Às vezes peço comida pelo aplicativo. Um ou outro jantar, um ou outro almoço, o lanche. Em mais de mil pedidos, a rigor só tive dois problemas: um rapaz negacionista em plena pandemia que veio me entregar cinco pedidos sem máscara, e outro que abriu a minha comida para ver algo indevidamente, então cancelei o pedido. O negacionista fez cara feia porque lhe dei um esporro. Espero que tenha refletido.
Dois por mil são 0,2%. O resto tem sido de uma tranquilidade enorme. É muita coisa positiva num país onde pessoas matam por causa de um simples esbarrão.
Sempre que posso, dou gorjeta. Eu também sou pobre, mas meus trabalhos são infinitamente mais confortáveis do que o dos entregadores.
Em geral eles estão sempre com o semblante de cansaço, que é inevitável. A maioria é magrinha. Fico pensando nos trabalhadores esfomeados carregando tudo que não podem comer. Isso me rói. E se eu não pedir, eles não recebem nada. O sistema é de uma crueldade afiada.
Você já reparou os perfis das pessoas que entregam pelo iPhood? Volta e meia fico vendo. Tanta gente honesta, na batalha por uma migalha feito eu.
Recomendo para todo mundo. Às vezes a gente acha - com razão - que a humanidade está perdida, que todos são ruins e cruéis, mas ainda tem gente com bondade no coração. Talvez seja pouco para mudar o mundo, mas nos ajuda a ter sentimentos melhores.
"Meu sonho é ajudar minha família", "Um dia eu vou ter uma casinha pra mim", "Meu filho é meu mundo". São essas e muitas outras frases com o melhor da essência humana.
Nos piores anos da minha vida - e talvez os últimos, nunca se sabe -, tenho vivido grandes experiências humanas, sendo as melhores uma espécie de resposta.
Você vai contabilizando todas as perdas e danos, todas as decepções e traições, toda a ingratidão, toda a falsidade que pode existir por trás de palavras como "amor" e principalmente "amizade", até que encontra o amor e a fraternidade em frases simples, escritas até de maneira rudimentar mas nem por isso menos importantes e significativas.
O amor, a fraternidade, o bem querer que não estão em cardápios sofisticados, nem bancos de carros luxuosos ou no mármore de riquíssimas coberturas, mas em simples perfis anônimos de gente que dá muito duro para sobreviver e fazer com que os seus sobrevivam.