travessia, se última for mesmo

[onde estão aqueles jogos que o tempo levou, junto com as músicas e as grandes garotas? 

[às três da manhã é necessário respirar e perceber o silêncio

[onde estou além do abismo?

Sunday, July 02, 2023

Mar

Podem falar o que quiserem de ruim, mas Copacabana não é para amadores. Você tem que vir das divisões de base já pronto para ser titular. E até hoje Copacabana tem seu playground para todos, que é a praia. Hoje em dia é preciso ter cuidado, especialmente à noite, mas a praia é o grande polo democrático que reúne tudo: gatinhas, marombeiros, coroas, crianças, gordos e magros, gays pra todo lado, sapatões deliciosas, saudáveis desocupados e o resto da fauna copacabanensis.

Geralmente eu estava ou jogando botão na casa do Luiz ou ouvindo discos na casa do Fred. Depois, quando passei a ter aula noturna na faculdade, o lazer diminuiu. E uma ou duas vezes por semana, eu ia para a praia à noite. Às vezes tinha uma garota, muitas vezes era sozinho. Eu e minha relação com o mar. Molhava o pé na beira, sentava no banco de areia, apreciava o horizonte infinito do Atlântico Sul. Tudo escuro e infinito, tudo cheio de silêncio e misterios. Tinha alguma coisa de charme, outra de medo, outra mórbida. Eu, que gosto tanto de lá, sempre pensava no que teria depois do infinito. Tanto silêncio e poucas respostas. 

Quando é cedo, em dia de tempo bom, o mar se destaca pela sua beleza e cores. Tarde, pelo mistério. Sempre foi assim. Para muita gente, fui um privilegiado por ter vivido 25 anos perto do mar e é verdade mesmo. Sempre me comovo com a emoção de pessoas do interior ao verem o mar pela primeira vez, dando-lhe o devido valor que eu nem sempre pude por tê-lo sempre ao lado. Hoje ele me faz muita falta. Há anos tenho vivido noites difíceis e, se o mar estivesse perto, era só descer, caminhar um pouco e me deparar com sua grandeza. Aliviaria alguma coisa com certeza. 

Até 1988 a praia não tinha luz noturna. Só o Juventus tinha luz própria para treinos e jogos. Aí veio a grande obra e a praia de Copacabana ficou toda iluminada. A imagem era bonita demais. Lembro que eu estava voltando de Arraial do Cabo, da casa do Henrique, com ele, a Ana e não sei se Xuru ou Pedro também. Viemos até Niterói, pegamos a barca e, a seguir, fomos da Praça XV para Copa. Era o começo da tarde e combinamos de nos encontrar para ver a nova praia cheia de luz. Foi uma noite muito bonita, depois lanchamos no Bob's. Pra mim, 1988 era um grande ano por vários motivos, até hoje me lembro. Bom, deixa pra lá. 

Infelizmente os perigos de hoje são muito maiores. Naquele tempo, o máximo que acontecia era sair na porrada com o ladrão - nós, garotos de 18 ou 20 anos, cheios de energia, não éramos fáceis. Agora é diferente: qualquer coisa tem facada no peito, degola e horror. Não era pra ser assim, bastava o ser humano ser humano de verdade, mas não aconteceu e só piorou. Mesmo assim, dia desses eu quero voltar à beira do mar de Copacabana. Rever aquela atmosfera de silêncio, mistérios e o verdadeiro ballet da morte. Procurar no horizonte pelo desconhecido, lembrar de tudo que passou, sonhar com dias de generosidade em vez de esmola e, definitivamente, tentar entender porque aquele ambiente da natureza litoral tem tanto a ver comigo, a ponto de mantê-lo intacto na memória pelos últimos 35 ou 40 anos.

Saturday, July 01, 2023

Serious

A faixa tocou pouco mas eu a memorizei de imediato. Para mim, é a melhor música do Duran Duran, mas é quase desconhecida. A sonoridade é atual mas ela é da transição 1989-1990, e eu me lembro de tudo como se fosse hoje. 

O Luizinho morava na Tonelero, no famoso Edifício Pampeiro. Ele e o Raul eram muito mais novos do que eu, Xuru e Gomão, mas nós adorávamos jogar botão e viramos amigos para sempre. Ele tinha uma mesa grande, montada na sala, onde jogávamos quase toda noite. Na hora da fome, buscávamos o lanche nas Casas da Banha da Siqueira Campos, aberta 24 horas - já fomos modernos. 

Quinhentos metros adiante, morava o Fred no Bloco F do Shopping dos Antiquários, que foi minha segunda casa por anos a fio. Também ia lá quase todo dia: era onde jogávamos cartas, ouvíamos música e alguns usavam drogas ilícitas. As garotas entravam e saíam. Uma delas, que não lembro mais o nome, vivia me dando foras até que um dia me beijou - confuso demais para entender. Estávamos todos no começo da faculdade, procurando o início do caminho adulto. Eram nossos últimos momentos adolescentes divertidos. 

Eu já estagiava, no Hospital Pinel. Não tinha um tostão mas sonhava com o futuro, ajudar meus pais. Estávamos muito pobres, não havia emprego, era o Rock Horror Show da Era Collor. 

A faculdade era maravilhosa. Minhas amigas eram lindas e nos adoravam. Éramos divertidos na turma: engraçados, excêntricos e alheios ao clima "sério" do Instituto de Matemática. Os caras preocupados com integrais e derivadas, a gente falando de Tim Maia, Prince e irmãos Coen: claro que as garotas iam nos preferir. Até as professoras: a Sônia, que era meio sem noção, dizia para Alessandra que eu era feio pra ela, mas falava em plena aula que seu marido era uma cópia minha. Vá entender. Íamos ao boliche, aos cinemas da Saens Pena, ao Palheta e sonhávamos em viajar para Arraial do Cabo. 

O Flu tinha um time modesto mas brigava. Eu estava no Maracanã o tempo todo, em Laranjeiras e tal. Era muito divertido. 

A derrota para a Argentina na Copa de 1990 nós vimos juntos na casa do Luizinho. O Xuru xingou muito na hora do gol argentino, a jogadaça do Maradona. Mais tarde, no mesmo dia, a maravilhosa Holanda também foi eliminada: deu Alemanha, futura campeã. 

Vimos grandes shows: Bob Dylan, Eurythmics, Oingo Boingo, A-Ha, Legião Urbana e o antológico Tim Maia no Arpoador. O Circo Voador bombava, o Canecão era super acessível. Jorge Benjor estava de volta com "E Brasil". Depois veio a maravilhosa MTV Brasil. Houve também uma derrota violenta, que foi a morte de Cazuza. A gente sabia, já era esperado mas doeu paca. Nenhum jovem deveria perder seu poeta também jovem, mas a vida é injusta por excelência. 

Naquele tempo eu era um sujeito bastante popular nos meus nichos, nem sei por que motivo. Agora, a verdade é que eu me sentia sozinho em todos os lugares, inclusive acompanhado. Às vezes eu fugia para a praia à noite e ia até a beira do mar só para contemplar a noite atlântica de Copacabana, sozinho, apreciando o litoral por minutos e minutos, misturando o silêncio com os sons do mar e a escuridão que, de certa maneira, remetia à morte - também não sei dizer como não mergulhei no mar para sempre, tantas foram as vezes e os pensamentos. 

Tudo está tão longe, mas pode ser imediatamente acionado com alguns poucos acordes. Ouvir "Serious" leva a um mundo cheio de cores e também algumas dores. Ou seja, o mundo como ele realmente é.