Thursday, December 31, 2020

pilar

há um um lindo sol

de tarde - o sol da 

última tarde -

e a gente amanhecendo

sem filas de trem

ônibus ou barcas

- a cidade é um feriado


[são vários sóis


vão-se as horas

por entre ruas desertas

e sombras de árvores

incansáveis - 

às vezes pequenas 

frutas se espatifam 

nas calçadas


a gata do vizinho está

derramada à cama e 

nua de doer - ela sabe

quem vê ao longe e ri

e debocha da própria

beleza em pêlo e riste


[ao longe, gentes reviram lixo

para ter o que viver


[ao longe gritam num pagode

bastante empolgante 


eis um carnaval sem 

desfile nem torcida

sem apoteose e fantasia

- a última tarde 

- o sol da última tarde


[casais que não trocam 

bom dia


[mensagens secas que 

não chegam 


[peitos estufados com vã

valentia e rostos nus


é melhor deixar a 

cortina fechada

o som bem mais baixo

a campainha desligada

pequenas esmolas de

paz em tarde ensolarada

- o sol da tarde

- o sol da última tarde 

do ano que desaconteceu


[talvez o som de ornette coleman

seja uma pequena liberdade


[ou a fúria juvenil de albert ayler

em sopros tortuosos


do outro lado da cidade

a pequenina figura de 

um menino caminhando

pela calçada perto da baía

de guanabara sem camisa

nem horário e nem família

de chegada


[tão pequeno e novo 


as pessoas amanhecem 

numa linda tarde de sol

- o último sol da tarde

- a tarde do último dia


alguém assobia uma canção 

popular nos arredores da 

central do brasil, perto de 

onde joão goulart fez seu

último discurso antes de 

sequestrarem o país


[são sóis demais 


@pauloandel

Thursday, December 17, 2020

Jason et Louise

ELA estava nua, de costas, e com a mesma beleza de tantos outros anos e oportunidades. Sua nudez esplêndida parece inesquecível mas era apenas uma imagem de três segundos, antes do sono virar despertar para mais um dia de trabalho na terra do cumprimento de penas, a poucos dias do Natal mais triste do Rio e de um Ano Novo sem festa.  

Ela é a mulher que lhe despertou o maior número de sonhos eróticos na vida. Foram muitos e nenhum deles chegou à unha de se tornar realidade. Parece estranho para quem só vê a sexualidade e o desejo em fatos concretos realizados, desprezando a fantasia. O desejo continua de alguma forma, mas sua realização é impossível: não tiveram os momentos de intimidade que mereciam ter tido, não souberam viver o que talvez lhes coubesse e nunca mais se viram. Têm vidas diferentes, moram em locais diferentes, não possuem mais nada em comum. O que faz então com que um senhor de meia idade, que já deveria ter tomado tenência na vida, volta e meia acorde quase liquefeito pelo tesão que a balzaquiana distante lhe desperta? É difícil entender pelos meios convencionais, mas parece óbvio que o erotismo não possui limites e convenções, nem lógica ou histórico. 

Louise está nua, perto de uma parede, de costas. Seu lindo e desejado corpo está em perfeito alinhamento com o romance carnal, a volúpia, a troca de toques inesquecíveis, mas tudo não passa de uma emoção adolescente nos últimos segundos de um sonho, prestes a terminar em plena alvorada de dezembro, quente e também provocante. Jason desperta em clara excitação, algo que já lhe aconteceu dezenas de vezes, mas não com suas namoradas e esposas, nem com suas admirações românticas, nem as belas garotas de ocasião. Das entranhas do pensamento, a apaixonante diva ressurge como princípio do prazer, possível apenas na imaginação. 

Ele acorda meio tonto, olha para o teto, para o lado. Procura Britney e ela não está. Pode ser que tenha saído mais cedo ou sequer vindo. Jason pensa no delicioso corpo nu de Louise, enquanto ri ao celebrar o beijo que nunca aconteceu, o namoro que foi nada, o relacionamento que só possui lembranças do que não aconteceu. 

Louise permanece perto da parede, esplêndida e completamente nua. Sua pele alva não tem as marcas de sol das roupas íntimas. Seus longos cabelos chegam ao meio das costas e provocam pelo pouco que escondem. Ela é um sonho, somente um sonho, uma fantasia impossível. E é a impossibilidade que faz Jason abraçá-la pelas costas, então se roçam ao mesmo tempo que trocam um beijo de tirar o fôlego, como se aquela preliminar de relação sexual fosse o sentido do mundo. 

É um sonho jamais realizado e, por isso mesmo, é tudo verdade. Louise tem as mais belas costas femininas do mundo, é impossível não desejá-la. Jason sabe o que perdeu. Sabe. 

@pauloandel

Sunday, December 13, 2020

Download gratuito do livro "Nada vira do avesso sozinho 2"

Download gratuito do livro de poesia no link abaixo: 

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Wednesday, November 25, 2020

panqueca

Acabei de comer uma quentinha. Chamam de prato executivo. Frango, arroz, batata frita, feijão, tomate, alface e, sei lá por que, molho à campanha. Comi sozinho enquanto vi o jogo do Botafogo. Lembrei de quase 40 anos atrás.

Minha mãe teve que fazer uma cirurgia. Estávamos muito pobres mas, não sei como, meu pai conseguiu interná-la num hospital particular que ficava na Alameda São Boaventura. Era para ser uma coisa rápida mas acabou levando dois ou três meses porque contraiu infecção hospitalar. 

Eu só podia ir visitá-la aos domingos. Durante a semana, ficava sozinho. Meu pai só chegava à noite. Eles brigavam, ele bebia muito, mas naquele momento ele ficou bem preocupado. 

Eu já sabia fazer alguma comida, mas meu pai preferiu deixar dinheiro comigo em dias alternados, para que eu comprasse uma refeição pronta. De noite lanchava. Já estava de férias, tinha passado em tudo, o que me restava era esperar o Fred chegar da recuperação e ir pra casa dele até meu pai chegar. Às vezes ficava em casa lendo e pensando no Fluminense: Afonsinho, Deley e Mário. 

Tinha um restaurante perto da minha casa, dentro do shopping dos antiquários, chamado Afonjá. Seu dono se chamava João Pedro, era um cabeleireiro respeitado em Copacabana pelo estilo afro, também tocava o restaurante. Na primeira vez em que fui lá, tinha um prato chamado panqueca e gostei do nome, então pedi para viagem. Três panquecas de carne, arroz, feijão, batata frita e tomate. Quando cheguei em casa e comi, gostei para sempre. Panqueca é muito gostoso. Voltei no restaurante várias vezes e pedi panqueca. 

Nos domingos em Niterói, antes de entrar na visita, eu tomava um Mineirinho no bar com meu pai. Era perto do hospital. A Alameda estava cheia de cartazes do cantor Marcelo, lançando sua música "Abre coração". Minha mãe demorou um tempo mas ficou boa. Ela nunca recuperou integralmente a saúde mas ainda viveu 25 anos. Sofremos muito mas também nos amamos e rimos bastante. 

Hoje não tinha panqueca, mas a quentinha me lembrou aquele tempo. Eu sonhava em ser jogador de futebol, ou trabalhar na lanchonete vendendo misto quente. Eu queria ter uma casa pra morar com minha família. Queria ficar adulto logo pra ajudar em casa. Eu jogava botão, estudava polinômios, desenhava escudinhos de time, ia à praia, jogava bola. A gente ouvia discos na casa do Fred. 

Maradona já era um cracaço em 1981. Agora na TV Fernando Vanucci narra uma crônica de Armando Nogueira sobre Maradona. Muito tempo depois, um psicopata de redes sociais ia dizer que eu fazia imitação barata do Armando Nogueira, mas era tão estúpido que não percebeu minha imitação do Ivan Lessa. 

Joguei a quentinha vazia fora. Vai dar meia noite. Como acontece todo dia há muitos anos, tenho saudade dos meus pais. Tenho saudades do Mineirinho gelado na Alameda São Boaventura. O Marcelo eu vi há dez anos, no show do Youssou N'Dour. Tenho saudades de ser um garoto, ou de ter tempo, talvez eu seja garoto até com rugas e cansaço. 

Agora Maradona dá um passe espetacular na TV para Caniggia liquidar o Brasil. Estávamos na casa do Luizinho. Xuru falou muitos palavrões. Eu já tinha mais de 20 anos mas continuava um garoto. 

Tenho saudades da panqueca. 

Quase todos os personagens desta pequena história desimportante estão mortos. 

@pauloandel

Friday, November 06, 2020

CENAS DO CENTRO DO RIO

Quando saí do trabalho, pensei em passar na Livraria Letra Viva e espiar algumas promoções. Fomos eu e Pietro. 

Algumas coisas interessantes, perto do fim do expediente, vinte para as seis. A Letra Viva tem bons livros e excelentes CDs, muitas vezes em promoção. São duas lojas, ambas na lateral do prédio do IFCS, onde estudei por dois anos há muito tempo - tinha uma garota lourinha, gordinha, era uma graça, acho que amiga do Marco, que se formou por lá. Vou sempre na loja menor, onde os atendentes são sempre atenciosos. Na maior, havia certa empáfia que me fez desistir. 

Comprados os discos, demos tchau e fomos para a Pastelaria Chic's, que é uma lanchonete preferida do Centro do Rio há meio século. Fica na Rua dos Andradas, bem perto do Camelódromo, e tem uma dupla verdadeiramente alucinante: pastel de queijo na hora e uma laranjada inesquecível. A loja é do tempo em que se comprava fichas de plástico para os pedidos no balcão - elas ainda estão lá. Algumas pessoas na fila, muita gente sofrida pedindo dinheiro. Gente indo e vindo para os transportes de massa, muitas vezes para o subúrbio e a zona oeste. 

Comendo pastéis fumegantes e saborosos, a laranjada refrescando. Sempre acaba rápido, droga. 

Pensando em pedir outro quando Jocemar e Vitor chegarem. Eles ficaram no Sebo X atendendo um cliente, perto dali, na Praça Tiradentes, bem em frente ao maravilhoso Teatro João Caetano, cuja entrada atualmente virou moradia de dezenas de pessoas que sofrem nessa Terra de miséria. 

Rapidamente chegam. E estão cada vez mais parecidos, exceto pelo cabelão de Vitor, que é excelente guitarrista de jazz e já foi personagem de um livro meu, numa incrível história envolvendo futebol de botão e a eterna  Livraria Berinjela. Ele era pequenininho. Enfim, eles vieram mas só para papear: não queriam comer pastel. Pensei em comer pelos dois mas deixei a gula de lado. Como Pietro não ia para o bis, conversamos rapidamente e ele foi para o metrô Uruguaiana. Nos despedimos, Jocemar e Vitor foram para a Carioca, eu saí da Andradas e virei à direita na Buenos Aires, bem onde tem a loja clássica das Drogarias Pacheco, com decoração vintage.

O céu com a linda troca dos tons de azul, do mais claro para o mais escuro e muitas nuvens pacíficas no céu. 

Lotes de lixo em pontos específicos, à espera dos catadores.

Muitas lojas já com expediente encerrado e outras fechadas de vez, antes e depois do cruzamento com a Avenida Passos, bem perto do antigo campo de futebol que agora é um estacionamento - há muitos carros.

Um hotel decadente de encontros súbitos de amor está com o anúncio de aluguel do prédio. Gozos e gozos que agora só existem na memória, mas com um final menos trágico do que o velho hotel na esquina de Rosário com Primeiro de Março, que desabou matando um casal de amantes. 

Mais adiante, uma Kombi vende caldo de cana e salgados em rodízio: você paga um preço fixo e tem direito a N copos de bebida saborosa. Há dois clientes, a atendente é loura, gordinha, bonita e olha para o outro lado da rua, como se admirasse um senhor gordo também passando por ali. Ela fixa o olhar. Será? 

Chego na esquina com a República do Líbano, viro à esquerda, me sinto bem e caminho calmamente, sozinho, quando me deparo com o prédio onde ficava a assessoria de imprensa do jogo do bicho carioca - não riam, eu já estive lá e também contei isso num livro. Troquei muitos cheques para meu pai naquele escritório. Eu tinha catorze anos. A rua está bem vazia e só existe algum movimento por causa dos dois botequins, ambos com gente cantando e tentando aliviar a tristeza que cerca essa cidade. Me deu vontade de parar, conversar com alguém, talvez até rir, mas é melhor ir para casa, onde posso escrever e chorar em paz. Mais atrás ficava um restaurante onde lembro de ter visto Patrícia saindo, ela tão linda, isso tem quinze anos e tudo passa rápido demais - só nos tocamos ao ver o desequilíbrio da areia na ampulheta. 

Atravessando a Visconde do Rio Branco e na esquina com a Rua dos Inválidos um terceiro boteco com gente conversando e rindo. A cidade há de se reerguer, eu sonho. Tudo fechado, exceto um grande movimento de gente na porta da Igreja de Santo Antônio: as pessoas estão esfomeadas, esperando a doação de comida. Umas quarenta, talvez. A vida é triste. 

Cruzando a Rua do Senado, você vê o velho e o novo: o novíssimo prédio espelhado da Petrobrás e, bem ao lado, a famigerada sede do Dops. Meu pai e meu tio foram presos ali, além de outras pessoas em tempos sombrios que os terraplanistas fingem não ter existido. Há um mistério de morte ali. No entanto, os poucos transeuntes ainda salvam um pouco da vida carioca, que não é o Dops. Gente passeando com cachorro. Gente conversando no churrasquinho da esquina, agora com uma dona. 

São seis e meia da tarde. Quase não há carros beijando o asfalto. Há certo silêncio que reina no coração da cidade maravilhosa, por ora sofrida, e agora começa um descanso de final de semana. Vejo a grade verde à frente e logo David a abre, solícito. Acabou a semana dos dias úteis - mas o sábado não é útil, como assim? 

Em instantes chega o recesso. Tudo está vazio mas não custa sonhar. Pretendo escrever enquanto deixo a TV falando como companhia. Está um pouco frio. 

@pauloandel

Monday, October 19, 2020

Solo


sozinho, sozinha

um só

que não se basta

e sonha com

a felicidade dos

bichos e a 

gentileza

das coisas


enquanto as ruas

de olhares tristonhos

e portas cerradas

não são pai nem mãe


[ainda que haja tanto mar


sozinho e rindo

da própria tragédia

enquanto os maus

triunfam e celebram

frases primitivas


[para que tanta dor?


sozinho caminhando

sem nada tão novo 

debaixo do velho sol

com calores e aflição

ou cansaço e angústia:

quem vai estender a mão?


um passo de cada vez

longo ou curto, suficiente

pelo caminho necessário

e que talvez seja infinito


não há ninguém ao lado

nem esperando na sala

ou no quarto de casa: 

aí está o novo anormal


[sozinho


[sozinha


ainda são onze e meia


@pauloandel

Saturday, September 26, 2020

REFLEXÃO

Nós somos blocos de água, carne e fezes indo e vindo em busca da felicidade ilusória em conta-gotas num país do futuro, procurando frestas de razão, às vezes desprezando a crueldade que poderíamos evitar bem ao nosso lado ou aos nossos pés. Alimentamos a estupidez da soberba, a vaidade flácida, a prepotência ignorante e seguimos feito impávidos colossos até que, num súbito ou numa longa agonia, chegue a hora de mergulhar no nada, e aí talvez tenhamos a chance de olhar para trás e catar as esmolas do que realmente valeu a pena. Antes disso, andamos por ruas que já foram pisadas por batalhões de gentes que desconhecemos, enquanto normalizamos todas as humilhações que nossos semelhantes sofrem, até que essa mesma humilhação nos atinja diretamente. Afinal, este é um dos países mais injustos do mundo, comandado por fascistas psicopatas loucos para que cinquenta milhões de brasileiros morram sem reposição, por infelizes que odeiam a arte, a conversa, o aprendizado e a liberdade.  A maior parte das pessoas é muito humilde, pobre e sem instrução, mas é digna e boa; por isso, é escravizada sem perceber pelos grupos de forte poder econômico. A outra parte não tem o menor compromisso sequer com a própria vida, imagine a do próximo. 

Saturday, August 22, 2020

chuva, fome e sofrimento

Sábado, oito da manhã, um frio demasiado para o Rio de Janeiro, que frequentemente vê seus habitantes com casacos a quaisquer vinte graus que surjam pelo caminho. 

Depois de um dia inteiro de chuva.

Para as finalidades artísticas, o Rio em gris é bonito, diferente. Historicamente a cidade é vendida mundo afora em azul turquesa, sol de rachar e biquínis minúsculos, mas muitos sabem que não se resume - e nem pode se resumir - a isso. 

Já gostei mais do gris, quando eu era suficientemente imaturo para entender a dor do mundo, embora já sofresse com a dor alheia. Acampei muitas vezes perto de zero graus, corri loucamente por Copacabana em manhãs e tardes de chuva. Ainda menino estúpido, cansei de entrar no mar com chuva e raios - não era a minha hora de morrer. 

Para uma parte das pessoas, o frio tem a ver com chocolate quente, fondue, vinho, drinks, ainda que a cidade vazia e triste persista. Ok, é direito de cada um. 

Mas quem já parou para pensar que, numa tarde-noite como a de ontem, mais a madrugada e esta manhãzinha, teve muita gente que sofreu pra cacete no Rio? 

Quem parou? 

Um frio de cortar a alma, calçadas molhadas, ratos fugindo dos bueiros, ruas desertas, quem poderia ter paz diante disso? E mesmo quem não vive a desgraça das calçadas pode viver sua tragédia em barracos de papelão e madeirite, também com chuva e ratos para todo lado. Nem falei dos terríveis e ameaçadores deslizamentos numa cidade recheada de morros. 

Eu não tenho paz. É minha maior indignação. E por isso dormi mal. E por isso acordei mal. 

É inaceitável que, com tantos recursos, haja cada vez mais gente morando nas ruas, sofrendo, entrando em estágio de decomposição social a céu aberto. 

Tudo culpa de uma brutal desigualdade e distribuição distorcida de renda, que é problema não apenas dos desgovernos federal e estadual, mas municipal também. 

O descaso, a indiferença, o desprezo.

Há quem acredite que tamanha desgraça é produto de questões divinais, ou da vagabundagem que gosta de ficar na rua à espera da morte (um raciocínio que chega a ser engraçado de tão tosco). "Eles gostam de ficar ali, não querem trabalhar". Tosco. Sofrer ao relento exige uma resistência psíquica e física superior à necessária em boa parte dos empregos. 

Dia desses, a crise, falsos amigos e um ladrão quase me levaram a não ter uma casa. Confesso que tive vontade de socar algumas das pessoas que emitiram opiniões a respeito, mas não guardo mágoas. Apenas não esqueço; afinal, não tenho culpa de ainda ter uma ótima memória. Mas eu tive sorte, porque muitas portas foram batidas na minha cara, mas outras se abriram inesperadamente, de modo que se a situação está longe de ser resolvida, já começou a ser contornada.

Depois de uma faculdade concluída, três pela metade, dois mestrados abandonados, trinta livros escritos e quase vinte e cinco anos de carteira assinada, eu quase fui parar na rua. Mas dei sorte. Apesar das decepções, tive alguns amigos de verdade. Se com tal arcabouço eu passei por este risco, imagine quem não o teve? 

No passado, apesar de muito esforço, seria um completo ridículo eu dizer que consegui pequenas vitórias apenas por meus esforços. Ninguém consegue isso, por melhor que seja. Não existe uma pessoa vitoriosa no mundo sem o suporte de terceiros. Uma única que seja. Se escrevi livros, é porque lá atrás meus pais me sustentaram bem, com enorme sacrifício pessoal. Se me formei, idem. Onde eu morava antes de pagar aluguel? Na casa paga por eles, ora. Se consegui montar um microcomércio de novo foi porque tive receitas de um trabalho que, lá atrás, foi subsidiado por eles, financiando casa, comida e estudo. E sinceramente, não conheço uma única pessoa que tenha obtido pequenos e grandes sucessos sem o apoio familiar, ao menos pessoalmente, seja de famílias naturais ou postiças. 

O mundo não é feito só de dualidades. Sem sombra de dúvidas, há casos em que a situação de rua poderia ter sido evitada pela própria vítima, mas são tão poucos em função da realidade da opressão econômica e social que podem ser considerados irrelevantes. A realidade é opressão, humilhação, exclusão e descaso. 

São vinte para as nove. As pessoas sofrem demais nas ruas do Rio de Janeiro. São milhares e milhares e milhares. Só no centro da cidade são centenas e centenas, na Cruz Vermelha, na Lapa, nas imediações do Forum, na Candelária - tão conhecida como palco de tragédia que não se encerra -, na Almirante Barroso, no Largo da Carioca.

Lembro do frio da juventude e a fresta da janela do quarto me dá o gris de hoje. Lembro de quando eu era um corredor, um jogador da praia, um dos garotos que via a praia mais bonita do mundo pintada de prata. Há uma beleza efêmera que sempre guardarei comigo, mas o fato é que nós, cariocas, brasileiros, deveríamos parar de fingir que este problema gravíssimo não está por toda parte e, dentro do possível, agir. 

Moradia digna é direito universal e não um favor. É inaceitável termos milhares de cariocas à espera da morte nas ruas ou parecendo em moradias degradantes. Ter isso em mente não é princípio de assistencialismo ou caridade, mas algo que anda cada vez mais escasso nas cabecinhas do Brasil: senso de justiça. 

Longe de querer estragar o fondue, o vinho e o queijo dos amigos que possam ler estas linhas, trata-se apenas de um convite à reflexão e, se possível, à ação. Mesmo combalido financeiramente, comecei a ajudar um amigo ontem para impedir que se tornasse mais um 'número' em situação de rua. Não somos números. Somos pessoas, temos sentimentos e sofremos. E muitas vezes nossas fortunas, confortos e excelentes salários vieram muito mais de outros fatores do que até da nossa própria competência. 

Há muita gente sofrendo. Não se iluda com falácias meritocráticas. Essa tragédia pode chegar a qualquer família, ainda que haja um desenho óbvio e predominante pelos componentes da desigualdade social, do racismo, da falta de empatia, do desprezo ao próximo, de características que nada têm a ver com a formação natural do povo do Rio de Janeiro. 

Quase nove horas da manhã. Um silêncio enorme nas ruas sem veículos e transeuntes. Calçadas molhadas e mãos estendidas à própria sorte. Ou corpos desmaiados de tanto cansaço e sofrimento. Não basta uma moedinha para aliviar a consciência e tentar uma moral com Deus. É preciso mais, muito mais. 

@pauloandel

Monday, July 13, 2020

Rock, rock, rock!

Em algum lugar de 1977 eu caminhava com meu pai pelas imediações do Cine Vaz Lobo, quando compramos figurinhas para um álbum chamado Multicolor, que ele fazia ou eu, não sei. Estávamos juntos. Ao chegarmos em casa,  fomos abrir os pacotinhos e vi um nome do qual nunca mais me esqueci: Bob Dylan, hoje certamente o maior artista estadunidense vivo.  E muitos anos depois foi Bob Dylan que me deu o caminho para Jack Kerouac, uma longa estrada à qual eu voltaria muitos anos depois até me tornar um escritor publicado. 

No célebre apartamento 1346 de certo prédio na rua Figueiredo Magalhães, ventrículo de Copacabana, Fred me esperava com o álbum "A trick of the tail", do Genesis. Eu tinha medo da capa, acho. Mas gostei do som. 

Entre os dois acontecimentos, lembranças da propaganda na TV do programa Rock Concert.

E não parei nunca mais. Anos depois eu estava com a multidão pra ver o Kiss no Maracanã lotado. Música na rádio todo dia. Namorar os discos na porta da Billboard da Barata Ribeiro. Acompanhar o Fred ao Disco do Dia, que ficava no Centro Comercial de Copacabana, quase esquina de Siqueira Campos com a avenida. Tinha fila para comprar LPs. The Cure e Metallica no Maracanãzinho, Jethro Tull no Canecão; Titãs, Paralamas e Barão por todo lado; Joe Cocker no Maracanã, Prince, Paul McCartney. Oingo Boingo na Gávea. Bob Dylan na Apoteose, Clapton e Bowie também. Mano Negra e Jello Biafra na Lapa. 

Desde o fim dos anos 1980 mergulhei em muitos sons e gêneros. Hoje mesmo comprei um CD de percussão árabe. Fui ao samba, à bossa, ao jazz, cubanos, europeus, África, Ásia, minha coleção tem de tudo. E sou feliz por isso. Ouço música diariamente com a mesma empolgação daquele garoto sonhando na porta da loja com "1984" do Van Halen ou "Brothers in arms" do Dire Straits. Voei meu mundo ouvindo música, mas quem me deu as asas foi o rock. 

Pra contestar, pra protestar, pra namorar, pra se entristecer, para pensar. Pra estudar. Álbuns como os do Clash, do Pink Floyd, do Rage Against The Machine, de Peter Gabriel, todos fazem pensar e buscar outras fontes: livros, filmes, quadros, peças. 

O rock mudou muita coisa no mundo, ainda que nem todos entendam e achem que faz sentido ser roqueiro e reacionário. Não é nada disso: o rock é revolucionário, é desafiador de definições, é demolidor de barreiras. Foi ele quem deu chance às expressões de combate ao racismo e à homofobia: basta pensar no recém-falecido Little Richard, para quem os jovens Rolling Stones abriram shows. E o rebolado incomparável de Elvis Presley? E as loucuras de Jerry Lee Lewis? 

Neste momento a TV mostra um prisma grandioso no palco do show de Roger Waters. É um símbolo que atravessa o mundo há 47 anos: até mesmo quem nunca ouviu o Pink Floyd já viu aquela capa preta extraordinária, uma obra de arte do século XX. 

Rock é postura, atitude, celebração, catarse coletiva. Os grandes barões do gênero são sexagenários, septuagenários e outros já deram adeus. Mas todos, de uma forma ou de outra, ainda encantam e influenciam milhões de pessoas mundo afora. O rock não vai morrer, o rock não vai acabar. Em tempos de ódio e indiferença, no meio de uma pandemia, diariamente alguém passa pela minha lojinha e saca um AC/DC, Deep Purple ou Joelho de Porco. Ou Ira! ou Tortoise. Tanto faz se é Premê ou Replicantes, Fellini ou Autoramas. O rock é pra abalar o óbvio e sacudir comodismos. 

O rock é puro êxtase, se me faço entender. Viva 13 de julho! Viva o rock n' roll!

Friday, June 12, 2020

travessa • dos poetas • de calçada

era só mais um poeta de calçada • estendido à miséria entre ratos e paralelepípedos • um poeta um garoto • sem pai nem mãe • sem irmão nem nome • exausto da vida enquanto o mundo dorme • até que venha o dia e a tragédia permaneça • enquanto correm para os shopping centers mon amour • enquanto correm para as praias • que mal tem quarenta mil mortos • além da dor de quarenta mil famílias • e cinquenta mil amigos? • era só mais um menino cumprindo pena sobre as pedras portuguesas • pelo crime de ser pobre • e não ter amparo • há quem não veja mal nenhum • porque é só um vagabundo • que não arruma um trabalho • mas nunca se viu um pequeno ou grande mendigo • na dinâmica de grupo • num endereço corporativo • por que será? • é só mais um garoto cumprindo uma sentença injusta • numa sociedade patife • cheia de gente louca para dar sua esmolinha • e sair correndo para não se comprometer • pois eles não têm nada com isso • não criaram o mundo • e com a estupidez que lhes é peculiar • não pretendem melhorá-lo • porque precisam correr para o shopping center • e precisam correr para as praias • uhu! • eis o maravilhoso berço esplêndido da meritocracia • onde as pessoas são livres para o suicídio • e para morrer sobre as calçadas • depois de estender os braços por dez mil dias • em troca de moedas e caras de nojo e gente desviando • e gente que nem é gente atravessando a rua • para poder não olhar • a cortina do passado está rasgada e rota • enquanto se lê manchetes estúpidas • sobre cafuzos nazistas • e mamelucos fascistas • mas todos estão muito ocupados para se comprometer • com um menino mendigo • à espera da verdadeira morte sobre a calçada • cumprindo uma pena inaceitável • enquanto dizem que não deveria ter nascido • só porque veio pobre • então chegam quatro da manhã e uma pergunta dá um soco na alma • pow! whow! boom! crash! • quem inventou essa bendita sociedade de merda? 

@pauloandel

Wednesday, June 10, 2020

tempos modernos itaú

No assento do metrô há um livro, mas ninguém mexe nele nem senta ao lado. Diabos, pedir licença? O jeito é ficar em pé, ainda que a luva faça um fric-frac no suporte do vagão. Ninguém reclama.

Roça-roça na hora do rush, nunca mais teve. Se alguém ri, as máscaras não deixam ver: eis a lei marcial. Os rostos, outrora indiferentes, viraram mais do mesmo. Perdemos nosso tom informal. Beijo? Já era. Cotovelo e só.

Próxima estação: Central. A correria para a gare dá saudade. Lentamente, a mão de obra que suporta o Brasil deixa o metrô, sobe as rolantes sem pressa nem vizinhança, até avançar nas roletas em busca do subúrbio.

Perto, um menininho pede esmolas e ri por baixo do pano roto, sobra de uma camiseta do Flamengo. Nem tudo é novo nos tempos modernos.

@pauloandel

(Microconto em 800 caracteres devidamente desclassificado no concurso Itaú Cultural de Emergência, focado no pós pandemia. Não serviu lá, mas serve de post aqui. Talvez não tenham gostado do final, muito agressivo para o mundo neoliberal)

remanescente

tenho morrido muitas 
vezes e foram tantas 
vezes na semana 
passada que não pude 
dormir

e perto da minha cabeceira
um poderoso ventilador ligado
parece a turbina de um avião

[olho para o teto e finjo uma 
viagem

[a janela é a porta principal

uma aeronave rumo a destino 
algum
e minha poltrona esgarçada
enquanto sinto fome
sede, cansaço e o peso da 
morte:
é que tenho morrido vezes 
demais
e isso me tira o sono
- meu teto é um céu sem 
estrelas

ela dorme ao lado e viaja 
tranquila demais
a minha paz é a mão estendida
mendiga
pedindo esmolas num circo
lotado na avenida brasil
e por isso morro sem dormir

em algum lugar do teto tem 
lua
o ronco do motor à rua
denuncia outra morte
[a noite que não dorme, o corpo 
que não sonha, o grande irmão

copacabana, vejo teus brilhos
teus galãs e fêmeas da noite
e boates encerradas 
meu coração na janela
procurando o sentido do fim:
para onde se mudou o amor?

a turbina em meu ouvido
não cessa
minhas fomes e dores
o meu amor que dorme
a dor que me adormece

copacabana, meu abraço
os garotos ficaram distantes
é que o sonho já deu no pé
a luz da janela é a derrota
a saída principal sem voz

@pauloandel

Wednesday, June 03, 2020

Mapa astral no pátio da igreja

Via de regra, o grupo de escoteiros vivia sem grana e precisava se capitalizar. A festa junina da igreja parecia ser uma boa, mas era preciso fazer algo diferente a quinze dias do evento. 

Bom, diferente já era todo o cenário: um grupo de escoteiros que realizava suas atividades no pátio da igreja católica, o mesmo lugar onde a festa iria acontecer. A igreja, cercada por condomínios na altura do terceiro andar de um shopping center. A vizinha de baixo era uma termas com alucinantes GPs de arrepiar - GPs: garotas de programa. Outro vizinho: um teatro de malucos e com espetáculos consagrados na história da MPB e da ribalta brasileira. No térreo, um supermercado, lojas de brinquedos e botequins. Traduzindo: Copacabana. 

Os jovens chefes escoteiros adoravam o mé e batiam ponto toda noite em um dos botecos do shopping, o Sniff's. Aos pés da escada de acesso para o Teatro Teresa Raquel, e também para as Termas L'uomo, o bar era palco de várias reuniões de bate papo entre os tipos mais inusitados, de estudantes a intelectuais, passando por artistas, executivos, vagabundos, maconheiros de praia, jogadores de purrinha e, claro, os escoteiros. Dentre o cast de malucos, um nome reluzia: Eduardo Victor Visconti, o Seu Visconti, presença constante no Sniff's - sem jamais consumir - e multi homem: poeta, escritor, piloto de avião, filósofo, membro de academias de letras e astrólogo.

Entre refrigerantes, sucos de morango ao leite e cervejas, uma das escoteiras teve a ideia: e se o Seu Visconti fizesse voluntariamente mapas astrais durante a festa junina? Em plenos anos 1980, astrologia era a moda, mas era preciso acertar os detalhes com a patronesse do evento junino: a Paróquia de Santa Cruz de Copacabana. Afinal, não convinha ferir suscetibilidades religiosas. O filósofo, conhecido por sua excentricidade, topou ajudar o grupo numa boa.  

Dias depois, uma comissão dos escoteiros reuniu-se com o pároco, Padre Ítalo Coelho, também fundador do próprio grupo no ano de 1963. As coisas se assentaram sem maiores problemas; afinal, a igreja - que tem um maravilhoso formato de base lunar - era conhecida por não ter imagens de santos, afora os cochichos em pleno pós-ditadura sobre o apelido do padre: "Vermelho". Os mais conservadores não engoliam a seco a ideia de irem à missa rezada por um padre comunista, mas em nome de Deus e com o balanço frenético de Copacabana, tudo se resolvia - muitas vezes com abraços entre santos, pecadores e diabos. O fato é que Padre Ítalo deu a benção ao projeto astrológico. 

Duas semanas depois, começou a festa. Gente pelo ladrão, literalmente, subindo e descendo os três andares do shopping center, por meio de uma bela rampa circular. Churrasquinhos, batidas, jogo da lata, pescaria, canjica, tinha de tudo. Gatinhas a valer, marmanjos na azaração, gays alertas. Era o evento de Copacabana em junho. 

Nos fundos da igreja, os escoteiros montaram uma grande barraca de acampamento para o atendimento de Seu Visconti aos clientes. E o que se esperava ser um reforço de caixa acabou se tornando a maior arrecadação da história do grupo em todas as festas. Nos três dias de comemoração, a barraca de mapa astrológico foi um sucesso, com uma fila a valer repleta dos típicos personagens do bairro: dondocas, gatinhas, naturebas, os próprios escoteiros, suas mães, amigas, os atores do Teresa Raquel e até às garotas das Termas L'uomo! Todo mundo em busca dos mistérios do futuro, das alegrias e decepções à frente, dos amores e tudo que pudesse valer a pena. Depois da festa tinha fila de espera para consultar Seu Visconti, que foi o verdadeiro popstar junino. 

Dias depois, os escoteiros comemoravam o sucesso da festa no balcão do Sniff's: a grana dos mapas deu para comprar barracas novas para os acampamentos. No terceiro andar do shopping, Padre Ítalo agradeceu o donativo para as obras sociais da igreja, ainda que nenhuma imagem de santo testemunhasse. Alguém jura que duas garotas das Termas L'uomo largaram a labuta e encontraram os amores milionários de suas vidas, tudo previsto nos mapas astrais de Seu Visconti. Uma dondoca abriu sua cabeça na barraca e depois fundou uma ONG para combater a fome e a miséria.  Um respeitável empresário desbundou, pediu o divórcio e assumiu sua sexualidade com um parceiro trinta anos mais jovem. E tudo começou numa conversa de botequim com a breve ideia de uma adolescente. 

Seu Visconti já era respeitado no balcão do Sniff's, mas depois do sucesso dos mapas astrais ele experimentou a sensação de ser uma celebridade local, o que lhe fez muito bem em termos de humor. Até Paulinho Cana, seu vizinho, bebum e rival histórico nos debates de boteco, o aplaudiu sem rancor.  

@pauloandel

Wednesday, May 27, 2020

William Bonner, um mau ator

A televisão brasileira, este importante veículo que carrega em si uma extensa carga de contradições, para o bem e o mal da vida brasileira, experimentou ontem um de seus mais constrangedores momentos - e isso no Brasil 2020, onde constrangimento é o que não falta.

Começo da madrugada, a entrevista de Pedro Bial com William Bonner na Rede Globo, a mesma que floresceu do golpe de 1964 e apoiou o golpe de 2016, que desaguou no lamaçal onde estamos.

O motivo do constrangimento é simples: Bonner, o todo poderoso editor do Jornal Nacional, que fala para dezenas de milhões de brasileiros de segunda a sábado, protagonizou no programa de entrevistas uma cena digna das novelas do concorrente, o SBT do bolsonarista Silvio Santos, em algum dramalhão romântico numa reprise, choramingando por se sentir oprimido por conta de sua posição profissional. Bial, que há três meses tripudiou publicamente da cineasta Petra Costa, só faltou choramingar com Bonner e depois fazer cuticuticuti como acalanto.

Uma performance absolutamente irreconhecível do jornalista que, por anos, editou suas próprias falas em horário nobre para pregar o ódio à política, ao Partido dos Trabalhadores, às figuras de Dilma Rousseff e Lula. Ela, golpeada covardemente; ele, condenado e preso por meio de uma farsa judicial.

É certo que ninguém deve ser ameaçado ou ter os filhos vitimados por fraudes. Ninguém, e Bonner democraticamente pertence a este mesmo contexto.

É lamentável que o editor esteja em auto isolamento desde as eleições de 2018. E também que tenha tido o drama da doença de seus pais. Infelizmente, é uma situação que pode acontecer, especialmente quando se é adulto e os progenitores têm idade mais avançada.

O problema é quando Bonner, em meio ao seu quase chororô, se diz vítima da "polarização" que existe no Brasil, onde pessoas que o xingavam hoje o aplaudem (?), assim como antigos fãs o têm como atual desafeto.

Mais uma vez, agora fora das lentes do Jornal Nacional, editou a verdade por critérios pessoais.

Não é possível em maio de 2020 que alguém em sã consciência acredite que o que está acontecendo no Brasil é uma disputa entre direita e esquerda, ou entre liberais e "comunistas". Não é aceitável, ainda mais quando se trata de um formador de opinião nacional.

O que o Brasil viveu entre 2013 e 2018 é diferente de hoje. Lá, as disputas eram entre o conservadorismo e o progressismo, e depois entre o golpismo e a legalidade. Agora vivemos uma outra contenda: a do humanismo contra a barbárie, da democracia contra o fascismo.

Não é preciso ser de esquerda, progressista, socialista, comunista ou o que quer que seja para se opor ao governo mais insano, despreparado, maléfico e antirrepublicano da história deste país.

Ao igualar o comportamento dos progressistas aos dos fascistas, Bonner cometeu mais um erro crasso em sua trajetória pública. Não são os progressistas que fazem vista grossa à rachadinha, nem ao livre armamento para talvez insuflar uma guerra civil.

Não são os progressistas que estão nas ruas em plena contramão da humanidade, incentivando e debochando da pandemia que, por baixo, já matou quase 200 mil brasileiros, bem ao gosto de quem já disse que seria preciso matar uns 30 mil para a vida melhorar.

Não são os progressistas que estão dilapidando a Caixa, buscando entregar o Banco do Brasil a troco de banana, e deixando milhares de pequenas e médias empresas à beira da morte por asfixia.

Não são os progressistas que jogaram no lixo milhões de empregos, enquanto prevalece a mentira de que "os investimentos vão mudar tudo". Que investimentos? Basta ler e ouvir todos os grandes veículos jornalísticos do mundo. NENHUM deles dá qualquer crédito ao Brasil de hoje.

Ontem, William Bonner tentou se passar por um brasileiro sofrido, igual a tantos outros, mas fracassou na interpretação. Mais ainda: nas comparações que fez. Ele não manipulou a mão dos brasileiros nas urnas eletrônicas, mas é sim um justo corresponsável por muito do que estamos vendo. Durante anos, foi um eficiente porta-voz do PSDB em rede nacional diária. E sua própria voz está no imaginário do povo brasileiro como a locução do ódio ao PT, queira ou não.

É a voz de Bonner que celebrou o "combate à corrupção" de Sergio Moro, assim como celebrou a ética de Aécio Neves no passado. E celebrou o antipetismo nas eleições de 2018.

Ao insistir em igualar o fascismo ao antifascismo, William Bonner mostrou que, apesar de lidar diariamente com notícias há décadas, tendo ganho muito dinheiro e fama com isso, não foi capaz de entender a dor de milhões de brasileiros. Muitos destes o escutam toda noite em televisões instaladas em biroscas e barracos, capazes de fazer chorar qualquer pessoa.

Tudo bem diferente do dramalhão macarrônico de ontem à noite, completamente alheio ao desastre fascista que ameaça o Brasil.



Thursday, May 14, 2020

Misto quente sem presunto



O Sniff´s era o palco oficial de reuniões 
diárias de muita gente, mas honestamente para a vida líquida: cervejas, refrigerantes, caninha e sucos basicamente. Quando a fome apertava, em geral os jovens corriam para o Sumol, que fica na esquina de Figueiredo Magalhães com Barata Ribeiro – aberto até duas da manhã! Em noites de – rara –caixa alta, aquela pizza na Bella Blú da Siqueira. Para noites mais humildes, o caldo de cana da entrada do Shopping, na Figueiredo, já servia. Em caso de emergência, o máximo que rolava no bar do Seu Manel era ovo cozido ou amendoim. Às vezes uma porção de salaminho. 

Numa bela noite o Xuru, o bardo da turma dos escoteiros, chegou ao bar morrendo de fome. O problema é que o cardápio realmente deixava a desejar. 

Para se ter uma ideia, em meados de 1988 o misto quente da casa era mais barato do que o queijo quente, de tão barra pesada que era o presunto de ocasião. O jovem Russo então teve uma ideia: se pedisse um misto quente sem presunto, ele seria igual ao queijo quente, só que mais barato. 

Estava na cara que não ia dar certo. 

“Seu Manel, faz pra mim um misto quente sem presunto”.

“Ma com assm mninn? Com pód mist quente sem prsunt? 

O merderê estava consolidado. O bar virou o Coliseu de Roma. Xuru e Seu Manel protagonizaram um dos maiores debates da história do Sniff's, digno de eleições presidenciais que, naquela época, 
nem existiam. 

Com o regulamento nas mãos, tendo em vista que o presunto da casa era assustador feito o capeta, o jovem impetuoso que, um dia, faria história nas noites underground de Copacabana - e ganharia a alcunha de Russinho da Atlântica -, partiu com sua retórica para cima do velho comerciante lusitano:

"Seu Manel, eu quero um misto quente sem presunto e pronto. Não sou obrigado a comer esse presunto horrível."

"Ma num pod, mninn. Ond já c viu uma coisa dess? É que nem cazment sem noiva!"



Os dois elevaram o tom, o pessoal de longe começou a olhar, gente que passava na porta do Sniff’s parou e o cenário de alguma forma tinha a ver com a clássica canção de Aldir Blanc e João Bosco, “De frente pro crime”: “O bar mais perto depressa lotou/ malandro junto com trabalhador/ um homem subiu na mesa do bar/ e fez discurso pra vereador...”. 

“Ô, russim, mninn da Atlântica, você foi criad aqui, bom mninn, num pód uma coisa déss rapaiz.”

“Seu Manel, será que eu vou ter que chamar a polícia para atenderem meu pedido? O bar é público, eu estou fazendo meu pedido honestamente, posso ser atendido ou não?”

Silêncio na arquibancada do botequim. O veterano português saiu do balcão, chamou o russinho, os dois se afastaram uns trinta metros do Sniff’s, quase na esquina da portaria do Bloco D. 

Conversaram a sós, todo mundo esperando o resultado do fim do debate. 

O Xuru, baixinho, gesticulando muito. O Seu Manel, grandão, com as mãos para trás, de camiseta Hering branca. Ao longe, os torcedores do bar esperavam pelo capítulo final com grande expectativa. Até Souza, o antipático chefe da segurança do shopping, estava conversando e torcendo pelo misto 
quente. 

Um, dois, cinco minutos deconversa, um falava, o outro se calava. Num súbito, de longe se ouvem as velhas tamancas: Eduardo Victor Visconti, o Seu Visconti, o genial e excêntrico poeta e filósofo, vinha caminhado na direção 
tradicional e viu a dupla. Parou do lado deles, escutou os dois falarem algo rapidamente, começou a mexer os braços de forma alucinante, bateu as tamancas no chão com força e, plim, a conversa acabou.

Apressado, Seu Manel retorna para o balcão, cumprimenta os torcedores do bar e fala em tom baixo para o balconista Zezinho; “Faz lá essa porr desse mist sem prsunt pro Russinho duma vez”. Em seguida chega o triunfante Xuru, sorridente, e Seu Visconti começa a gritar: “SEUS DESOCUPADOS! NUNCA VIRAM 
NINGUÉM REIVINDICAR SEUS DIREITOS NÃO? VÃO ARRUMAR O QUE FAZER!”.

No outro canto do botequim, até Paulinho Cana – adversário histórico de Seu Visconti – balbuciou: “Esse velho é foda!".

(Publicado em "Um botequim de Copacabana", Vilarejo Metaeditora, 2019, página 49)

@pauloandel

Sunday, May 10, 2020

Censurado pelo Facebook


FELIZ DIA DAS MÃES, REGINA DUARTE - CENSURADO PELO FACEBOOK

Paulo-Roberto Andel - 10/05/2020

Neste domingo, provavelmente você está no conforto do seu lar ou da sua casa.

Certamente no mínimo fará chamadas em vídeo com filhos e netos, isso se não seguir as diretrizes do seu chefe, celebrando o Dia das Mães pessoalmente. 

Contudo, essa mesma chance não cabe às milhares de mulheres que têm morrido nos últimos 50 dias por conta da Covid19, muitas vezes acreditando na estupidez também do seu chefe, conclamando as pessoas ao abraço da morte nas ruas em nome da "economia", leia-se o interesse do patronato em não perder um centavo, podendo substituir os CPFs na hora em que bem entender ou precisar. E lá está você a sustentar essa barbárie. 

Não foi a primeira vez nem a segunda. Todos sabem das suas posições fascistas como fazendeira, desejosa da eliminação do MST, com muitas mães sofridas que a sua cólera cega insiste em sabotar, humilhar e invisibilizar. 

E o que dizer de carregar mortos, Regina Duarte? Eu mesmo carrego uma família inteira que foi psicologicamente destroçada pela ditadura, levada à pobreza e ao alcoolismo nos anos de chumbo que, debochadamente, você celebra com musiquinhas toscas. Há um suicida também, meu tio, decorrente do horror que a ditadura militar impôs ao Brasil, usando pessoas como você para dar uma boa imagem a uma tragédia feito agora. 

Lembra do seu medo de Lula, Regina Duarte? Pois é. Ele se transformou no terror que você espalha voluntariamente, de maneira sarcástica, fazendo propaganda de um governo fascista que não representa o povo brasileiro, humilhado e angustiado ainda mais agora, com o total desprezo de seu presidente pela causa popular, enquanto já enterramos pelo menos cem mil mortos pela "gripezinha".

Pois é, Regina Duarte, você pode mentir na TV, mas quando o assunto é ditadura eu não reconheço em você nem como um pedaço de cocô de rato. Com oito dias de vida, a ditadura quebrou toda a minha casa em busca do meu tio, enquanto minha mãe saía correndo comigo no colo pelas ruas de Copacabana. Podíamos ter morrido naquela noite, mas escapamos. Oito anos depois, eu não pude evitar minha expulsão da escola, sabe por quê? Simples: numa excursão à Praia Vermelha com a minha turma do curso de alfabetização, eu cometi o crime de perguntar porque a praia era vermelha. De baixo, eu vi o silêncio, os homens de idade fardados me olhando e o terror no rosto da minha jovem professora. Ninguém falou nada, ninguém expressou nada. Duas semanas depois, a direção da escola me convidou à saída: a ditadura descobriu que o garoto que perguntava sobre o vermelho era sobrinho de um exilado político e filho de um preso pelo regime. Quais foram os crimes? Meu tio carregava panfletos contra a ditadura. Era um panfleteiro. Como não o achavam, prenderam meu pai como isca para que ele se entregasse, o que acabou acontecendo. E como meu tio não desistiu de lutar pela liberdade do Brasil, foi preso outras vezes, perdeu uma audição à base de porrada no DOPS, até ser alertado de que, se não fosse embora, não teria outra chance. Os impactos dessa monstruosidade foram tantos que, dezesseis anos depois de sua expulsão, contribuíram certamente para seu suicídio.

As pessoas com alma e sentimento carregam seus mortos, Regina Duarte. E não é fácil. Nunca é fácil para quem tem apreço pelos seus e pelo próximo. Apreço que você despreza quando, na condição de representante desse governo indigno, se cala diante da morte de artistas notáveis como Aldir Blanc, Moraes Moreira e tantos outros. Ontem morreu o pai da arte cinética, Abraham Palatnik. Você sabe de quem se trata? A julgar pela sua mediocridade, provavelmente não, mas no mundo inteiro a arte dele é celebrada, exceto por fascistas, naturalmente ignorantes. Morreu também há pouco o Sérgio Sant'anna. Você já leu algum livro dele? 

Feliz Dia das Mães, Regina Duarte. A minha mãe não vai poder celebrar, porque morreu há treze anos, vítima psicológica da ditadura, da pobreza, da falta de condições para um melhor antendimento, feito milhões de pessoas neste país que você insiste em desprezar. Ainda me lembro dela vibrar com você em Selva de Pedra e Roque Santeiro (que, se você tivesse entendido 1% da trama, não deveria ter feito). Para minha mãe, as novelas foram muito importantes e uma das únicas distrações. Você nunca parou para pensar que sua carreira foi impulsionada por milhões de brasileiros que acreditavam em você, e que foram enganados por uma namoradinha da tortura e do ódio, da barbárie e do nazismo. Já parou para conversar com seus colegas de governo e as apologias que eles já fizeram a Goebbels, por exemplo? Preciso falar de corrupção e milícia? Não, né?

Feliz Dia das Mães, Regina Duarte. A minha mãe, que tanto te admirou, está morta. Mas é muito mais digno ter morrido pobre, anônima sem trair o próprio povo, do que ter fama e fortuna mas ser um monstro abominável feito você, que louva torturadores e despreza vítimas de uma pandemia. Morta, minha mãe é muito mais importante e digna do que você viva. Eu tenho orgulho de ser filho de quem eu sou, mas teria nojo de ter uma mãe feito você. 

É inútil ficar neste cargo, Regina Duarte. Você já vinha demolindo a sua imagem de décadas (mesmo que fosse fake) com as suas barbaridades mentais que chama de "posição política". Mas nesta semana que passou você a implodiu de vez. Nunca mais escapará da pecha de fascista, escroque, indigna, militante da ditadura e do horror. Nem uma foto com o seu belo rosto do passado será poupada. Sempre que falarmos do fascismo brasileiro, você será uma referência para isso. Desprezada pelos próprios pares, humilhada na própria emissora onde foi estrela por décadas. Nenhum dinheiro ou patrimônio compensará isso. 

Feliz Dia das Mães, Regina Duarte. Aproveite intensamente esta nova fase, porque o último foi ano passado. Infelizmente hoje você não passa de uma morta em vida, um cadáver insepulto, um zumbi que gargalha e escarra rancor vociferando toda a sua falta de humanidade, a sua colossal ignorância, o seu vazio de bem. 

Você não precisa carregar mortos nas costas: basta que encare o espelho, olhe fixamente e, por trás da imagem, tome ciência de quem você realmente é. 

Descanse sem paz.

@pauloandel

Saturday, March 21, 2020

a vingança da noite dos cristais

pode ser.
pode ser a derrota.
a minha última derrota, logo eu
que venho de tantas.
talvez seja o meu fim.
não sei dizer. ninguém sabe.
eles destruíram o pouco
que eu tinha.
eles debocharam e riram
ao chutar meu rosto.
mas eu ainda estou vivo
e viverei
para ver todos eles, nazistas
em desgraça.
todos os nazistas
humilhados.
toda a minha dor se voltará
contra os inimigos do povo
dos pobres e famintos.
todos eles vão feder
feito merda
e serão humilhados
até a hora da morte.
podem juntar seu dinheiro
roubado.
sua quadrilha de assassinos
cruéis.
hei de ver o fim dos nazistas
e cada um deles há de lembrar
o cuspe na cara de hitler.
o rato de esgoto hitler
com sua cara escarrada.
o escarro escorrendo
o câncer que lhe corrói.
o desprezo e a repulsa
que nenhum dinheiro
jamais compensará.

@pauloandel

Wednesday, March 18, 2020

Friday, March 13, 2020

rotas da boa morte

"depois que morri, pude perceber que dentro do mínimo razoável fui um homem bom.

escutei as pessoas. não roubei. não prejudiquei ninguém seriamente. só fui verbalmente agressivo para me defender de violências.

não fui canalha. não traí. não deixei meus ex-amigos na mão. não fingi desatenção quando precisaram de apoios.

pensei no outro, no próximo, de verdade. não me limitei a esmolas para me livrar de gente sofrida. quem mendiga não merece ser tratado como mendigo. quem trata o mendigo como mendigo não é digno de consideração.

entendi que o mundo só funciona de verdade com solidariedade plena, de coração, sem hipocrisia e oportunismo.

tirei de mim qualquer mágoa dos que me prejudicaram, sabotaram e roubaram. pude ver alguns deles pagando a famosa lei do retorno. não adianta postar fotos felizes e, na calada da noite, olhar o teto do quarto como um espelho que estampa uma pessoa de mau caráter.

praticamente todas as pessoas que me amaram de verdade também estão mortas, salvo raríssimas exceções. mas não lamento. fui um homem bom. amei e fui amado. mesmo morto, sou capaz de amar.

fui um homem bom. agora caminho sozinho por ruas sem nome, entre pessoas sem rosto, olhando por entre os escombros de almas perdidas, solitárias, desmanteladas. pessoas mortas, que insistem em viver com fones de ouvido e smartphones à mão.

escrevi coisas que me dão orgulho. as melhores, quase ninguém leu. as piores foram aplaudidas de pé. as medíocres foram encantadoras. cada um tem os leitores que pode.

dia desses depois da morte, um jovem morto debochou de minhas ideias sem me conhecer ou sequer trocar conversas. usava um tom professoral e anglicismos ocos, típicos dos capachos intelectuais que sonham com dinheiro e poder em deslumbramentos corporativos, ou que acreditam que o próprio talento é inédito no mundo morto. olhei e ri, deixei o cadáver em silêncio. ele morreu muito jovem, perdido em manchetes ocas e pedantismo imaturo. é justo rir dos pedantes e depois deixá-los viver ao longe, longe.

ando numa cidade morta, que perdeu o viço e oferece calçadas vazias, ruas esburacadas, lojas fechadas e mãos estendidas por esmolas que adiem a morte e confirmem a morte em vida.

antes de morrer, minha mãe me disse que eu era um homem bom. foi meu maior orgulho. dei alegria a quem me deu sentido numa terra de dores, egoísmo, sofrimento e indiferença.

o brasil está morto. o rio de janeiro está morto. sou um estrangeiro em minha própria terra. às vezes alguém me dá bom dia no elevador. os funcionários do prédio são sempre solícitos. depois passo por um portão verde, ganho a rua e vejo uma solidão enorme. tenho fome, sede, dívidas, melancolia, cansaço. tenho dores físicas, mesmo morto. meus chinelos sempre me lembram de que fui um homem do povo, desimportante, apenas em busca de migalhas de felicidade, um bem precioso mesmo depois da morte.

caminho por uma rua sem movimento que não vai dar em nada. busco as últimas forças em locais improváveis. passo calmamente enquanto transeuntes celebram um fascista boçal. eles estão muito mais mortos do que eu."

@pauloandel

Wednesday, March 11, 2020

Os subterrâneos do futebol brasileiro

O título desta coluna é uma homenagem adaptada do grande livro de João Saldanha, "Os subterrâneos do futebol", leitura obrigatória para qualquer brasileiro que goste do esporte ou pretenda escrever a respeito dele. Por sua vez, o inesquecível Saldanha quis homenagear Jorge Amado quando batizou o próprio livro. 

Infelizmente as linhas a seguir nada têm a ver com a trajetória destes dois craques da vida brasileira, João e Jorge. Vida que segue, diria o maravilhoso cronista esportivo. 

Vamos lá.

O recente - e triste - episódio envolvendo a prisão de Ronaldinho Gaúcho traz à tona algo muito especulado mas pouco falado no Brasil: a sensação permanente de que o luxuoso apartamento do futebol brasileiro tem, no mínimo, vizinhos de porta e prédio bastante indesejáveis, parecendo até um esquisito condomínio de casas na Barra da Tijuca onde ninguém sabe que o morador ao lado é miliciano, por exemplo. 

Ao lado de dribles, gols, festas e paixões, ainda que nosso futebol não seja sombra do que já foi um dia, caminham fortes interesses que não são do jogo nem dos torcedores. Não é algo de hoje, vem de muito longe, inclusive no exterior, mas o atual cenário brasileiro com todas as vísceras sociais cancerosas à vista, faz pensar. 

Quem se lembra da farra na chegada da Seleção tetracampeã mundial, entrando com bola e tudo pelo Galeão sem passar pela alfândega? Perto do que veio depois, virou fichinha. Este é apenas um exemplo. 

Somas interestelares de valores em transações nem sempre cristalinas. A clara preferência de investimento da televisão, que privilegia poucos clubes e tendencia o principal campeonato do país. Dirigentes de caráter duvidoso, alguns inclusive presos ou citados em escândalos de grandeza nacional. Outros, que se tornaram milionários trabalhando em clubes onde não recebem (ou não deveriam receber) salários, dada a hipocrisia do amadorismo dos cartolas. Negociações astronômicas de jogadores que não vingam no futebol internacional e muitas vezes retornam ao Brasil em pouquíssimo tempo - três ou seis meses. Dívidas impagáveis - algumas, com explosão súbita -, muitas vezes adquiridas por negligência trabalhista ou jurídica, deixando os clubes à míngua mas muitos funcionários e prestadores de serviço com satisfação plena. O VAR que dá muito mais certo para um lado do que outro. Conflitos de interesse a granel por toda parte. Livros e livros que denunciam a corrupção vertical da FIFA de cima para baixo. E o mundo da informação é paralisado porque, claro, a imprensa esportiva depende do futebol para sobreviver, dedicando-se apenas aos casos mais evidentes. Tudo isso embalado por muitas festas e convescotes milionários, alguns deles - sem moralismo - impróprios para menores de 75 anos. 

Claro, o futebol brasileiro é um natural reflexo do país. Por isso, está mais perto de suas mazelas terríveis do que se gostaria. Muito mais. 

Importante pontuar: o que vemos na televisão diariamente é a representação de menos de 10% dos jogadores de futebol profissional do Brasil. Os outros 95% não estão na mídia, jogam muitas vezes por um prato de comida ou até mesmo em condições análogas ao trabalho escravo, disputando partidas vistas por menos de dez torcedores, mas que são acompanhadas atentamente do outro lado do mundo por conta das bolsas de apostas. 

Voltando aos 10% da elite econômica do futebol, há relatos costumeiros de um jogador retornar parte de seus rendimentos mensais para quem o fortaleceu com um excelente contrato, às vezes até acima do que mereceria tecnicamente falando. Qualquer semelhança entre este procedimento e a já famosa suspeita de "rachadinha" parlamentar, com 48 depósitos de 2 mil reais em espécie no caixa eletrônico, é mera evidência. E quando você vê aquele pereba como titular absoluto do seu time, sem entender porque o reserva não o substitui, não tenha dúvidas: não existe coincidência nisso. 

O treinador que indica reforços, o dirigente que contrata vários jogadores de um mesmo empresário, o clube que revela vários jogadores sem retorno esportivo mas com rápidas negociações internacionais. Os clubes que têm uma sequência de negociações de jogadores que, em muitos casos, não vingam esportivamente. E treinadores que vêm e vão com velocidade hipersônica, pendurando e renegociando salários atrasados. 

Bom, até recentemente a CBF tinha dirigentes que não podiam sequer viajar para o estrangeiro, sob risco de entrarem em cana via Interpol. Outros cumprem pena no exterior. Sempre alinhada com a ditadura e, posteriormente, com todos os vícios do corporativismo e da baixa politicagem das federações estaduais, a Confederação é um triste retrato da vida brasileira, salvo raras exceções de dignidade que ocuparam seus quadros. Se pensarmos friamente, tem o mesmo modus operandi da FIESP, da CNI e de outras entidades empresariais que, dentre outras picaretagens, financiaram o golpe de 2016 e prepararam o terreno para o horror que hoje vivemos. A única diferença é que a CBF, direta ou indiretamente, legaliza todo dia uma partida de futebol que, na arquibancada ou na tela da televisão, serve de pequeno bálsamo para milhões de corações torturados pela difícil vida no Brasil, ou de confere para outros corações que não estão nem aí para nada. 

Para quem ama o futebol, só resta uma saída: tapar o nariz e voltar a ser criança por 90 minutos, tal como o jornalista Juca Kfouri receitou certa vez numa entrevista. O jogo de bola ganhou o planeta, é o esporte mais popular do mundo, mas carrega em suas costas bem mais do que jogadas fabulosas e lances inesquecíveis. 

Pode parecer estranho fechar uma coluna sobre o futebol brasileiro e não falar em Neymar. Mas, pensando bem, é melhor assim. Novamente o talento de João Saldanha cai melhor por aqui: vida que segue. 

@pauloandel 

Tuesday, February 25, 2020

para o verão que morre

o que me sobrou foi um par
de chinelos velhos e grandes
com eles, navego às ruas
sem pensar bem no futuro
nem no presente 
aterrorizante
e dou meus passos humildes
sem grandes conquistas
mas também sem falsos 
amigos
com seus discursos vazios
meus pequenos passos que 
não
me levam onde procuro
nenhum rastro de meus pais
meu irmão não dá um pio
de modo que são passos 
tristes
sozinhos, porém necessários
porque a vida é dos andarilhos
dos que atravessam muitas ruas
e colecionam nomes, fatos, sons:
as cores e pedras, a gente 
que passa
meus pequenos passos necessários
sem falsos abraços e risadas 
infelizes
mergulhando feito sangue nas 
veias
e artérias do que sobrou 
dessa cidade
o que me sobrou foi meu amor, que
tenho em hectolitros e toneladas
não existe sobrevivência sem
amor
apreço, bondade, solidariedade: 
o resto não passa de mentira 
oca
arrogância de corações primitivos
o supra sumo da vã verborragia
meu amor é um par de
chinelos grandes
que calço para caminhar rumo ao
outono
sem grandes vitórias, sem hipocrisia
sem trair quem ainda me
considera
dou meus pequenos passos 
confiantes
meus pés me desviam 
do mau caminho
a borracha não me deixa derrapar 
mais:
eu só preciso de um pequeno 
punhado

Saturday, February 22, 2020

Um bandido hot dog

Era fichinha nas noites de Carnaval de Copacabana - em que outro lugar poderia se pensar em alguém parecido, como se poderá entender? Esperava a hora dos grandes blocos e partia para o ataque. Roubava, furtava, mas sem agressividade ou violência, e só lhe interessava um único produto de roubo. Seu diferencial era que usava uma fantasia de cachorro quente, acreditem! 

Rolando nem precisava roubar. Era um psicopata. Tinha renda e trabalhava. Sua obsessão pelo crime vinha apenas nas noites momescas. Em seu inconsciente também havia uma profunda admiração pelo ator Ney Latorraca, que já relatou inúmeras vezes que roubava na feira para comer quando era garoto. Para Rolando, não bastava o fascínio pelo talento de Ney: era preciso também reproduzi-lo no cenário down by law, que misturado à atmosfera kistch de Copacabana, resultaria num cômico vilão de Carnaval. 

Seu maior problema era a atração por celulares  vintage, os da primeira e segunda gerações, longe da era dos smartphones. Então roubar e furtar era algo ainda mais difícil: que vítima ainda usaria um celular sem internet em 2019 ou 2020? Isso lhe fez sair de Copacabana em busca da folia em outros bairros, noutros carnavais, aumentando seu espectro de captação de celulares velhos. Todo o produto do roubo era guardado em casa, numa escrivaninha das antigas, e naturalmente não era lá muita coisa, no máximo uns cinco aparelhos em cinco folias. Meus amigos, o miserê chegou até o mundo dos crimes exóticos, ainda mais para um ladrão que só se interessava por celulares arcaicos.

Também tinha dificuldades para o crime quando estava fantasiado. Afinal, quando o cachorro quente ambulante chegava no pedaço, todxs queriam tirar fotos, abraçar, estar perto de uma picocelebridade instantânea. E Rolando, um psicopata vintage, via naquele mar de fotos e vídeos a negação da própria existência. Contudo, desistir não faz parte dos planos. Ele persistirá!

Copacabana é seu teatro de guerra, mas não mais exclusivo. Já esteve recentemente no Bola Preta, sem sucesso. Navegará pela Banda de Ipanema e pelo Simpatia, também pelo Suvaco de Cristo. Será um desafio ainda maior roubar celulares velhos mas regiões mais endinheiradas da cidade. E quando voltar para sua casa no Bairro Peixoto, só terá o sentimento de prazer cumprido se conseguir um "tijolão", daqueles de 25 anos atrás, que os milionários bregas dos anos 1990 adoravam ostentar. 

Rolando tem um pesadelo. Todo vilão tem um ponto fraco. A psicopatia sempre lhe traz à mente a figura de Robertinha,  uma jovem carioca que tem um belo aparelho celular vintage, mas que diante de seu ataque criminoso reage com um recipiente grandão de catchup na não, deixando-o banhado da saborosa mistura do creme de tomate com açúcar e condimentos diversos. A impetuosa Robertinha apavora Rolando de vez quando, em seus pesadelos, grita na hora do ataque "EU VOU ENCHER VOCÊ DE PURÊ, E SE ENCHER MEU SACO AINDA TE TACO UM MONTE DE PASSAS!". Quase sempre após vivenciar este pesadelo ou delírio, Rolando sai de onde estiver e apressadamente corre para a Sorveteria Bolonha, esquina de Constante Ramos com Barata Ribeiro, cinquenta anos de bons serviços. Pede um eggcheeseburger, um copo grande de mate da casa - delicioso -, lancha, tenta negar sua condição de cachorro quente humano psicopata, pede a Deus para perdoá-lo dos pecados que comete e morde cada pedaço do sanduíche como se fosse o último da vida. 

Pensa no próximo bloco, no próximo crime. E se Robertinha for de verdade? E se ela aparecer com um gigantesco potão de purê, será o fim? E se for um ameaçador tubão de mostarda alemã, o que fazer? A incerteza deixa o esquisito homem-sanduíche de Carnaval em processo de quase pânico. 

O que lhe resta é sair correndo da Bolonha, sorveteria e lanchonete clássica onde bem em frente ficavam a Farmácia Piauí, um clássico de Copacabana, além de uma antiga mercearia cuja calçada elevada servia de dormitório para Mr. Éter, o mais famoso mendigo da história de Copacabana. Desce a Barata Ribeiro, passa em frente ao mitológico endereço da falecida boate Crepúsculo de Cubatão, entra na rua Santa Clara antes de se deparar com as lembranças das eternas lojas de discos Billboard e Modern Sound - o Cine Bruni também -, não olha para trás, sobe a rua cheia de árvores, passa pela porta da Padaria Apolo XI - do outro lado da rua não está mais o porteiro Silério - a velha Casa Mimosa, e ganha os metros finais até chegar à Boca do Lobo, a galeria de passagem para o Bairro Peixoto, onde finalmente se liberta de suas obsessões e volta a ser um cidadão quase normal, em defesa da família brasileira, contra o comunismo e em favor dos smartphones. 

Robertinha é uma permanente ameaça para Rolando, o vilão vintage de ocasião. Tanto faz se é um holograma, uma fantasia ou uma jovem mulher de carne e osso. A possibilidade de ser ultrajado com quilos de purê em sua fantasia de cachorro quente faz Rolando suar frio. Ela é o terror que pode estar em qualquer lugar da cidade, mas que por razões óbvias tem o DNA de Copacabana. 

@pauloandel

(Livremente inspirado na engraçadíssima colaboração de Márcia Abreu do Nascimento)