Tuesday, April 24, 2012

Ainda sobre perdas e danos


Ainda sobre perdas

1

Um domingo de alguma chuva, véspera de feriado e pouco movimento. 

Então, tocou o telefone e soube que a mãe de meu amigo Bola tinha acabado de falecer.

Não raciocinei muito, apenas o tempo de avisar Max no computador e rumar para a Central do Brasil.

2

O clássico no Engenhão começaria uma ou duas horas depois, mas o trem parecia vazio demais. Aos poucos, tentam destroçar o futebol com medidas modernas e pouco eficientes. Antigamente, mesmo Tricolor, ia a Vasco x Flamengo pela diversão, a emoção do grande jogo. 

No banco à minha frente, dois rapazes de aspecto bastante humildes, sandálias Havaianas da antiga, carregando mochilas esfiapadas e com ar de cansaço. Devem ter trabalhado muito. 

Minutos depois, as bugigangas e comidas e miudezas que só o trem oferece à venda, assim como só quem frequenta a Saara sabe como é a esfiha da Padaria Bassil. Veio o vendedor de pele de porco, cada rapaz comprou um pacote. Comeram com satisfação, era o almoço deles. 

Dirigindo-me para mais uma ocorrência de morte, foi importante ver que, em cada humildade ainda existe uma luta, uma esperança. Poucos flamenguistas, nenhum vascaíno. Destruíram o futebol da minha infância. Penso em meus pais, em saber que nunca mais vou vê-los.

3

Desço no Engenho de Dentro. Mais pessoas humildes saem dos vagões. Nenhuma delas carrega consigo a empáfia que os meios de comunicação emprestam diariamente ao Flamengo. São rubro-negros, também com camisas humildes, radinhos de pilha, jornais baratos. Ainda amam o futebol como eu, apenas torcem para outro time. Ter tomado o caminho da arquibancada Oeste pode ter sugerido a eles que eu era um vascaíno, mas nenhum desconfiaria o que vim fazer ali. Nunca entendi porque pessoas brigavam por futebol; para mim, a idéia era sempre a de ver belas jogadas, tentar reproduzi-las na mesa de botão ou ainda no campo do Juventus, Figueiredo Magalhães, Júnior sempre rindo quando os chamavam de Tricolor.

Logo, vejo a entrada do hospital.

4

É claro que Bola não está bem, mas parece bem. Eu não estou e sequer pareço. Seu Charles, pai dele, também. Descemos, fomos para a portaria esperar Max, pontualmente atrasado desde 1991. Alguém comemorou gol no Engenhão, mas o urro foi fraquinho, não deu para saber quem marcou ou virou. 


Depois, comprar refrigerante, espiar um bar, alguma jogada de gol, a placa com nome de Josimar. Estamos fora de órbita, mas parecemos tão normais e calmos e serenos.  Quem virou? O Vasco.

5

Na volta para casa, eu e Max conversamos sobre coisas legais, geralmente desimportâncias como o sentido da vida, que é nenhum. Passar a infância a trezentos quilômetros por hora, correr para passar no vestibular, correr para se formar, correr para não se atrasar no emprego, os dias que escorrem feito um vazamento de parede. Outro dia, marcávamos um churrasco ou futebol em Sulacap – isso faz dez ou vinte anos. As lindas mulheres de nossa juventude agora são admiráveis – e charmosas – coroas. Os filhos de Bola nem eram gravidez e agora correm sem parar; dentro de instantes, pedirão mesada para a matinê. Mas ninguém me parece mais velho: vejo todos os rostos e parecem exatamente com aqueles que me provocaram minhas primeiras grandes risadas, tempos de faculdade. 

Vinte minutos, estou na porta de casa e sinto um vazio enorme. Saber do inevitável da vida, as perdas, a solidão que pode ser a dois ou dez ou mil. 

Abri a porta. Peguei os comprimidos. Morro sem eles. Agora é ver o futebol e tentar distrair a cabeça. Duro encarar o dia a dia sem qualquer droga ilícita, contado apenas com o raciocínio e o desprezo ao próximo.


Ouço Donald Byrd e McCoy Tyner. Max telefona e oferece carona. Antes, deixei com Ursula um pacote de nhoque pronto, parece bom. O cemitério do Catumbi é logo ao lado.

Não há como não rever meu próprio horror e, ao mesmo tempo, não ter o que oferecer ao amigo diante da pior das dores. Ler a própria impotência numa bula é doloroso.

Max me falou de Roberta e fiquei preocupado em saber que poderia ter morrido naquele desabamento de janeiro, o mesmo onde passei uma hora antes do desastre, quando me dirigia ao bar para encontrar Tiba e Catalano.

7

Diante da dor, rimos alguma coisa. Tiba disse besteiras, eu também, Josimar é claro. É o que fazemos de melhor em equipe. Nunca montaríamos uma consultoria decente, mas eu pensei num programa de televisão. Como grupo, somos uns bundões, acho.

Fizemos uma longa jornada até o enterro, subindo escadas. Os cemitérios são antigos. Reparamos que nas placas mortuárias havia o nome de muitos jovens. Destruímos nosso futebol e colocamos gasolina no incêndio de nossa violência.

Dor é silêncio.

Depois, nos despedimos na porta. Nunca tinha visto Bola triste.

8

Ainda sobrou tempo para algumas cervejas no Vieira Souto, tudo muito rápido porque os ponteiros do relógio não perdoam. Rimos um pouco, prometemos esforço em prol de juras que não cumpriremos, claramente havia um imposto burlado à mesa. Felizmente a tecnologia moderna permitiu que Catalano balbuciasse algo e todos escutássemos.

Antes era fácil, nos encontrávamos todos os dias. A coisa mudou para pior, mesmo com carros mais confortáveis. Não somos donos de nosso próprio tempo.

Penso nos rapazes jovens e sofridos no vagão do trem, a humilde refeição que lhes trouxe felicidade com apenas um real.

Não somos nada.

Qualquer infarto fulminante de meia tigela e somos carne podre.

Qualquer acidente com nossos lindos carros e nossa vida escorre feito o vazamento.

Talvez o sentido da vida more naquele pacotinho de pele de porco.

Ou nas risadas à mesa do bar.

Abro a porta de casa. Amanhã é um novo dia. Desimportante ou não.




Paulo-Roberto Andel

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