Tuesday, August 27, 2024

O grande capital

Na porta do banco de empréstimos da Praça Tiradentes, um garoto franzino vai parando lentamente sua bicicleta em questão, financiada por um gigantesco banco brasileiro. Com olhar desconfiado, ele desembarca do veículo e o encosta na porta da loja financeira. Tira das costas sua enorme caixa cheia de guloseimas que ele não provará. Pega o pedido de alguma funcionária e entra na loja para fazer a entrega que lhe dará míseros reais. 

[A rua parece tão vazia que tem ares de feriado, mas é tão somente a miséria da região 

A quinze metros da bicicleta do gigantesco banco brasileiro, duas pessoas em situação de rua estão praticamente desmaiadas de cansaço. Não é o sono da vagabundagem, como preferem os ignorantes: "Por que não levanta daí e vai procurar um emprego?". A estupidez é uma tragédia. Bom, ali estão dois mortos vivos, largados a própria sorte que nada significam para a loja financeira, e muito menos para a bicicleta laranja da grande corporação bancária. 

[Enquanto a cliente do iFood ri ao telefone, o menino magrinho continua à espera para finalizar o atendimento e partir para outra loja, sala ou endereço qualquer onde possa ganhar algum real.

A rua vazia talvez tenha uma explicação: o home office. E também a falta de grana: as pessoas simplesmente não se deslocam para o Centro. Continuam no ar as velhas promessas que não vão dar em nada. 

Bem em frente à bicicleta laranja da grande corporação bancária, do outro lado da rua, pessoas nitidamente cansadas estão esperando ônibus em direção à Zona Norte. Hoje em dia há menos empregos, menos consumidores e menos passageiros; consequentemente os coletivos são mais escassos. Quem tem paciência e mais dinheiro vai de metrô na Estação Carioca; quem precisa, fica. Ninguém ri. Ninguém conversa. Os rostos carregam o peso do cansaço.

Andando mais cinquenta metros, você pode chegar ao outro lado da Praça Tiradentes, onde tem a estação do VLT - volta e meia a máquina de cartões não funciona e os passageiros ficam a ver navios, já é? Na esquina da Imperatriz Leopoldina duas jovens com roupas curtas e olhares perdidos, ambas com menos de vinte anos, especulam possíveis clientes para programas sexuais. São profissionais do sexo, o problema é que ninguém é verdadeiramente profissional de nada com menos de vinte anos de idade, a não ser os gênios e estes são bem raros. 

[Toca o sino do VLT.  Os apressados correm dos trilhos. 

Uma outra garota, linda, com mais de vinte anos mas não muito, se apressa para pegar um Veículo Leve sobre Trilhos. Ela ajeita os óculos, a pasta e embarca no mini trem. Será que vai para os arredores da Rio Branco por trabalho ou estudo? Ou seu destino é a inconfundível Niterói? Nunca se sabe. Ela é bela e parece carregar um livro sobre Estatística - pode ser a gota d'água. 

Nos prédios da Praça, tudo parece silêncio das janelas. Um transeunte não pode sequer imaginar que, em alguma delas, haja um potencial suicida ou mesmo homicida. Não dá para saber nada do que a Tiradentes abriga, nem do céu nem da Terra. Se houvesse ao menos um declarado, logo surgiria um grupo de espíritos de porco que, à menor ameaça de suicídio, logo gritariam do térreo "Pula, Pula", mostrando muito de certa face verdadeira no Brasil.

[Debaixo da marquise, a quinze metros do banco de empréstimos, as duas pessoas em situação de rua continuam absolutamente desmaiadas de cansaço, à espera da misericórdia que jamais virá. 

É terça-feira, agosto se despede. A vida escorre. Os bons morrem jovens. Os arrogantes ladram por toda parte. 

@p.r. andel

Morning

Cinco da manhã e um frio do caralho. Já não sei quem sou. Anos de sofrimento, meu bem. Não tenho amigos. Nem dinheiro. Nem casa. Nem futuro. Vejo o mundo desmoronando lentamente, numa erosão bem lenta, naturalmente perceptível mas desprezada porque este é o país do desprezo. Cinco da manhã e não sei onde está meu amor. Namoro um Instagram em silêncio, sem reciprocidade, desesperado. Ainda me acho tão cheio de vida mas parece que tudo está perdido. Tenho visto as pessoas sofrendo desde que eu era criança e agora quem sofre junto sou eu. Penso todo dia nos meus pais mortos, nos meus amigos e ídolos mortos, daí me sinto sozinho demais. Não, não há problema em estar sozinho, nenhum problema. O que eu sinto na verdade não é estar sozinho mas sim um vazio enorme, gigante e absolutamente silencioso. Cinco da manhã e eu me lembro das dezenas de madrugadas frias de 1987, quando atravessava o underground de Copacabana até o Forte para a missão cívica de defender a pátria, que piada - acho que Bigode serviu lá também, mas eu me livrei em cima da hora e saí correndo. Cinco da manhã e eu me lembro de outro frio enorme em Arraial do Cabo quando estávamos na praia e éramos tão adolescentes, nós, escoteiros de uma vida inteira. Humm, horas antes na casa do meu amigo eu dividi um cobertor com uma gata alucinante e isso era enlouquecedor para um jovem no auge dos hormônios - acho que o pessoal olhou meio espantado porque percebeu a nossa cara de satisfação - ela era demais e até hoje a amo. A mesma coisa aconteceu anos depois, também em Arraial do Cabo, aí com outra garota, só que sem cobertor mas também com olhares espantados - essa fazia questão de rebolar em mim. Cinco da manhã e sou um garoto perdido no Leme, temente ao caminho das pedras que, uma vez desrespeitado em dias de chuva, pode resultar em morte. Ah, eu que tive tanta vocação para ser garoto, agora sigo para uma velhice aterrorizante - e não sei o que fazer para me livrar do mal, apenas sonhar. Cinco da manhã, um frio do caralho e o barulho de uma motocicleta rabiscando a Cruz Vermelha, um ou outro ônibus, os garotos e garotas humildes carregando suas mochilas com biscoitos, a única refeição do dia. Que merda um país que só permite biscoitos para seus jovens trabalhadores. Estou cheio de tudo, do caos, do sofrimento meu e alheio, das milhares de noites insones, dos pilantras que querem estuprar o Fluminense. A Marina me faz muita falta. Eu não passo de um brasileiro humilhado, oprimido, que estudou pra caralho à toa, mas que tem alguns admiradores porque escreveu algumas coisas e, num país onde se lê muito mal, ser admirado pelos escritos é uma pequena vitória. Cinco da manhã e me lembro de todas as antigas vitrines de Copacabana que vi e vivi - a maioria está morta. Daqui a pouco faz 25 anos que meu amigo e chefe escoteiro João Carlos morreu. E 20 anos que Xuru morreu. Já fez 15 que Fred morreu. É disso o vazio que sinto, então tento me esconder pelas palavras que deixo escorrer por aí. Onde estão meus pais, Senhor? E meu irmão? E todas aquelas pessoas admiráveis com quem gastei noites decentes rindo e bebendo chope? Será que todos viraram velhotes individualistas de merda que só servem para espiar stories em silêncio? Sei que preciso de sorte, é tudo que preciso por ora. Daqui a pouco dá seis da manhã, o céu ainda é púrpura e o Brasil está cheio de fumaça provocada por bandidos escrotos, daqueles que usam muito o nome de Deus em vão. Aproveito que é cinco da manhã e me mastigo com café com leite e ovo mexido. Mais tarde vou pagar a conta de luz. Queria ter sido um garoto feliz mas não deu, e nada indica que descansarei em paz. Que paz? O mundo é do ódio, da guerra, do desprezo e da profunda ignorância. Uma semana depois de 60 pessoas morrerem num avião, ninguém liga. Não se trata de não entender a morte como algo natural, mas sim o completo desprezo pela vida alheia. Cinco da manhã. Cinco da manhã. Meu coração não dorme. Nunca mais ganhei um abraço, nem um presente. Já fiz muita gente que sequer conheço chorar ou rir muito. Eu procuro meu mestre Ivan Lessa em lugares impossíveis de encontrá-lo, mas é como se ele me dissesse ao pé do ouvido "O cronista vai falando sozinho na frente de todo mundo". Eu não descanso em paz. 

Sunday, August 25, 2024

Uma ótima semana

No fim tudo é uma grande farsa. Uma grande hipocrisia. 

Amanhã de manhã vão falar de uma nova semana. 

Para quem?

Bilhões de pessoas são submetidas à escravidão disfarçada de economia liberal.

Isso inclui miséria, violência, humilhação, perturbação.

Depois, esperamos as eleições, para a farsa da democracia que é toda controlada pelas grandes corporações. Votamos no que é possível. Na maioria das vezes, nada muda - isso quando não piora. Afinal, o crime organizado é íntimo da política, parceiro de alguns ou visto com cara de paisagem por outros. Em qualquer assembleia legislativa do país, há gente ligada ao crime. 

A miséria, a opressão e a falta de perspectivas vão tornando as pessoas cada vez mais insensíveis e indiferentes ao próximo, desumanizando as relações e os convívios.

Dizem que o mundo é lindo e a natureza é bela. Não há dúvidas. Agora, quantos seres humanos podem realmente desfrutar dessa beleza? 

Neste exato momento, num bucólico domingo à noite, a paz é uma farsa. Na Síria, em Gaza, na Ucrânia, no Chapadão, nas periferias, nas pequenas cidades saqueadas. 

"Farinha pouca, meu pirão primeiro."

"Não fui eu que inventei o mundo."

"Tem que tacar é uma bomba na favela." 

Pessoas almoçando biscoitos, pessoas tentando comprar comida com dez reais. Mãos mendigas e olhares chorosos a cada quadra. Aí está o retumbante crescimento econômico...

Gente sem dinheiro, sem casa, sem futuro, sem nada, esperando de Deus um milagre que poderia ser apenas um procedimento, se a sociedade fosse realmente inclusiva. 

E ainda romantizam a pobreza, para que os pobres se sintam orgulhosos em manter tudo como está. 

"Feliz Natal pra todos, Feliz Natal".

Sunday, August 18, 2024

PARA SER GAROTO

"Você tem que ser maduro. Tem que ser adulto. Agir conforme a sua idade. Se manca! Não seja ridículo!"

Eu não. Nunca fui adulto direito. Tive e tenho todas as responsabilidades, pesos, decepções, angústias e aflições inerentes à vida adulta, mas sinceramente nunca foi a minha. 

Sempre quis ser garoto. De certa forma, continuo assim, embora minha vida adulta seja tão precária, arriscada e precisando de muitos cuidados. 

Eu queria ser sempre garoto pra jogar bola na praia escura de noite, jogando na intuição da areia deserta.

E claro, poder ter pai e mãe, mesmo com todos os problemas que tínhamos para sobreviver. Só em tê-los por perto seria maravilhoso. 

Ainda me sinto garoto quando posso ver desenhos animados, ou rever alguma série antiga no YouTube. Garoto para sentir falta dos meus cinemas de rua, todos mortos agora. 

Longe de ser fácil, minha vida tinha futuro quando garoto e isso faz toda a diferença. Havia muito a ser feito. Continua havendo, o problema é que a ampulheta já derrubou muita areia. Bom, sigamos com as armas possíveis. 

Ser garoto em Copacabana era diferente de tudo, incomum, mas ao mesmo tempo normal demais. Eu perseguia as ruas sem nenhum tostão, decorava os nomes das ruas, dos prédios, das garotas bonitas de cada quadra. Andava muitas vezes sozinho. Espiava lojas antigas, imaginando quanta gente havia passado por ali. 

Boa parte do meu tempo de garoto e adolescente foi vivido numa casa, a do meu amigo Fred. A ele devo o aprofundamento do meu gosto musical. Ele comprava muitos LPs e ouvíamos - deve ser estranho explicar aos jovens que os jovens de 40 anos atrás se reuniam para ouvir música. Mais tarde, menos garoto, foi na casa do Luiz que joguei muitos campeonatos de botão e ri bastante.

Garoto, fiz acampamentos escoteiros inesquecíveis. Também assisti shows esplêndidos, dos maiores. Pratiquei esportes, namorei, tive uma vida até boa, ao mesmo tempo que sofria por tanta coisa.

Eu queria pouca coisa na vida. Nunca tive apego a bens, riqueza, cargos ou fama. Eu não estava nem aí para isso. Só queria ter uma pequena casa, algum conforto, livros, discos e refrigerante. Bermudas grandes e chinelos bem grandes. Meus botões, melhor lembrança que tenho da infância, quase todos dados pela minha amada mãe. 

Garoto, eu ainda vejo o mundo de forma menos destrutiva. Ainda acredito na amizade, no amor e em bons sentimentos. Que pessoas que cometeram erros terríveis podem se reabilitar. Acredito que o ódio é estúpido e absolutamente inútil, assim como a empáfia e a arrogância. Quero continuar garoto para acreditar que o ser humano ainda é viável e que a vida ainda vale a pena. 

Os que me chamam de imaturo ou boboca não sabem nada de mim. Nunca passaram fome ou outras necessidades, nunca passaram por humilhações diárias nem sabem o que é viver dois anos sem dormir direito por medo. Pessoas maduras que se orgulham de seus tribunais de merda, onde julgam a tudo e a todos, menos a si mesmas. Elas não sabem nada de maturidade, a não ser fazer pose. 

Quero ser garoto para continuar amando os bichos e sabendo que eles são muito mais inteligentes do que imaginamos. 

Ser garoto para acreditar que a paz é possível, assim como viver sem humilhar ou agredir quem quer que seja - coisas absolutamente impossíveis no mundo dos adultos maduros e responsáveis. 

Ser garoto para um dia encontrar essa tal paz, de verdade. Ainda não consegui. 

@pauloandel

Saturday, August 17, 2024

Em algum lugar de 1982

Faz muito tempo, a gente perdeu pro Corinthians num sábado à noite no Maracanã. Era o Torneio dos Campeões. Teve velório na geral de protesto e tudo, eu saí correndo. O Maracanã era minha segunda casa, e eu contava as horas para voltar lá. Fui sozinho. Eu gostava de ir sozinho aos jogos, fato que se repetiu inúmeras vezes. 

Eu era bom jogador de botão. Sem falsa modéstia, jogava pacarai. Então era a minha vingança: se o Flu perdesse, eu tinha que ganhar todos os jogos da semana para compensar. Deixa estar.

O jogo teve pouco público e, por isso, poucos ônibus na saída - não havia metrô. Eu me lembro que aos pés do Viaduto dos Marinheiros o 434 estava bem cheio e apertado. Já devia ser quase meia noite. Estávamos chateados, mas alguns batucavam, outros ouviam a resenha no radinho e alguns até riam. A gente sempre esperava o próximo jogo, o próximo jogo, sempre em frente. 

Quando passamos pela Rua do Riachuelo, teve alguma confusão sem gravidade, algo de gozação. O ônibus ficou parado uns cinco minutos, depois ficou tudo bem. 

Meia hora depois saltei na Siqueira Campos. Estava tudo fechado, com exceção da Bella Blú. Lanchei uma fatia de pizza. O Sniff's já estava sendo lavado, todo mundo tinha se mandado. Fui pra casa. Meus pais já estavam dormindo. Entrei de fininho com zero barulho, tomei banho e fui deitar. Logo seria domingo. Não ia ter Fluminense mas eu sonhava com um bom café e almoço. Lasanha da Torna. Conversa de Arquibancada na TV, depois minha mãe ia ver o Silvio Santos - como ela gostava! 

As coisas não eram assim tão boas, longe disso, mas eu tinha um negócio a meu favor: o tempo. Todo o tempo do mundo. Ele sempre vence, mas na juventude a gente sempre tem chances de virar o jogo. No futebol então, onde tudo pode mudar a cada três dias, imagine. Eu ficava esperando chegar a hora de ir ao Maracanã: juntava moedas, todos os trocos possíveis, era um programa muito barato. 

Bom, desta vez eu não cheguei em casa, porque vi o jogo na TV. São duas da manhã. Estou sozinho e muito longe da juventude. Não há jornais para se comprar neste domingo, nem frios na padaria, nem lasanha da Torna nem nada. Sem pai nem mãe. 

O que sobrou? 

Alguns botões estão perto da TV, uma saudade que me rasga da testa aos pés. 

E o Fluminense, claro, que não pode esperar e já tem uma decisão na próxima terça. Futebol é assim: não se pode esperar.

@p.r.andel

Friday, August 16, 2024

Onde estão os verdadeiros heróis

No dia a dia, o que mais vemos são sobre guerreiros ou heróis. Virou banal. Os verdadeiros heróis são outros. Agora mesmo, seis da manhã, eles estão em trens e ônibus apertados. Os mais sortudos levam uma marmita. A maioria almoça biscoitos. Quando faz 40 graus no Rio, no Camelódromo faz 55 e eles estão debaixo das telhas de amianto - já mudaram? Muitos montam banquinhas na rua para vender miudezas. Outros chegam para render a portaria, outros para fazer a faxina do prédio, muitas vezes sequer cumprimentados pelos respeitáveis condôminos, que se acham riquíssimos com seus carros financiados em 72 prestações. Guerreiros varrendo calçadas, pegando bicicletas alugadas para entregar comidas que nunca podem comprar. Heróis entregando remédios, anunciando frutas nas feiras, dirigindo ônibus calorentos - muitos desenvolvem câncer nos testículos, sabia? Carregando caixas pesadas, ocupando e desocupando grandes e pequenos caminhões que atravessam centenas e centenas de quilômetros pela cidade, estado e um país de gente tão lutadora e sofrida mesmo. 

@p.r.andel 

04:06

linda a foto/ linda você

meu melhor desastre 

linda de viver e morrer

agora tudo é uma foto

e lembranças do aparte

eu tenho uma arma apontada

para meu crânio malvado

e não sei quanto tempo tenho

mas a tua foto/ tão linda foto

me serve de abraço e saudade

um muito obrigado e, claro

uma pena tudo se espatifar 

mesmo que a vida seja assim

[são 04:06, eu estou fudido e desesperado,

vejo The Cure na TV e penso em você 




Wednesday, August 14, 2024

No metrô

Fui pro Parque Lage ver meu amigo e mestre Bigode falando de cinema. Ia de Uber, desisti. Uber sempre demora quando você precisa, então escolhi o metrô e a conexão Botafogo-Jardim Botânico. 

Eu ia lanchar um cachorro quente no Gaúcho, mas o horário ia apertar e decidi por dois churrasquinhos fast food na esquina. Gostoso. Então peguei um 201 e saltei na Carioca três minutos depois. 

O movimento do metrô estava calmo. Pouca gente em pé, o silêncio enorme de ouvidos com fones e mãos nos smartphones. Na Cinelândia entrou uma garota baixinha. Quando a porta do trem fechou, ela explicou que tinha dois filhos e que estava ali oferecendo balas. 

Das trinta ou quarenta pessoas, três se manifestaram: eu, que agradeci a oferta, mais uma senhora e um rapaz que compraram. Eu sempre compro, mesmo quando não gosto, só para fortalecer e nem sou fã de doces, mas estava sem um níquel na carteira. 

O resto olhou como se não fosse nada. Mesmo sem ouvir por causa dos fones, os passageiros sabiam muito bem que se tratava de uma trabalhadora humilde, educada, tendo que driblar até o autoritarismo do metrô para poder trabalhar. 

Aquilo me constrangeu. Eu sei como é ser humilhado. Quantas e quantas vezes gente que se diz minha amiga me humilhou quando precisei de ajuda? Muitas. Mas será que as pessoas não podem ter um mínimo de cortesia com alguém que merece respeito? Precisam mostrar que a pessoa pobre deve ser desprezada. 

A garota começou seu caminho pelos dez vagões acidente, anunciando a oferta em cada um deles. Em silêncio eu torci muito por ela, para que vendesse bastante. Torci como ninguém torce para mim - e olha que estou precisando demais. 

O que será que alimenta esse espírito de porco em parte da nossa população. Reitero: a vida está difícil, quase todos mundo está duro. Ninguém era obrigado a comprar, embora todos saibamos que essa é uma maneira de se ajudar pessoas em grande dificuldade financeira. Mas por que a escrotidão? Fingir que ali não havia uma pessoa falando, trabalhando e, ao  mesmo tempo, pedindo ajuda. De onde vem essa indiferença nojenta? 

Mesmo fora do metrô, já no ônibus vermelhinho a caminho do Parque Lage, pensei na cena. Eu também sou um brasileiro oprimido e humilhado, também já fui tratado com muita indiferença, mas ainda estou sobrevivendo. Lógico, aqueles falsos amigos estão no limbo sem previsão de resgate. Todo mundo que não é rico já foi humilhado. 

Ainda bem que o resto da noite foi legal.

@pauloandel

Sunday, August 11, 2024

meu pai

Eu não falei de meu pai ontem. Seria tanta coisa que daria um livro inteiro. Engraçado que eu vivi 40 anos com ele mas não sabia de várias coisas suas e vice-versa. Porém, sabia o quanto era querido pelos colegas de Saara, que viviam telefonando pra ele. Foi um homem muito trabalhador. Estudou e leu muito. Lutou demais. Sofreu muito também. Fiz o que pude, e acho que foi pouco porque eu sou minúsculo. 

Semanas antes de morrer, ele estava planejando voltar a trabalhar vendendo cachorro quente, bem perto de casa, mesmo em cadeira de rodas. Estávamos perto de viabilizar, mas não deu tempo. Ele amava o Fluminense e é o responsável direto por todo o material que publiquei sobre o clube, perto de 30 livros. Em todos, seu sobrenome está marcado para sempre. 

Não existe dia sem lembranças dele. Eu lembro do passado, de tudo, do bolo de livros que ficavam à minha mão para que eu os rabiscasse. Ele nunca censurou nada. Me deu milhares de jornais e revistas para ler. Eu sou um produto direto do que ele fez, nem sei se planejadamente mas isso pouco importa. 

Meu pai foi uma boa pessoa. Isso é mais importante do que tudo. Mesmo que eu parasse agora, minha homenagem a ele está celebrada.

Friday, August 09, 2024

Abraço

Meia hora depois da tragédia de Vinhedo, desci para ir ao banco, a 100 metros de casa. Devastado pelo acontecimento, caminhei até a faixa de pedestres e, do outro lado, vi uma cena que deveria ser simples e corriqueira, mas não é. 

Emcontraram-se dois jovens, uma garota de cabelo chanel preto e talvez 1,60m, mais um rapaz alto, talvez 1,80m, negro com elegante corte black.

Pararam, olharam um para o outro e riram. Imediatamente trocaram um abraço apertado de uns dez segundos e se despediram, praticamente sem palavras. Cada um foi para um lado. 

A vida deveria ser sempre assim, um abraço. Abraçar as pessoas queridas, camaradas, os amores, crushs, todo mundo. O abraço deveria ocupar o lugar do ódio. 

Ganhei outra esmolinha de alegria, atravessei a rua, lembrei de alguns abraços eternos e fui para o banco. Continuei devastado, mas pelo menos aquele abraço dos dois jovens pingou uma pontinha de esperança num horizonte perdido. 

@p.r.andel

Thursday, August 08, 2024

A última grande canção de Copacabana

Eu sou a última grande canção de Copacabana, sem nenhum sucesso porque ninguém tem mais tempo para ouvir música - o máximo que fazem é enfiar aqueles malditos fones nos ouvidos para não terem que cumprimentar ninguém - e espantar pedintes. E pouco me interessa se vão me escutar ou não, pois não tenho compromisso com os ouvidos alheios, apenas com meu próprio som.

Eu sou a última grande canção de Copacabana e, por isso, falo de amor e morte, de solidão e festas, de pudor e sacanagem, tudo devidamente misturado on the rocks para todos os nossos cidadãos: caretas, moderninhos, bichonas, piranhudas, sapatões sensacionais, respeitáveis senhores e senhoras, gente abastada e humildes, bandidos sem vocação criminosa, nerds e o resto da quadrilha. 

Tenho fome e sede. Passo fome. Não tenho ninguém. Todos os meus amigos e parentes já morreram. Eu sou uma sobrevivência estranha, na verdade inusitada. Se eu desaparecer agora, ninguém vai me procurar nos hospitais e velórios. Tenho dores. Eu rasgo a alma. 

Os meus versos querem falar dos jovens mas eu sou velho coroco, fim de linha, mas não posso afirmar que estas serão as últimas linhas de minha vida - só sei dizer que sou a última grande canção de Copacabana e uma coisa é certa: ninguém vai me escutar, me cantar, me celebrar... Eu não tenho apreço por ninguém e nem preciso de recíproca, por favor. Dane-se a audiência, eu não preciso de likes!

Li 9õ

[Le Meridien quando acende celebra nosso amor inútil 

[Nunca tive amigos, no máximo admiradores

Aquele cheio de Atlântico Sul me impregna as vísceras desde sempre. Ainda somos os mesmos, os mesmos rapazes, cheios de vaidade e sonhos na banguela. 

Descansemos sem paz.

Batatinha frita

Perto da praça Tiradentes comprei um pacote de batatinha frita raiz. Três e pouco. Nem estava com fome, era para o lanchinho de mais tarde. 

Basta pegar o pequeno pacote plástico e vem tanta coisa à mente. 

A primeira: o Maracanã. Aquele outro, do povo, não o atual. Faz muito tempo. A gente chegava cedo para o jogo e ia na lanchonete. Não havia muitas opções. Misto frio (o presunto, grrrr) e queijo frio, os dois com pão de forma. E batatinha frita Guri, que fazia sucesso nos anos 1970 e 80 mas não sei onde foi parar. 

Mais Maracanã: quando a gente vinha de Copacabana para o jogo ou para a UERJ no ônibus 435, ele saía do túnel Santa Bárbara e dava a volta no Catumbi - ainda faz isso. Passou do cemitério, era literalmente batata: lá estava a fábrica de batata frita Popular que, segundo meu amigo Scalercio, sobrevive bravamente até hoje, o que é uma tremenda vitória diante dos gigantes das grandes marcas, com seus pacotões enormes, grandes propagandas mas sem um décimo de charme da batata frita Guri ou Popular. 

Muita coisa me aconteceu a caminho do Maracanã porque amo futebol - mesmo sabendo bem de todas as suas mazelas - e fiz muito esse caminho de Copacabana até a UERJ, desde criança. Passei a ir aos jogos com regularidade em 1978 e, dez anos depois, consegui me tornar calouro da universidade querida. O percurso durou até 1993 para a faculdade, quando fui expulso de Copacabana e me abriguei no Centro. A faculdade durou até 1994. Trinta anos, rapaz! O tempo sempre vence. 

Vou ao Maracanã até hoje, menos do que gostaria, mas o percurso é bem mais curto. Sinceramente, eu preferia o antigo, onde meu olhar de criança e adolescente prevalecia sobre as coisas. Agora, perto dos 60, é tudo bem diferente. Ainda existe a emoção do futebol, claro. A da UERJ também. Lá vivi bons momentos de minha vida. Trouxe poucos amigos, mas é normal - viver é diáspora. 

Em Copacabana tinha uma batata frita maravilhosa, não em pacotinhos, mas feita na hora. Ficava na Sorveteria Bolonha, esquina de Barata Ribeiro com Constante Ramos. Tudo ali era gostoso, a batata frita botava o Bob's e o Gordon no chinelo. A loja sobreviveu à ditadura, golpes, crises econômicas, a carestia, tudo, mas a pandemia lhe deu um golpe fatal. Eu era um garoto feliz às vezes quando lanchava na Bolonha. Ela acabou, eu fiquei aqui falando sozinho diante de todo mundo, assim como disse mestre Ivan Lessa em uma de suas  crônicas inesquecíveis. 

O tempo sempre vence.

Sunday, August 04, 2024

20 para as 5 (manhãzinha)

Acabou a noite. Os últimos boêmios começam a se recolher da Lapa, deixando para trás os amores que deram certo ou errado.

Os bêbados tristes percebem o ápice da melancolia. Chegou a hora.

As últimas travestis tomam o rumo de suas casas escondidas, que quase ninguém conhece. 

O domingo se mostra em tímidos raios de sol. 

Marina, prestes a deixar o trabalho e fazer uma longa jornada.

Eu dormi muito mal, mas não faz diferença. Vai custar alguns anos de vida, o que não chega a ser um desastre. Eu sempre durmo mslz

O silêncio é uma pátria. 

Quase cochilo em cima de meu braço esquerdo, sem sucesso, felizmente. 

Num breve sonho proibido, soquei - de verdade - uma pilha de 100 CDs na cabeceira da cama , que se espatifaram no chão. Ainda preciso resgatar algum sobrevivente debaixo da cama.

É domingo. É manhãzinha. Todo amor dorme. 

Tenho fome. O Pampeiro está longe, longe. 

Na verdade estou cansado. Bem cansado. Mesmo sem ter saído de casa, porque o stress e a depressão cansam demais. Ok, eu poderia tomar um banho, descer e fazer uma caminhada aprazível, mas tudo é longe e caro de corpo e alma. 

Poderia dar uma bela volta na Lagoa ou na praia imortal de Copacabana. Quem sabe noutro dia? De toda forma, não devo me iludir: eu não vou encontrar ninguém que procuro nesses lugares. 

O amor dorme. 

Há muito tempo, esta seria uma hora especial: meu pai me daria dinheiro e diria "Vá comprar o café e o jornal". Pão, leite, queijo, presunto, pão de queijo, O Dia, O Globo, Jornal do Brasil, Jornal dos Shorts, Estadão e Folha. Tenho saudades disso, irreparáveis. Durou uns oito anos, mas valeu por cinquenta. 

Às vezes escrevo em jornais. Na verdade, escrevo desde 1993 por razões profissionais, mas até hoje me perguntam como faço isso se não sou jornalista formado. Deve ser porque o texto é bom.

Ao longe, bem longe, late um cachorro. Um ônibus corta o silêncio, embarcado por vários lapeiros decretando o fim da night à luz do dia. 

O meu Fluminense vai jogar no Maracanã, mas hoje não vou. Vai gente demais, e cada vez mais os lugares cheios me repelem. Não era assim antes, mas mudou. O mundo muda. De toda forma, tenho feito coisas relevantes sobre o Fluminense há 12 anos, reconhecidas por milhares de outros torcedores, com exceção de meia-dúzia de idiotas do clube. Odracir. 

O mundo é outro. Todos querem festa, eu só preciso descansar em paz.

Todo amor dorme. Só. Só.

@p.r.andel

Saturday, August 03, 2024

A seta e o alvo

Eu falo de amor à vida, você de medo da morte

Eu falo da força do acaso e você, de azar ou sorte

Eu ando num labirinto e você, numa estrada em linha reta

Te chamo pra festa mas você só quer atingir sua meta

Sua meta é a seta no alvo

Mas o alvo, na certa não te espera

Eu olho pro infinito e você, de óculos escuros

Eu digo: "Te amo" e você só acredita quando eu juro

Eu lanço minha alma no espaço, você pisa os pés na terra

Eu experimento o futuro e você só lamenta não ser o que era

E o que era? Era a seta no alvo

Mas o alvo, na certa não te espera

Eu grito por liberdade, você deixa a porta se fechar

Eu quero saber a verdade, e você se preocupa em não se machucar

Eu corro todos os riscos, você diz que não tem mais vontade

Eu me ofereço inteiro, e você se satisfaz com metade

É a meta de uma seta no alvo

Mas o alvo, na certa não te espera

Então me diz qual é a graça

De já saber o fim da estrada

Quando se parte rumo ao nada?

Sempre a meta de uma seta no alvo

Mas o alvo, na certa não te espera

Então me diz qual é a graça

De já saber o fim da estrada

Quando se parte rumo ao nada


Compositores: Paulo Correa De Araujo / Nilo Romero

Thursday, August 01, 2024

MEIA NOITE NO BRASIL

Há um silêncio enorme, mas se compreende: por aqui não há fuzis disparando e humilhando as pessoas. No máximo um ou outro ônibus do início da madrugada. 

É meia noite no Brasil, e tusso como se estivesse à beira da morte - eu gostaria, mas ainda tenho coisas a fazer. Não posso morrer agora, tenho muitas dívidas. 

Meu amor dorme, como diz uma canção. Mas ele também está espatifado feito o crânio de uma vítima das incursões policiais.   

Meia noite no Brasil e as Olimpíadas nos dão alegrias, com jovens que lutaram muito para estar lá. Eu provo um punhado de alegria, mas logo volto ao normal porque a tristeza é meu oxigênio. 

[Meu amor dorme ao relento, abandonado numa calçada de uma cidade que despreza e humilha seus habitantes - eu também sou muito humilhado.

Meia noite no Brasil e daqui a pouco um monte de gente lutadora estará de pé, para intermináveis jornadas de trem ou ônibus até o trabalho - e lembro de quando eu era pobre mas tinha direito de cursar uma faculdade pública, com garotos e garotas pobres que hoje desprezam suas origens e namoram Miami - oh, cafonice explícita, Senhor! 

[Meu amor está na beira de uma janela, pensando em cair para sempre e adormecer sua dor - mas isso não deixa mais pessoas tristes? 

O silêncio da madrugada contrasta a ardência das minhas pernas, enquanto sonho coisas que não quero mais dizer, já que são desprezadas por todos. Sim, nós vivemos a era do desprezo e nossos quadros mais hipócritas têm sempre respostas a respeito na ponta da língua. É uma maneira de relaxar a própria escrotidão. 

Meu amor tem os olhos arregalados de medo porque vê o subsolo da cidade e sabe do sufoco que se trata. 

É certo que na Graça Aranha um papelão grande serve de colchão para uma família inteira sem perspectivas, sem ordem nem progresso - são apátridas, odiados por alguns transeuntes, ignorados por terninhos e tailleurs. Não há bolas de ferro nem chicotes nas calçadas, mas todo mundo sabe que, jogados à própria sorte, há muito mais gente preta do que qualquer outra coisa. Os escravos do capitalismo são descendentes dos escravos do colonialismo.

[Meu amor dorme em 1984 ou 1995, tanto faz. Tudo é distância irrecuperável. 

Uma solitária motocicleta ronca ao cruzar a Cruz Vermelha. Eu não tenho com quem brincar, voltar a ser criança por um instante, então brinco sozinho e aposto comigo mesmo quando passará uma outra moto. 

Eu tenho dores. Muitas dores, há muito tempo, e as carrego como uma mochila pesada - às vezes me alivio.

E acho graça das pessoas falsas que me livrei nos últimos anos. É divertido vê-las como se fossem pessoas muito importantes, porque é assim que posam em público, mas sabendo que tudo é farsa e patética aparência. Alguma coisa precisa ter graça. Algumas. 

É meia noite no Brasil e minha tosse incessante disfarça meu choro que, cá entre nós, não incomoda ninguém. As pessoas não estão nem aí para isso, pois. 

[Quando der uma da manhã, eu morro e renasço na hora do café. Qualquer dia eu volto. 



Honestamente

A não ser que você tenha uma trajetória e experiência de vida muito rara, riquíssima e plural, com ampla formação geral e profundamente enriquecida por convívios intelectuais e trocas sociais com seres absolutamente brilhantes, o fato de você bostejar certezas plenas sobre todos os assuntos possíveis só te reservará um único papel diante do próximo: o de consagrado idiota. 

Conveniência

O fato é que nos apaixonamos pelos bichos por conta de seus olhares tristes, que nos remetem à infância de alguma forma. 

É justa e merecida a paixão pelos bichos. 

No entanto, quando o mesmo olhar triste e distante está em rostos humanos, oferecemos tão somente indiferença, até mesmo desprezo. 

Obrigado, Paquetá

Paquetá é diferente de tudo. Parece o que parte do Rio foi nos anos 1940 e 50: as pessoas se cumprimentam nas ruas, existe paz - sem carros - e os cachorros andam tranquilos sem coleira. Quando você pega a barca, os passageiros se abraçam.

É uma terra de pouquíssima gente, três ou quatro mil pessoas. De lá, falam que às vezes vêm ao "continente". Então meu amigo Kleber ia para o trabalho e marcamos um almoço. Só a viagem de barca já é um calmante. Rimos, conversamos sobre problemas e a vida, comemos, celebramos. Pegamos a barca de uma e pouca, voltei na de quatro e meia. Deu tempo de conhecer a maravilhosa loja de doces do Elias - uma bomba maravilhosa, espero voltar lá na semana que vem. Vascaíno gente boa e vestido de Museu da Pelada, papo excelente.

Em Paquetá dificilmente as fotos não saem boas, porque a todo momento você fotografa o tempo e o passado. Tudo é vintage de alguma forma, melhor assim. 

Kleber foi para a festa da escola, voltei na barca vazia. Pela janela, os mistérios das embarcações ora ativas, ora paradas na baía de Guanabara, até abandonadas. A janela em gris e os mistérios. Viajar sozinho é diferente, você não conversa, fica observando as coisas. Gosto de um senhor que vende biscoito Globo na embarcação: humilde, bem vestido, ele passa os cinquenta minutos oferecendo seu produto e conversando com os passageiros - conhece todos, menos eu. Cinco da tarde, ali está um senhor com setenta anos ou mais, lutando dignamente pela sobrevivência e, quando o vejo, recordo quanta gente estúpida e grosseira com quem convivi por quase trinta anos no mundo corporativo - gente estúpida de todo o Brasil. Nenhum daqueles têm a elegância do vendedor. Nenhum. Ele faz questão de ser simpático, de tratar bem as pessoas e esse talvez seja um dos bens mais preciosos em tempos de tanta escrotidão e indiferença. 

Passo por baixo da ponte Rio-Niterói e ainda me espanto com o gigantismo das vigas. Uma obra esplêndida, mas que custou a vida de muitas pessoas durante a construção. Às vezes passamos pelos lugares e não reparamos a luta que tanta gente boa e simples fez para que o cenário existisse. Depois da ponte, o belo passeio fica igualzinho ao de Niterói x Rio, que conheço bastante. Está acabando, que pena. 

No desembarque, ainda tive um golpe de sorte. Saltei bem no corredor onde fica a casa lotérica e fui marcar meu cartão da lotofácil. No caixa, escuto a voz de um homem aliviado por encontrar o telefone e outras coisas que havia esquecido. Quando vejo, é meu velho amigo Falcão, dos tempos da UERJ, que não via há anos. Deu tempo de bater um papo, prometer um chope, falar da vida. Ele foi para Niterói, eu cortei a praça XV e resolvi ir a pé até o Gaúcho para comer um sanduíche. Estava escuro e frio, mas pelo menos a rua da Assembleia estava cheia de passageiros esperando seus ônibus para a Zona Oeste. 

O Gaúcho, esquina de São José com Rodrigo Silva, minha rua eterna por causa do escotismo. O bar é de 1941, tem sanduíches baratos espetaculares, todo mundo bebe em pé. Muitos flamenguistas se aquecendo para pegar o metrô rumo ao Maracanã. Eu, com meu bloco do eu sozinho, meu copo de mate da casa, certa melancolia de inverno e a certeza de que, diante de uma vida dura e detestável, finalmente tive uma tarde de paz - ou de cessar fogo, que parece mais adequado para o que chamam de tempos modernos. Obrigado, Paquetá.