Saturday, January 21, 2023

para os que estão distantes

minha pequena cidade parecia 

a mulher amada, nua

deitada em êxtases

quando decido percorrê-la feito pele

e vi os veteranos da praia encostados 

na trave à espera do jogo

e lindas garotas loucas tomando ácido 

no calçadão

e mais lindas garotas indiferentes, com suas cangas, a caminho de casa 

[onde foram parar renatinha e ana paula?

e vi os novos grandes prédios cheios de luzes, onde poucos entram

ao contrário das ruas, cheias de lojas vazias e empregos mortos

lojas, patrões e histórias mortas

e ônibus passando indiferentes com 

toda velocidade

[debaixo da marquise tem uma família em desespero pelo crack

eu vi as memórias dos cinemas

que juntavam multidões na fila

e o cheiro de pipoca doce, de emoção

até entrar na sala escura e surgir 

a grande tela com imagens 

monumentais

e vi as calçadas de sonho, preenchidas 

por todos os tipos: senhores respeitáveis,

escoteiros, pivetes, playboys, camelôs, 

mensageiros, executivos e doidões felizes

e mais mulheres lindas e indiferentes

até mesmo as lindas put@s da orla, que muitas vezes só queriam namorar mas fodi@m pela sobrevivência

travestis solitários nas esquinas que fariam tudo por uma verdadeira amizade

e idosas injustiçadas com suas mãos estendidas esperando a ajuda de deus

vi grandes artistas caminhando feito anônimos e anônimos se sentindo famosos

pessoas ricas com roupas humílimas, às vezes indo para o Maracanã com rasgos

num velho bar perto do teatro, os camaradas riam toda noite com os exóticos personagens da casa, que criavam as situações mais divertidas - infelizmente todos estão mortos, 

até mesmo o bar que chegou 

a ganhar um livro  

um livro, os livros, os livros que não estão sendo lidos, os escritores que estão suicidando, os poetas atordoados - todos precisam ficar ocupados com seus smartphones

eu vi a glória e a decadência, moradores morrendo e nascendo, crianças que agora são pais e mães, gente 

que lutou por uma vida inteira

e agora se humilha com latinhas 

no chão

eu vi os globinhos às cinco da manhã preparando os jornais para a entrega a domicílio, todos os dias do ano

vi o sol, a chuva, o mar na tempestade,

a bola na chuva, as corridas solitárias

vi prédios mal assombrados virando confortáveis flats

menos mal que muitos ainda possam comer esfihas em paz no restaurante da galeria

e que o teatro hoje abrigue grandes shows de música, embora esteja faltando certa irreverência

vi casais apaixonados e, mais de uma vez, deixei uma garota no vácuo à espera do beijo - eu era difícil 

e amigos gays sofrendo pelo preconceito, se achando anormais e terrivelmente reclusos

vi artistas de futuro ficando pelo caminho, perdi contato com queridos amigos da marinha, perdi todos os contatos e meu único amigo se chama desespero

à noite, corto as ruas da minha pequenina cidade e percebo que tudo está rigorosamente lá, com exceção das pessoas - o tempo muda tudo

então, aceito minha insignificância, sento num banco da praia, penso num novo livro - mesmo sem recurso algum - e descanso sem paz


@pauloandel

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