Nossas vidas escorrem
Somos tão respeitáveis, em busca de uma impossível pureza que
disfarce os pensamentos mais soturnos.
Enquanto isso, desfilamos por nossa cidade engarrafada no
asfalto e nas calçadas; as ruas são artérias entupidas, mas pulsam como nunca.
Os arranha-céus se esbarram com estranha fidalguia, mas o
mesmo não se pode esperar dos transeuntes que correm em busca de condução –
principalmente aqueles que, sabe-se lá por que, vestem-se com ternos mais
caros.
As mesmas calçadas hospedam sonhos e desilusão:
trabalhadores, empresários, ambulantes, meninos de rua, mulheres sonhadoras,
jovens ambiciosos, cavalheiros humildes, entusiastas religiosos, sofredores maltrapilhos,
torcedores, mensageiros, estudantes, homens inescrupulosos, adeptos de pequenos
crimes, pessoas de indubitável valor moral.
Então ficamos no vaivém das palavras, dos sonhos, das
responsabilidades, dos compromissos e sempre à caça do ouro que se chama tempo
livre, tão ouro quanto a água e o oxigênio ou ainda a floresta.
Passamos o dia respondendo e-mails, olhando mensagens,
atendendo pessoas, fazendo perguntas, elaborando respostas e ele, tempo, senhor
implacável da razão, faz-se trem de pouquíssimas paradas onde possamos embarcar
e dele aproveitarmos bem.
Parece estranho que a violência seja tão fascinante, a ponto
de alguns dos nossos não mais se espantarem com as aberrações a olho nu na
televisão. O que dizer de um ídolo do rock esmolando nas ruas? O que dizer das
crianças e idosos que fazem das marquises a única promessa de um lar? O que
dizer dos mais perdidos, que fumam crack para aliviar a dor de suas almas e,
com isso, apressarão o caminho inevitável para a morte?
Em tempo real, sabemos das mortes, acidentes, crises e tudo o
que deponha contra o bem supremo: a vida humana. Mais tarde, confortavelmente
instalados nas salas, a novela há nos de mostrar que cada ser humano vale meio
centímetro de consideração - segundo os preceitos dela, claro. O jornal impresso dirá que seus amigos - os dele! - são as
pessoas de bem, enquanto os corruptos são os outros. Os outros, sempre os
outros.
Não dá tempo de respirar. Hoje é o fim de julho, talvez o
mundo acabe em dezembro, o inverno quer se despedir, já pensamos nas compras de
Natal, a festa de fim de ano, o carnaval, a Copa do Mundo, as Olimpíadas, o
outro carnaval e o tempo flana ligeiro, voa rasante por nossas dimensões
humanas e segue para onde não sabemos ao certo dizer.
As cartas na caixa de correio querem dizer de grandes
ofertas, cartões de crédito, viagens imperdíveis e, claro, cobranças.
Cobranças. Cobranças. Você será punido, você será ameaçado, você precisa pagar
as contas porque esta é sua obrigação para que a máquina funcione, embora não
se saiba bem a serviço de quem – ou até se sabe.
Outro dia, éramos jardim da infância. Agora, alguma
maturidade. Daqui a pouco, respeitáveis senhores, tanto quanto estes que ocupam
a avenida Atlântica, a Rio Branco e outros logradouros de garbo. Tudo passa num
tufão de pensamentos e atos que, quando notamos, estamos a falar de coisas de
dez, vinte ou trinta anos atrás. Nunca temos tempo. Pouco importa riqueza ou
miséria nisso, o tempo não se mede em valores – e se esvai com notável
velocidade.
Então olho para um lado, o outro, estou cercado de paredes
brancas enquanto alguém cochicha noutro espaço da empresa. É quarta-feira, mas
parece sexta. Estou de férias, mas faço vários cálculos. Um querido amigo, Luiz
Carlos, fala comigo por meio eletrônico e me lembra de que hoje é o dia do
escritor. Automaticamente penso em Ivan Lessa.
Tenho que comprar remédios, sinto fome, estou bastante
insatisfeito com tudo e, olhando ao redor, por um segundo eu penso em como
estou tão distante de tudo o que pensei aos catorze ou vinte anos de idade,
tempos em que a juventude era o caminho a seguir.
Perto daqui, pessoas morrem neste instante no Souza Aguiar e
no Inca. Alguém sente fome. Alguém quer ser amado. Pouca gente está preocupada
com a dor de quem sente dor.
E tudo virou o que chamamos de tempos modernos.
Prefiro dizer que são vidas que escorrem.
Paulo-Roberto Andel,
25/07/2012
(Em memória de Ivan Lessa e em modesta homenagem ao dia do
escritor)