Saturday, June 29, 2024

Lições via Ifood

Às vezes peço comida pelo aplicativo. Um ou outro jantar, um ou outro almoço, o lanche. Em mais de mil pedidos, a rigor só tive dois problemas: um rapaz negacionista em plena pandemia que veio me entregar cinco pedidos sem máscara, e outro que abriu a minha comida para ver algo indevidamente, então cancelei o pedido. O negacionista fez cara feia porque lhe dei um esporro. Espero que tenha refletido. 

Dois por mil são 0,2%. O resto tem sido de uma tranquilidade enorme. É muita coisa positiva num país onde pessoas matam por causa de um simples esbarrão. 

Sempre que posso, dou gorjeta. Eu também sou pobre, mas meus trabalhos são infinitamente mais confortáveis do que o dos entregadores. 

Em geral eles estão sempre com o semblante de cansaço, que é inevitável. A maioria é magrinha. Fico pensando nos trabalhadores esfomeados carregando tudo que não podem comer. Isso me rói. E se eu não pedir, eles não recebem nada. O sistema é de uma crueldade afiada. 

Você já reparou os perfis das pessoas que entregam pelo iPhood? Volta e meia fico vendo. Tanta gente honesta, na batalha por uma migalha feito eu. 

Recomendo para todo mundo. Às vezes a gente acha - com razão - que a humanidade está perdida, que todos são ruins e cruéis, mas ainda tem gente com bondade no coração. Talvez seja pouco para mudar o mundo, mas nos ajuda a ter sentimentos melhores. 

"Meu sonho é ajudar minha família", "Um dia eu vou ter uma casinha pra mim", "Meu filho é meu mundo". São essas e muitas outras frases com o melhor da essência humana. 

Nos piores anos da minha vida - e talvez os últimos, nunca se sabe -, tenho vivido grandes experiências humanas, sendo as melhores uma espécie de resposta. 

Você vai contabilizando todas as perdas e danos, todas as decepções e traições, toda a ingratidão, toda a falsidade que pode existir por trás de palavras como "amor" e principalmente "amizade", até que encontra o amor e a fraternidade em frases simples, escritas até de maneira rudimentar mas nem por isso menos importantes e significativas. 

O amor, a fraternidade, o bem querer que não estão em cardápios sofisticados, nem bancos de carros luxuosos ou no mármore de riquíssimas coberturas, mas em simples perfis anônimos de gente que dá muito duro para sobreviver e fazer com que os seus sobrevivam.

Wednesday, June 26, 2024

Biscoito recheado

Todo dia tem alguém falando mal do biscoito recheado na TV. 

É um alimento maldito, que faz mal à saúde, que cria uma legião de obesos - o pessoal jura que se preocupa com a qualidade de vida da rapaziada, mas tem uma cara de gordofobia... -, um inferno. Ok, faz mal, é um alimento multiprocessado (como tantos outros) etc. 

Bom, acontece o seguinte: o Brasil é um país onde você tem como uma das únicas diversões a TV. A maior parte da população é muito pobre, e passa os dias vendo o massacre do biscoito recheado. Essa mesma população muitas vezes trabalha longe de casa, leva horas no trânsito, ganha mal, trabalha em condições precárias e, por fim, dificilmente tem um almoço que atenda suas necessidades. O que o pessoal acaba fazendo? Lanchando no fim do expediente, entre a saída do trampo e a chegada ao ponto de ônibus ou estação de trem. Lanchando biscoito recheado. 

Agro é pop. Agro é Globo. Agro é tudo. A mesma televisão que massacra, com relativa justiça, o biscoito recheado faz a digna ode a frutas e legumes, muito mais saudáveis (não pensemos nos agrotóxicos) e convidativas. Com as frutas, todos seremos esbeltos, acabará a maldita gordura per capita do brasileiro e a felicidade será abundante. 

O problema é que aquele mesmo trabalhador oprimido, que vê seu almoço ser esculachado na TV diariamente, e come biscoito recheado porque não tem alternativa, vê as lindas frutas mas constata que seu minúsculo salário não lhe permite comprá-las, porque qualquer lote ou meia dúzia de peças custa o dobro ou o triplo do biscoito recheado. 

Pobre do pobre trabalhador que não trair o biscoito recheado: será um relapso, um gordo sem força de vontade, jamais como uma vítima dessa porra de sistema que só serve para humilhar, massacrar e frustrar.

Sunday, June 23, 2024

É fácil prever o futuro breve

Duas da manhã. Daqui a pouco começa uma nova semana, daqui a pouquinho.

Lá longe, o pessoal já começa a se levantar. Ligam a TV e teremos pastores pedindo dinheiro em nome de Deus. Quem pode, faz uma marmita. Quem não pode, jantará biscoitos recheados populares. 

Teremos crimes, diversos. Algum inocente será morto num confronto policial. Teremos assaltos, tiros e ódio.

A SuperVia dará alguma pane. 

Vai faltar água em algum bairro carioca. 

As autoridades vão discutir o que nunca resolvem.

Veremos muito desprezo, indiferença e falta de empatia, principalmente daqueles que dizem ter tanta empatia...

É tudo previsível demais.

Wednesday, June 12, 2024

Ray

São três e meia da manhã, ou madrugada - ou qualquer coisa - enquanto meu peito explode e na TV há um furacão chamado Ray Charles. É um show, as pessoas aplaudem com entusiasmo, uma big band excelente acompanha o monstro da voz e ele não deixa pedra sobre pedra. Ray Charles está morto mas deixou lembranças vivas demais. Meus pais o adoravam e eu ouvi desde criança. Ah, meus pais inesquecíveis, completamente mortos e desconhecidos - mas me lembro deles sempre. Eu lembro da capa de um disco de Ray Charles quando nós morávamos na rua Santa Clara, há 50 anos, em 1974 - tudo agora faz 50 anos, tudo é breve. São três horas da manhã, três e meia, e preciso escrever algumas coisas para dormir. Há uma melancolia na madrugada quando vem chegando a quinta feira e a sexta a seguir - não era assim na minha juventude, claro, porque os jovens amam as sextas-feiras, virar a madrugada etc mas há tempos não sou disso - gosto de ver TV, falar com os colegas e namorar no WhatsApp. Eu gostava de acampar e ver o mar em dias nublados. Eu gostava de correr, voltar para casa, tomar uma ducha gelada e me sentir energizado - no começo da UERJ todo mundo estava cheio de sono e eu disparava a 100 quilômetros por hora. Faz muito tempo. De lá pra cá são trinta e tantos anos, muitos desapareceram, muita gente está morta. Eu deveria estar morrendo, mas vejo meus amigos de 70 e 80 anos cheios de saúde, fico pensando se terei sorte e permanecer por aqui - isso é sorte? Consegui um pouco. Ray Charles continua um trovão.