Wednesday, March 11, 2020

Os subterrâneos do futebol brasileiro

O título desta coluna é uma homenagem adaptada do grande livro de João Saldanha, "Os subterrâneos do futebol", leitura obrigatória para qualquer brasileiro que goste do esporte ou pretenda escrever a respeito dele. Por sua vez, o inesquecível Saldanha quis homenagear Jorge Amado quando batizou o próprio livro. 

Infelizmente as linhas a seguir nada têm a ver com a trajetória destes dois craques da vida brasileira, João e Jorge. Vida que segue, diria o maravilhoso cronista esportivo. 

Vamos lá.

O recente - e triste - episódio envolvendo a prisão de Ronaldinho Gaúcho traz à tona algo muito especulado mas pouco falado no Brasil: a sensação permanente de que o luxuoso apartamento do futebol brasileiro tem, no mínimo, vizinhos de porta e prédio bastante indesejáveis, parecendo até um esquisito condomínio de casas na Barra da Tijuca onde ninguém sabe que o morador ao lado é miliciano, por exemplo. 

Ao lado de dribles, gols, festas e paixões, ainda que nosso futebol não seja sombra do que já foi um dia, caminham fortes interesses que não são do jogo nem dos torcedores. Não é algo de hoje, vem de muito longe, inclusive no exterior, mas o atual cenário brasileiro com todas as vísceras sociais cancerosas à vista, faz pensar. 

Quem se lembra da farra na chegada da Seleção tetracampeã mundial, entrando com bola e tudo pelo Galeão sem passar pela alfândega? Perto do que veio depois, virou fichinha. Este é apenas um exemplo. 

Somas interestelares de valores em transações nem sempre cristalinas. A clara preferência de investimento da televisão, que privilegia poucos clubes e tendencia o principal campeonato do país. Dirigentes de caráter duvidoso, alguns inclusive presos ou citados em escândalos de grandeza nacional. Outros, que se tornaram milionários trabalhando em clubes onde não recebem (ou não deveriam receber) salários, dada a hipocrisia do amadorismo dos cartolas. Negociações astronômicas de jogadores que não vingam no futebol internacional e muitas vezes retornam ao Brasil em pouquíssimo tempo - três ou seis meses. Dívidas impagáveis - algumas, com explosão súbita -, muitas vezes adquiridas por negligência trabalhista ou jurídica, deixando os clubes à míngua mas muitos funcionários e prestadores de serviço com satisfação plena. O VAR que dá muito mais certo para um lado do que outro. Conflitos de interesse a granel por toda parte. Livros e livros que denunciam a corrupção vertical da FIFA de cima para baixo. E o mundo da informação é paralisado porque, claro, a imprensa esportiva depende do futebol para sobreviver, dedicando-se apenas aos casos mais evidentes. Tudo isso embalado por muitas festas e convescotes milionários, alguns deles - sem moralismo - impróprios para menores de 75 anos. 

Claro, o futebol brasileiro é um natural reflexo do país. Por isso, está mais perto de suas mazelas terríveis do que se gostaria. Muito mais. 

Importante pontuar: o que vemos na televisão diariamente é a representação de menos de 10% dos jogadores de futebol profissional do Brasil. Os outros 95% não estão na mídia, jogam muitas vezes por um prato de comida ou até mesmo em condições análogas ao trabalho escravo, disputando partidas vistas por menos de dez torcedores, mas que são acompanhadas atentamente do outro lado do mundo por conta das bolsas de apostas. 

Voltando aos 10% da elite econômica do futebol, há relatos costumeiros de um jogador retornar parte de seus rendimentos mensais para quem o fortaleceu com um excelente contrato, às vezes até acima do que mereceria tecnicamente falando. Qualquer semelhança entre este procedimento e a já famosa suspeita de "rachadinha" parlamentar, com 48 depósitos de 2 mil reais em espécie no caixa eletrônico, é mera evidência. E quando você vê aquele pereba como titular absoluto do seu time, sem entender porque o reserva não o substitui, não tenha dúvidas: não existe coincidência nisso. 

O treinador que indica reforços, o dirigente que contrata vários jogadores de um mesmo empresário, o clube que revela vários jogadores sem retorno esportivo mas com rápidas negociações internacionais. Os clubes que têm uma sequência de negociações de jogadores que, em muitos casos, não vingam esportivamente. E treinadores que vêm e vão com velocidade hipersônica, pendurando e renegociando salários atrasados. 

Bom, até recentemente a CBF tinha dirigentes que não podiam sequer viajar para o estrangeiro, sob risco de entrarem em cana via Interpol. Outros cumprem pena no exterior. Sempre alinhada com a ditadura e, posteriormente, com todos os vícios do corporativismo e da baixa politicagem das federações estaduais, a Confederação é um triste retrato da vida brasileira, salvo raras exceções de dignidade que ocuparam seus quadros. Se pensarmos friamente, tem o mesmo modus operandi da FIESP, da CNI e de outras entidades empresariais que, dentre outras picaretagens, financiaram o golpe de 2016 e prepararam o terreno para o horror que hoje vivemos. A única diferença é que a CBF, direta ou indiretamente, legaliza todo dia uma partida de futebol que, na arquibancada ou na tela da televisão, serve de pequeno bálsamo para milhões de corações torturados pela difícil vida no Brasil, ou de confere para outros corações que não estão nem aí para nada. 

Para quem ama o futebol, só resta uma saída: tapar o nariz e voltar a ser criança por 90 minutos, tal como o jornalista Juca Kfouri receitou certa vez numa entrevista. O jogo de bola ganhou o planeta, é o esporte mais popular do mundo, mas carrega em suas costas bem mais do que jogadas fabulosas e lances inesquecíveis. 

Pode parecer estranho fechar uma coluna sobre o futebol brasileiro e não falar em Neymar. Mas, pensando bem, é melhor assim. Novamente o talento de João Saldanha cai melhor por aqui: vida que segue. 

@pauloandel 

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