Tuesday, April 24, 2012

Ainda sobre perdas e danos


Ainda sobre perdas

1

Um domingo de alguma chuva, véspera de feriado e pouco movimento. 

Então, tocou o telefone e soube que a mãe de meu amigo Bola tinha acabado de falecer.

Não raciocinei muito, apenas o tempo de avisar Max no computador e rumar para a Central do Brasil.

2

O clássico no Engenhão começaria uma ou duas horas depois, mas o trem parecia vazio demais. Aos poucos, tentam destroçar o futebol com medidas modernas e pouco eficientes. Antigamente, mesmo Tricolor, ia a Vasco x Flamengo pela diversão, a emoção do grande jogo. 

No banco à minha frente, dois rapazes de aspecto bastante humildes, sandálias Havaianas da antiga, carregando mochilas esfiapadas e com ar de cansaço. Devem ter trabalhado muito. 

Minutos depois, as bugigangas e comidas e miudezas que só o trem oferece à venda, assim como só quem frequenta a Saara sabe como é a esfiha da Padaria Bassil. Veio o vendedor de pele de porco, cada rapaz comprou um pacote. Comeram com satisfação, era o almoço deles. 

Dirigindo-me para mais uma ocorrência de morte, foi importante ver que, em cada humildade ainda existe uma luta, uma esperança. Poucos flamenguistas, nenhum vascaíno. Destruíram o futebol da minha infância. Penso em meus pais, em saber que nunca mais vou vê-los.

3

Desço no Engenho de Dentro. Mais pessoas humildes saem dos vagões. Nenhuma delas carrega consigo a empáfia que os meios de comunicação emprestam diariamente ao Flamengo. São rubro-negros, também com camisas humildes, radinhos de pilha, jornais baratos. Ainda amam o futebol como eu, apenas torcem para outro time. Ter tomado o caminho da arquibancada Oeste pode ter sugerido a eles que eu era um vascaíno, mas nenhum desconfiaria o que vim fazer ali. Nunca entendi porque pessoas brigavam por futebol; para mim, a idéia era sempre a de ver belas jogadas, tentar reproduzi-las na mesa de botão ou ainda no campo do Juventus, Figueiredo Magalhães, Júnior sempre rindo quando os chamavam de Tricolor.

Logo, vejo a entrada do hospital.

4

É claro que Bola não está bem, mas parece bem. Eu não estou e sequer pareço. Seu Charles, pai dele, também. Descemos, fomos para a portaria esperar Max, pontualmente atrasado desde 1991. Alguém comemorou gol no Engenhão, mas o urro foi fraquinho, não deu para saber quem marcou ou virou. 


Depois, comprar refrigerante, espiar um bar, alguma jogada de gol, a placa com nome de Josimar. Estamos fora de órbita, mas parecemos tão normais e calmos e serenos.  Quem virou? O Vasco.

5

Na volta para casa, eu e Max conversamos sobre coisas legais, geralmente desimportâncias como o sentido da vida, que é nenhum. Passar a infância a trezentos quilômetros por hora, correr para passar no vestibular, correr para se formar, correr para não se atrasar no emprego, os dias que escorrem feito um vazamento de parede. Outro dia, marcávamos um churrasco ou futebol em Sulacap – isso faz dez ou vinte anos. As lindas mulheres de nossa juventude agora são admiráveis – e charmosas – coroas. Os filhos de Bola nem eram gravidez e agora correm sem parar; dentro de instantes, pedirão mesada para a matinê. Mas ninguém me parece mais velho: vejo todos os rostos e parecem exatamente com aqueles que me provocaram minhas primeiras grandes risadas, tempos de faculdade. 

Vinte minutos, estou na porta de casa e sinto um vazio enorme. Saber do inevitável da vida, as perdas, a solidão que pode ser a dois ou dez ou mil. 

Abri a porta. Peguei os comprimidos. Morro sem eles. Agora é ver o futebol e tentar distrair a cabeça. Duro encarar o dia a dia sem qualquer droga ilícita, contado apenas com o raciocínio e o desprezo ao próximo.


Ouço Donald Byrd e McCoy Tyner. Max telefona e oferece carona. Antes, deixei com Ursula um pacote de nhoque pronto, parece bom. O cemitério do Catumbi é logo ao lado.

Não há como não rever meu próprio horror e, ao mesmo tempo, não ter o que oferecer ao amigo diante da pior das dores. Ler a própria impotência numa bula é doloroso.

Max me falou de Roberta e fiquei preocupado em saber que poderia ter morrido naquele desabamento de janeiro, o mesmo onde passei uma hora antes do desastre, quando me dirigia ao bar para encontrar Tiba e Catalano.

7

Diante da dor, rimos alguma coisa. Tiba disse besteiras, eu também, Josimar é claro. É o que fazemos de melhor em equipe. Nunca montaríamos uma consultoria decente, mas eu pensei num programa de televisão. Como grupo, somos uns bundões, acho.

Fizemos uma longa jornada até o enterro, subindo escadas. Os cemitérios são antigos. Reparamos que nas placas mortuárias havia o nome de muitos jovens. Destruímos nosso futebol e colocamos gasolina no incêndio de nossa violência.

Dor é silêncio.

Depois, nos despedimos na porta. Nunca tinha visto Bola triste.

8

Ainda sobrou tempo para algumas cervejas no Vieira Souto, tudo muito rápido porque os ponteiros do relógio não perdoam. Rimos um pouco, prometemos esforço em prol de juras que não cumpriremos, claramente havia um imposto burlado à mesa. Felizmente a tecnologia moderna permitiu que Catalano balbuciasse algo e todos escutássemos.

Antes era fácil, nos encontrávamos todos os dias. A coisa mudou para pior, mesmo com carros mais confortáveis. Não somos donos de nosso próprio tempo.

Penso nos rapazes jovens e sofridos no vagão do trem, a humilde refeição que lhes trouxe felicidade com apenas um real.

Não somos nada.

Qualquer infarto fulminante de meia tigela e somos carne podre.

Qualquer acidente com nossos lindos carros e nossa vida escorre feito o vazamento.

Talvez o sentido da vida more naquele pacotinho de pele de porco.

Ou nas risadas à mesa do bar.

Abro a porta de casa. Amanhã é um novo dia. Desimportante ou não.




Paulo-Roberto Andel

Sunday, April 22, 2012

Crônicas crônicas

Crônica, crônica, crônicas crônicas, vamos cronicar.

Pouco importa se os narizes empinados tratam-na como gênero literal menor. Não passa de bobabem. Qual dos aduncos foi melhor do que Rubem Braga ou Mendes Campos?

Melhor priorizar as desimportâncias, as pequenas cousas, os supostos atos menores. Escrever dos grandes feitos é fácil: basta não ser um idiota.

Intelectualóides desprezam a crônica porque sabem que nela pode haver o espelho que lhes assustam: ora a necessidade de ir ao barbeiro, ora enxergar a olho nu as misérias à rua sem assepsia ou distância, ora pensar que um bom sanduíche de pernil do Vieira Souto pode ser bem melhor do que dez iguarias do Antonio’s.

Uma criança brincando de bola na praça. Um adulto solitário flanando pelo cais. O corpo de uma jovem senhora fincado no asfalto. Guerras frias e quentes. Conversa fiada. Gravidades. Tudo é crônica.

Precisamos de mais cronistas para que nosso pequeno mundo se humanize e, dessa feita, todos percebamos que a vida não se resume a shoppings e festas e luxos patéticos, nem grandes mercados de capitais ou descobertas impressionantes nos laboratórios acadêmicos. Ah, sim, a vida não é só a maior corrupção já vista neste país, porque outras maiores corrupções já foram vistas várias vezes – e alguém fingiu que não era consigo.

Mais cronistas para enxergarmos a estupidez que é tentarmos progredir sem aprendermos a pesquisar e ler. Sim, ler. O que não falta nestas horas são donos de diplomas pouco habituados à leitura, achando que as manchetes de cinqüenta centavos dão conta do recado, desde que a grana dê para comprar um abada ou ficar doidão na Lapa. Diplomas, sim, mas com capacidade. Democratizemos o ensino mas não deixemos de lembrar aos novos doutores que o futebol não é escrito só por R.M. Prado ou Fernando Calazans – isso para falar de um tema popular; Nelson Rodrigues, Mário Filho, João Saldanha e Achilles Chirol vieram bem antes, fizeram muito melhor.

Mais crônicas para lembrar o quanto somos estúpidos ao defender este livre capital que não liberta ninguém. Que nossos pequenos pretos viram presidiários porque o pais tem uma dívida histórica com quem escravizou por séculos, isso sem contar os pequenos indígenas, simplesmente dizimados. Que nossos pequenos louros fumam e cheiram a valer, fazendo com que nossos pretinhos nunca saiam de onde vieram, salvo raras exceções. Que nosso 2013, se mundo houver, tenha mais mulheres ganhando exatamente nas mesmas funções que os homens. Que imbecis parem de marcar porradas e assassinatos via redes sociais. Mais crônicas para que todos percebamos estar aí mesmo a cova que temos cavado, ao destruir a natureza, ignorar o próximo ou simplesmente colocar a televisão no timer, achando que tudo se resolve com o limite do cheque especial, o carro do ano e outras quinquilharias absolutamente inúteis quando for a hora de virarmos carne podre.

Precisamos de mais crônicas. Gente falando sozinha em seus textos mesmo que haja uma só testemunha do que escreveram. Melhor do que falarmos sozinhos no metrô abarrotado esperando um progresso que nunca chega, entre o Twitter e ligações sem conversa. Falarmos sozinhos diante do desastre que impuseram ao nosso Maracanã, aos nossos hospitais, escolas, ruas e principalmente gente.

Crônica é para falar de gente.

E isso incomoda a muitos.

O resto é a dor espetada na ponta do anzol.

 
Paulo-Roberto Andel

Tuesday, April 17, 2012

HELIO, FRED, ALEX E OUTRAS HISTÓRIAS





1

Estes dias de abril definitivamente não são fáceis.  Dia 15, aniversário do meu irmão. Sumiu por vontade própria, fingiu que eu não existia, abriu a porta e disse adeus, nunca mais vamos nos ver. Dia 17 de abril, aniversário do Helio, meu pai, que foi embora em 2008 naquele fatídico jogo do Fluminense contra o São Paulo – meia hora antes, para ser mais exato.

Nunca teve festa em minha casa, meu pai era iconoclasta. Não sei ao certo se por ter sido alijado da família quando meus avós faleceram – os outros adultos honestos e respeitáveis estavam de olho em duas joalherias do meu avô, daí não hesitaram em colocar meu pai e meu tio num colégio interno – ah, sim, e entregar minha tia Reizel para que outra família a criasse. O fato é que meu pai seguiu revoltado para todo o sempre, e reconheço sua razão. Falávamos pouco em casa, bem pouco. Depois que ele perdeu patrimônio, ficou ainda mais irascível. Eu era criança, depois jovem, não podia fazer nada. Quando consegui alguma coisa, ele já estava doente, parou de trabalhar, talvez tenhamos vividos os últimos treze anos juntos com algum conforto e debaixo de relativa paz.

Era uma pessoa de muita inteligência pelo que eu percebia, mas as mazelas da vida o torturaram. Isso fez minha mãe querida sofrer muito tempo e trouxe-me claras dificuldades. Nosso último ano de parceria foi bem razoável: com a perda da minha mãe, eu achei que os remanescentes iam ficar mais unidos. Com meu pai, isso aconteceu. Com meu irmão, não.

2

Mesmo impedido de andar por problemas de saúde, meu pai resolveu assumir coisas de casa: lavar, cozinhar, arrumar, tudo do jeito dele. Era admirável ver seu esforço em ser útil, e fazer o coletivo, num mundo cada vez mais egoísta e estúpido em que vivemos. Não tínhamos luxo algum, mas gostei de comprar um pacote de jogos de televisão: ele via todos.

Vou a todas as partidas do Fluminense. Escrevo sobre isso. O que me fez não ir ao estádio em 21 de maio de 2008 não tem explicação lógica. Resolvi ver em casa, com os dois.

Fui ao mercado, comprei ingredientes para cachorro-quente, voltei para casa, preparei tudo. Cerca de oito da noite. Meu pai tinha pego comigo uns cem reais emprestados. Veio à sala, me devolveu, levei o cachorro-quente para ele, comeu satisfeito. Minutos depois, meu irmão gritou, fui acudir, Helio tinha falecido em sua cama, sem dizer nada, via infarto fulminante -  a mesma cama onde comecei a engatinhar. Eu tinha perdido minha mãe há pouco mais de um ano quase da mesma maneira e na mesma cama. Foi duro.

3

Horas depois, alguns amigos chegaram lá em casa. O primeiro deles, Fred. Desceu comigo para fazer as providências na agência funerária, talvez a pior coisa que uma pessoa tenha que fazer quando se trata da vida de outro. Outro dia mesmo brincávamos de carrinho no velho apartamento 1346 da Figueiredo Magalhães, agora era hora de lidar com a morte, o fim. Fred me amparou, mas estava muito fragilizado – ele sentia muito mais os impactos da perda do que eu, até por ter religiosidade. Eu sinto muito os impactos, mas nem sempre deixo transparecer.

4

Os meses passaram até o dia em que meu irmão resolveu ir embora de casa sem dar notícias, sem falar o endereço, sem qualquer razão aparente, como se me cortasse de sua vida da mesma maneira que fazemos ao tirar alguma nervura do bife a ser frito. Sete de novembro de 2008. Fred foi um grande amparo. Mesmo eu não tendo a menor condição de raciocinar muito naqueles tempos, por motivos óbvios, alguma lucidez me bateu no sentido de enchê-lo para que finalmente comprasse um apartamento, mesmo que fora de sua Copacabana querida. Era um amor de coração: Fred não era um homem da praia ou dos bares, do carnaval e raramente saía de casa, mas amava Copacabana. Com muito custo, ele aceitou a ideia: financiar um imóvel na Tijuca era menos da metade do que no bairro de amor. Mudou-se para perto da Saens Peña. Convidou-me para o Natal, mas eu perdi qualquer condição de confraternizar nestas datas.

5

Dois meses, três meses de arrumação, e nos vimos num sábado. Conversamos bastante. Fred sentia uma dor forte no ombro, voltei a amolá-lo para que fosse a um médico: podia ser algo do coração. Tinha acabado de fazer um check-up, mas nunca se sabe. Águas de março. Ainda fizemos um lanche no Bob’s, ele e Leo conversaram, os dois fanáticos por aviões.

Chegou ao Copa D’or na segunda-feira.

Nunca mais saiu.

Nossa última conversa não teve adeus. Ele apenas apertou minha mão e chorou. Ali, tive certeza de que tudo estava irremediavelmente perdido. Calei-me e aguentei a nova cruz. Quando voltei para a nova visita, ele tinha perdido os sentidos para sempre.

6

Ri várias vezes do Alex. Achava engraçado seu jeitão de pegador mesmo que as companhias femininas não fossem lá da melhor estética. Gostava de saber que era um rapaz esforçado, que tinha lutado muito para concluir um curso superior. Era engraçado em tudo: um professor de educação física que não sabia jogar bola. Todos ríamos, ele sempre tinha alguma história divertida, ao lado de outros geniais sujeitos que, se o tempo me permitir, vão servir de inspiração para um livro. Eram tempos de bares, do Tocão, do falecido – e querido – Calamares da Lopes Quintas. Foi lá que o velho Xuru de guerra riu a valer quando o Santo André venceu o Flamengo.

Enquanto tive alguma saúde, há nove ou oito anos atrás, joguei futebol de salão com os amigos na quadra do Carioca do Jardim Botânico. Ainda fiz uma ou outra jogada bonita, mas nada que chegasse à unha do que eu fazia quando era jogador de praia e sonhava pisar no Maracanã. Isso foi outro dia e já tem mais de trinta anos. Certa vez, alugamos o society do Clube Condomínio, sempre simpático. E fui para o ataque. A dois minutos do fim do jogo, fiz dois gols e vencemos, 11 x 7, não me lembro. O último foi bonito: recebi pela meia-direita e chutei no alto. Alex era o goleiro. O último gol de minha vida.

7

Em 16 de abril de 2009, estávamos eu, Marco, Ricardinho e Gustavo de Caux na cafeteria do Copa D’or. Faltou Jorge Pinto. E o querido Luiz Magno. Pela primeira vez em nossas vidas, nossa reunião não tratava de ir para o Gordon, jogar mau-mau ou ouvir algum LP novo da coleção do Fred, mas sim tentar entender o momento da morte do amigo, tão injusta e precipitada. Quando Luiz faleceu, estávamos sem contato: eu tinha mudado de Copacabana, Marco morava em Niterói. Soube ao chegar em casa: minha mãe me contou em lágrimas naquele promissor 1994.

8

Em 17 de abril de 2009 era o sexagésimo-oitavo aniversário de meu pai, Helio, enterrado meses antes - minha mãe também - no mesmo São João Batista onde Fred foi velado. Apareceram jovens e velhos, pessoas que há muito não se viam, bons e maus, eternas mulheres lindas. Fred sempre foi um aglutinador, mas eu nunca pensei na hipótese de ter que carregar seu caixão – o que acabei fazendo. Havia pensado a mesma coisa em relação ao Xuru e a meus pais, ingenuamente.

Quando encerrou a cerimônia, ainda paramos um tempo perto da capela. Senti medo de nunca mais vê-los e não estou certo do que virá, mesmo passados tantos dias. Tomei um taxi, disse o que pode ter sido adeus, voltei para o trabalho, na mesma sala refrigerada, alva, solitária e querida de sempre.

Sentei em minha cadeira oficial e, uns trinta segundos depois, o telefone tocou. Zé na linha. Sempre quando liga, é de se esperar algo engraçado ou inusitado. Desta vez, não foi. Contou-me que o corpo de Alex tinha sido localizado por outro amigo nosso, que trabalha na polícia.

Quando desliguei o telefone, nunca me senti tão frágil e ciente de minha completa inutilidade diante do tamanho do mundo, das coisas e da vida. Não sou nada. Posso cair aqui neste instante e em poucas horas, serei massa podre. Nada além disso. Não somos quase nada, exceto nossos bons sentimentos e gestos, nossos pequenos momentos divertidos. Alguém diz que é dono da própria vida? Um pateta.

9

Hoje é dia 17 de abril de 2012. Meu irmão nunca mais falou comigo e só espero que esteja bem, longe do crime, da doença. Helio nunca mais reclamou do Fluminense. Fred nunca mais reclamou das mulheres e do dinheiro. Alex nunca mais falou suas adoráveis besteiras que tiravam um pouco da minha tristeza, a mesma que sinto agora em perceber que, se estão vivos em minha memória, um dia todos desapareceremos e nada fará sentido. Mais do que tudo, sinto saudades. Viver é, de certa forma, sentir dor.

Paulo-Roberto Andel

Wednesday, April 11, 2012

DISSECANDO COPACABANA II



1
Inesperado que era, mas minha musa precisava de um ingresso para o jogo do Fluminense. Um rapaz educado acertou a venda comigo na internet. Saí do trabalho, espiei os bardos da miséria na Cruz Vermelha, cheguei em casa, banho tomado e chinelos nos pés. Combinamos o resgate do ticket no alto da Santa Clara, bem perto de onde um dia morei: o escadão. Logo ao lado, residia Isabela, para quem fiz um poema certa vez e Bruna gostou tanto.

2
Idas e vindas, o pessoal meio desconfiado de mim aos pés do escadão. Mal sabem os jovens que já passei ali muitas vezes. Talvez tenha sido meu camisão preto. O rapaz, solícito, me cumprimenta, pago, recebo o ingresso e resolvo flanar novamente pelo bairro que é minha eterna casa. Queria ter ido ao Copa D’or visitar Rafael, mas o horário de visitas já tinha expirado.

3
Santa Clara, 345. Morei ali em 1974, o prédio já não existe mais, derrubado que foi para dar vez a uma luxuosa edificação. Naquele endereço, ficou em minha mente o mais puro sonho do que era Papai Noel: meu pai deixou os presentes na porta da frente, tocou a campainha, voltou pelos fundos e não percebi nada. Vivíamos debaixo de ditadura, meu tio já estava há tempos no exílio, eu não sabia de nada: queria brincar e ser feliz por alguns instantes. Tínhamos TV a cores, luxo da época. Eu estudava no Colégio Pernalonga, caro, cheio de filhos de militares reacionários e ricos de ocasião. Fiquei pouco tempo, não sem antes ter levado um pito no passeio da escola porque perguntei sobre a praia ser vermelha na Praia Vermelha, o que gerou a fúria de dois homens do exército que vigiavam nosso passeio escolar. Nosso prédio era baixo, sem elevadores, mas o apartamento era bem grande. Uma vizinha era fofoqueira, chamada Mimi – tudo segundo o relato infalível da minha mãe. Da outra vizinha eu não lembro o nome, mas achava-a muito parecida com a Madame Min das histórias em quadrinhos. Minha casa não era das mais normais: mãe contratou Cícero, o cozinheiro, para os trabalhos lá de casa. Ele só andava trajadíssimo, com uniforme e só cozinhava com aquele chapelão típico, imagine. Ah, e era homossexual, o que era suficiente para toda a rua e parte do bairro olhassem de esguelha para aquela família com um pai alto, nariz aquilino e feições judaicas, mas uma bela e jovem mãe e seu filho baixinho e gordinho.

Saímos dali para alguns meses de inferno em Madureira. Lembro do dia da mudança: foi a primeira vez que vi minha mãe chorar. Chorei junto.

Passo em frente ao memorial do prédio e acho graça. A vida é uma bobagem.

4
Boca do lobo, passagem para o Bairro Peixoto. O antigo prédio do Ricardinho. Eu e Fred íamos à casa dele quase toda  noite, era o único de nós a ter um incrementado Atari, era 1983. Dona Susi era muito bonita e divertida, sempre com piadas de sopetão, o próprio Ricardo e a irmã dele, Ursula. Voltávamos tarde da noite, principalmente aos sábados, duas, três, quatro da manhã. Nenhuma bebida, nenhuma droga, nada demais: Atari, refrigerante e as eternas cantadas na Conceição, empregada da casa e que foi embora daqui muito mais cedo do que o razoável. Coisas de pobres garotos felizes aos catorze anos de idade.

Ao lado da portaria do prédio, ficava a Casa dos Marujos. Faleceu. Menos mal que, metros adiante, a Casa Mimosa e a Padaria Apolo XI sobrevivem com imensa dignidade. Senti algum alívio.

5

Atravesso a Barata Ribeiro e fico assustado em saber que, no lugar da Modern Sound, entrou uma Leader. Antes, era o Bruni Copacabana, onde no dia de Natal de 1984 eu fui com Patrícia de mãos dadas para ver os Muppets. Do outro lado da rua, morava o Marco, vizinho de Costinha. Precisamos de mais lojas de livros, discos e artes – e, claro, de menos magazines com suas novidades mofadas.

O prêmio de consolação era comer pasteizinhos na Suprema, tradição decenal do bairro, achei que ainda dava tempo. Olhei, espiei, flagrei e cadê a loja? Sumiu. Morreu. Mataram a Suprema. Sei que ainda restou a filial do Leme, mas não entendo como os moradores do bairro não fizeram uma passeata contra o fim de um de seus símbolos maiores. As massas da Suprema eram o que há.  Tudo enfim.

Copacabana traz choro e riso. Liguei para Kátia – que foi sem sombra de dúvida uma das três mulheres mais bonitas do bairro nos meus áureos tempos. Ainda é, sempre será. Vera, claro. Eliane também, não posso sonegar minhas admirações. Kátia me confirmou o fim da Suprema. Perdi chão. Caminhei, só restava o eterno e intocável Cirandinha. Preocupação mesmo, só quando vi que era um dos clientes mais jovens do belo salão, sendo que caminho para os cinquenta. O americano estava impecável, o rissole de camarão também – a Cirandinha não falha, mesmo que suas vizinhas Barbosa Freitas e Sloper não descansem em paz.

6
Telefono para Marcelo, tomo o rumo da praia. A velha magia do trash elegante é sempre instigante. E gatas e putas e camelôs importados. E crianças e velhas. E machões e travecos. Dois capoeiristas. Um senhor com jeito de praticante de safári. Uma loura alucinante joga futevôlei. Fausto Fawcett merecia estar ali. Encontro Marcelo, lembro dos tempos em que Xuru se fazia de gringo para subir da cobertura do Othon – e sempre dava certo. Ou do dia em que estive com Bola no Sindicato do Posto 6 e quase beijei Cássia Eller na boca – a baixinha ficou com medo, o que compreendo. Paramos num boteco, caíram duas cervejas, algumas decepções e várias risadas. É que a vida escorre e dilacera o tempo.

Horas depois, rua Francisco Sá, 51. Isso quer dizer alguma coisa que não sei explicar. Tomo a condução e, na descida da avenida Copacabana, sorvo lentamente cada pedacinho do meu eterno bairro. Uma da manhã, hora de dormir, até breve.

Paulo-Roberto Andel

Thursday, April 05, 2012

LINGUIÇA (UM POEMA CONCRETO E HONESTO)


carne suína
carne mecanicamente

separada

de frango

água
gordura suína
carne de frango
carne mecanicamente

separada

de suíno
sal, sal, sal

proteína de soja
açúcar
pimenta preta
pimenta vermelha
páprica
pimenta calabresa
noz-moscada
coentro, alho, cravo
aromatizantes -
natural de fumaça
e também de carne
(leite, aipo e soja)
estabilizante
tripolifosfato de sódio
glutamato monossódico
corante caramelo
carmim de cochonilha

isoascorbato de sódio
sódio, sodio e sódio

nitrito de sódio
sódio, sódio e sódio

mais
glúten nenhum


Paulo-Roberto Andel 05 04 2012