Monday, January 30, 2023

Costa Barros, 1975

O que lembro é que saímos da casa de Dona Nininha de madrugada, eu e minha mãe, sábado para domingo. Ficava na Estrada de Botafogo, 1970, se eu não estiver enganado, mas no Google não há qualquer vestígio da casa - o endereço aponta um posto de gasolina numa região de grande tensão social, das maiores do Brasil, em Costa Barros. Lembro que a casa era grande, tinha estacionamento para uns quatro carros, dentre eles um Aero Willys com enorme banco traseiro. Na frente, era a casa da família e, nos fundos, ficava o terreiro. Eu adorava aquele ritual todo de percussão, atabaques, tenho certeza de que aquilo me levou para o gosto por música, algo tão grande que já colecionei milhares de artistas. E foi lá, numa outra tarde de sábado, que ganhei do meu pai o meu primeiro time de botão do Fluminense, lindo, botões cristal transparente e o escudo em adesivos redondos brancos. Ganhei um do Botafogo também, para ter um adversário. Depois fiquei pensando: se o Botafogo tinha uma estrada com o nome dele, o Fluminense também devia ter uma. Coisas de criança.

A madrugada. Daquela vez, ao contrário das outras, meu pai não foi encontrar minha mãe. Naquele tempo ninguém tianha telefone. Devia ser perigoso cruzar a cidade de madrugada, claro que nem se compara a hoje, mas sei que ficamos no último banco do ônibus praticamente vazio, eu e minha mãe. Era a primeira vez que eu via a noite com atenção e esmero, buscava todos os detalhes possíveis de se espiar pela janela, mas em boa parte do percurso o que lembro é do escuro e de luzes ao longe. E silêncios. E nenhum outro carro ou ônibus. E grandes terrenos vazios. 

Depois, na grande reta, veio a Avenida Brasil. Viadutos, grandes lojas. Eu me sentia numa verdadeira viagem para casa, e era mesmo. Tinha a loja de tratores, a fábrica da Kelson's, os quartéis da Marinha, o prédio da Mercedes Benz, o Bob's, o Gordon, a fábrica da UFE. Minha mãe estáva calada. Era uma garota de 30 anos, eu tinha sete. 

Foi uma grande jornada pela noite, hoje quase impossível de ser refeita. Quando chegamos à Rodoviária Novo Rio, eu me espantei com a hora no relógio: eram três da manhã. Nunca tinha ficado acordado tanto tempo fora de casa. Minha mãe cogitou de pegar um táxi, mas bem ali havia um ônibus para Copacabana, com mais gente. 

Ainda tenho uma última lembrança, que me marcou para sempre: passarmos pela Rodrigues Alves escura, vendo os Armazéns do Cais do Porto. Eles tinham algo de tenebroso que hoje não sei dizer. Foi o último registro. Depois disso, não lembro do desfecho nem de chegarmos em casa. Morávamos na Rua Santa Clara, 345, num prédio de quatro andares que já foi demolido há muito tempo e que agora abriga um flat. 

O que fez minha mãe voltar de madrugada para casa? Provavelmente ciúmes do meu pai. Medo de alguma amante, algo assim. Sempre dormíamos em Costa Barros, só nesta noite é que quebramos a regra. Para mim era só um passeio diferente, mas para ela era muito mais. Ainda moraríamos por um tempo na Santa Clara, ainda frequentaríamos Costa Barros por algum tempo. Mesmo depois de não irmos mais, minha mãe mantinha contato com Dona Nininha. Eu virei um ótimo jogador de botão. 

Em momentos como agora, eu lembro do silêncio daquela noite de 1975, há quase cinquenta anos. Ultimamente quase não saio à noite, ainda mais de madrugada, mas quando acontece eu lembro daquela noite. São silêncios familiares. Já escrevi sobre isso tudo algumas vezes, mas escrever é reescrever e recontar os fatos, ainda mais quando daquilo tudo o que restou foi apenas lembrança. 

Momentos que os garotos guardam para sempre numa caixinha de brinquedo na memória. A

@pauloandel

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