Monday, October 30, 2023

Histórias reais

UM


Não sei que diabos me deu. De vez em quando eu tenho sonhos muito doidos, mas dessa vez exagerei. Sonhei com uma ex-colega de trabalho que foi extremamente cretina comigo. Do nada estávamos numa sala, quando ela vem, me abraça e começa a me beijar demorada e loucamente. Algo impossível. De onde tiramos essas loucuras que se tornam sonhos, cheios de detalhes? 


DOIS


Estamos eu e Josemar ouvindo música no sebo, não entra cliente algum, ficamos bastante irritados, mas aí surgiu um assunto de quase todos os dias. Ou  melhor: de todos os dias. Fluminense. Fluminense. A gente não consegue parar de pensar no Fluminense, a gente faz as contas da loja pensando no Fluminense, a gente ouve algum artista tocando e lembra do Fluminense. Tudo é Libertadores. Então coloco no CD player uma coletânea de Joe Cocker. 


De cara vem "With a little help from my friends", demolidora. É um estouro desde que Cocker incendiou o Festival de Woodstock e mudou a vida de milhões de seres humanos. Tive sorte: pude ver Joe Cocker ao vivo no Maracanã em 1991 no Rock in Rio. Depois teve um super show de Prince, que subiu ao palco com horas de atraso e um gigantesco coro de "vi-a-do". 


Voltando a Cocker, sua versão para "With a little help" é de atravessar a alma. Uma experiência sonora da qual ninguém sai imune. Ali tem algo muito profundo que reúne rock, soul, blues, jazz, gospel e a atitude de um artista único. 


TRÊS


Andando na rua, carregando minhas pequenas e humildes comprinhas, de repente aparecem duas jovens amigas travestis, conversando alegremente pela calçada. Quando chegam perto, uma delas diz "Esse gordinho é bom". A outra ri, eu finjo que está tudo bem e sigo em frente.  E aí fico pensando que que eu fiz para merecer isso aos 55 anos de idade, com minha bermuda velha e meu pai de chinelões em frente à nova Petrobras, onde trabalha um dos próceres da cidade, Wagner Victer, provavelmente perto de vários ex-colegas dos tempos de faculdade que nunca mais verei - e é melhor assim mesmo.


QUATRO


Depois de sair do sebo, tenho a ilusão de um sonho bom, procurando por um mundo novo que já não existe.  Agora é caminhar por menos de um quilômetro, fitando lojas fechadas, procurando por imagens desaparecidas e pessoas idas.


Na segunda-feira a rua do Lavradio quase não existe. Tudo fechado. Desolação. Até o pessoal que passa apressado com seu almoço de biscoitos não está pela área. 


No meio do caminho tem uma bandeira do Fluminense, pendurada numa janela de alumínio na Henrique Valadares. O bar ao lado está cheio de flamenguistas preparando um churrasco e, claro, secando o Fluminense desde já. Mas não vai adiantar. 


Senhor, tende piedade de nós, tricolores, no próximo sábado. 


CINCO


Perto da esquina da Ubaldino do Amaral, uma garota muito bonita passa com seu cachorrinho salsicha, fazendo uma bela composição de cenário. 


A garota é bonita, muito bonita e me lembra de outra muito bela, que conheci há vários anos e que perdi contato. 


A vida é assim: amizades, admirações e amores que vão escorrendo pelo ralo. 


Monday, October 16, 2023

Nos arredores do Castelo

CAMINHANDO pelo meu pequeno e desimportante mundo, lembrando de tanta coisa que passou e plenamente destemido, apesar de ter uma pistola apontada para a minha cabeça 24 horas. 

Eu ando com meu par de chinelos confortáveis que comprei no Mercado Livre, e olho para os grandes prédios com a mesma admiração de criança. Olho para o prédio do Consulado da Itália e lembro de um pesadelo que tive justamente dali, me suicidando mas caindo em câmera lenta e acordando molhado de suor. Isso tem muitos anos mas nunca me esqueci, porque foi um pesadelo com final feliz. Feliz? É, eu me salvei. Não sei se foi realmente feliz, mas escapar da morte é uns vitória, acho. 

A grande avenida com poucos carros, quase nenhum, mas todos apressados porque ninguém quer perder um segundo que seja.

Na calçada, sempre tem gente morrendo a prazo e isso é devastador, mas ninguém liga e fica por isso mesmo. A regra é a desumanidade. O outro que se dane. Fico triste em lembrar de um colega que me parece tão desumano agora. Bom, a maioria é assim. 

Perto do grande prédio da Academia, a bela estátua do poeta Manuel Bandeira, muito parecida com o original. Perto dele, Joaquim Nabuco. 

Uma garotinha vendendo balas pra ninguém, provavelmente longe de todos os seus sonhos e tenho vontade de desistir, porque nasci no país do futuro que nunca chega e estou morrendo completamente distante de tudo que sonhei para mim, bem como para a coletividade. Crianças deveriam estar brincando, lanchando, descansando, estudando e vivendo a melhor época de suas vidas, logo está tudo errado. 

Eu não preciso olhar para o Whatsapp porque não tem mensagem alguma. Sou eu caminhando pelos restos mortais da glória da cidade, com uma pistola apontada para a minha cabeça e tentando respirar, enquanto olho à distância para a Santa Casa. Eu me sinto tão derrotado que poderia serrar ali mesmo e chorar até morrer. 

Eu ando pelo mundo e choro, e daí? Por que não posso ser diferente dos lacradores, dos senhores com peito de pombo? Por que não posso dizer e sentir o que realmente sinto, se ninguém vive essa vida miserável e deprimente no meu lugar? A minha vida não é o meu lugar de fala, ora? Eu estou tripudiando de quem vive uma vida de aparências e mentiras? Não. Posso me sentir infeliz em paz. 

Aí o Fluminense. Todos estão sonhando com um ingresso para a decisão. Eu estou tranquilo: quem tem uma arma apontada para a cabeça 24 horas tem outras prioridades. Eu queria estar lá mas já vi muito. Edinho, Assis, Romerito, Renato, Magno Alves, Antônio Carlos, Sheik... Já vi muita coisa e já escrevi demais. O Fluminense talvez seja o nosso único amigo, de nós tricolores. A gente pensa nele, sonha com ele, quer o melhor para ele. Sem o Fluminense, o que teria sido de mim? Quantos e quantos dias ele não me deu sentido à vida, alegria e bem estar? Eu lembro dos campeões da Taça Rio de 1990, mas ninguém liga porque agora só a Libertadores interessa. Futebol é bom demais, só o esnoba quem é muito, mas muito ignorante. O futebol já salvou minha vida e a de muita, muita gente. Já evitou muitos suicídios e adiou as famosas últimas palavras em leitos de despedida. Mesmo com todos os seus problemas, o futebol foi um dos únicos ambientes onde vivi momentos verdadeiramente felizes. Eu ainda me lembro dos garotinhos descalços na porta do Maracanã, sonhando em entrar no estádio, até que pessoas como meu pai vinham com quatro ou cinco ingressos e os garotos viravam foguetes em direção à lua, de tão felizes. Subiam a rampa cantando e rindo. Que momento!

Eu ando pelo mundo, tenho sessenta anos de vida e dez de sentimento. Eu ainda penso em brinquedos, lancheira e desenho animado. Meu espírito não se encaixa em meu corpo: um garoto que sonha com o futuro ocupando o corpo de um homem idoso. E ser criança é a única chance de afastar a pistola apontada para a minha cabeça. 

Na esquina, está minha lanchonete favorita da infância. Estava. Ela acabou. Faliu. Há uma grande faixa de "aluga-se" mas nada será alugado mesmo. A cidade é cheia de anúncios e cartazes, e cheia de gente dando adeus. Aluga-se o mundo, quem tem dinheiro? 

Caminhando sem canto, com medo, sem esperança, sem amigos, sem pai nem mãe mas ainda igualzinho a quando tinha sete ou oito anos de idade, olhando os prédios e as pessoas com curiosidade e empatia, sem receber nada além da indiferença em troca - não nos esqueçamos, esta é a sociedade do descaso, do desprezo, do descompasso entre discursos e ações. Esta é a sociedade da hipocrisia, onde a solidariedade, se muito, surge nas condolências e às vezes sequer isso. É a sociedade que absolve qualquer canalha na hora da morte, mas humilha e deprime pessoas honestas por toda uma vida. É a sociedade da falsidade e da bajulação acima de tudo. 

Depois do almoço, dois quilômetros depois, espias o deserto da Praça Tiradentes. Há um clima de desolação, exceto na nova loja de empréstimo pessoal - claro, o dono sabe que terá lucro máximo explorando gente pobre. As pessoas vão se humilhar. A vida é assim.

Aluga-se. Vende-se. Não há vagas. Tanto faz se é noite ou dia, exceto pela chuva e saber que, a cada manhã, a Supervia humilha e ridiculariza centenas de milhares de cariocas. Ninguém liga. 

Falei de ontem e hoje. A noite passou. Mais um dia, mais um cumprimento de pena para milhões de pessoas. Numa cidade esvaziada, a chuva ajuda a detonar de vez o movimento das ruas.

@p.r.andel

Sunday, October 15, 2023

Uma grande farsa

A Terra nunca será o que muitos esperam. Ela é dominada pelo ser humano, uma de suas espécies mais atrasadas. Dotado de vícios abomináveis como o egoísmo, a ganância, a falsidade, o desprezo e a indiferença para com o próximo, o ser humano tem a vocação para manter tudo como está e, consequentemente, manter toda a porcaria aí como está. 

No fim, tudo é uma grande farsa. Somos cercados de paliativos, de esmolinhas, de falsa caridade para deixar tudo exatamente como é. Tudo feito para que o poder e o conforto fiquem na mão de capitanias hereditárias, com a maioria das pessoas sendo humilhada e oprimida em todos os aspectos: social, econômico, educacional, emocional, financeiro. 

Tudo é uma grande farsa. E não vai mudar.

Depois de tantos séculos de opressão e barbárie, o ser humano naturalizou todas as crueldades possíveis. Não liga para guerras que matam inocentes, não liga para pessoas que procuram comida no lixo e moram em calçadas, terceiriza todos os males que cria para Deus, silencia quando sua hipocrisia é denunciada, não dá a mínima para o grande sofrimento coletivo. Quando muito, reconhece parte da família como sua semelhante. 

A maioria apenas sobrevive, não mais do que isso. Porém, como temos muita informação e consumo centrado na elite, nos iludimos com a farsa do progresso. Que progresso? A maioria não tem acesso aos mínimos recursos possíveis. Para piorar, sobram falsos progressistas que adoram lacrar em posts mas, na vida privada, agem como verdadeiros senhores de engenho. 

A janela é a porta principal.

Tuesday, October 10, 2023

Professô

Houve um tempo da minha vida em que dei aulas particulares. Uns dois anos mais ou menos. De Estatística. 

Nunca me considerei um professor. Não tinha formação para aquilo, mas dominava bem o assunto e de modo a torná-lo acessível. Acabei fazendo sucesso no boca a boca e tive a ideia de cobrar barato por cabeça, para grupos de quatro ou cinco estudantes. Eles pagavam barato, eu ganhava mais. E me divertia com aquilo. As garotas da Psicologia me adoravam. A UERJ era o mundo, ainda é para quem sabe aproveitar. 

Um belo dia, uma ex-professora minha, acostumada a estorricar os alunos dos outros institutos, se viu diante de um monte de notas boas. Descobriu que a turma estudou comigo.

"Pra que vocês estão pagando aula particular se no sexto andar tem monitoria de graça?"

"Eu pago porque a aula do Paulo é dez vezes melhor do que a da sua monitora, professora..."

(gasp)

Dias depois, a jovem mestra me encontrou toda sorridente na Matemática. 

"Oi, Paulo! Fiquei sabendo que o pessoal da Psicologia andou estudando com você."

"Claro, claro, tanto que você recomendou que eles não me pagassem aulas. Muito obrigado pela propaganda gratuita."

(Ela não sabia onde enfiar a cara)

Mais outros dias, tou com minha crush no elevador e a professora surge de algum andar. 

Do nada, vem a seguinte pérola: "Não da bola pro Paulo não, ele é muito feio pra você". 

"Tá com ciúmes?"

(Ela não sabia onde enfiar a cara)

(Quando me deu aulas no segundo período, cansou de dizer para a turma que eu era a cara do seu marido...).

Nunca mais a vi. Vai fazer trinta anos. 

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Cheguei a um inacreditável índice de 95% dos alunos particulares. Aquilo dobrava a minha renda, mas cansava. Toma ônibus de um lado pro outro. Toma trem. Finalmente consegui um emprego decente $ e resolvi parar. Me desmotivei com o mestrado sem bolsa também. 

Meu último aluno era um rapaz esforçado, mas estava no terceiro período e não conseguia fazer as operações triviais de calculadora. Dei três aulas, não cobrei nada, senti que ali eu não venceria. Recomendei a ele que estudasse mais, abdicasse da prova e refizesse a disciplina. Ele não ficou feliz, mas fui sincero. Seria fácil tirar dinheiro de um jovem trabalhador, mas aos 24 anos eu já sabia que isso era inadmissível. 

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A força da música é um negócio. Naquele tempo todo mundo ouvia Genesis ao vivo na rádio, superbanda que infelizmente acabou. 

"The sound of your Voice calling..."

Tocava daquele jeito do mesmo tempo que acontece exatamente agora aqui no trabalho. 

Lá se foram trinta anos. Trinta anos. Daquele tempo praticamente não há sobreviventes do convívio, no máximo um ou outro WhatsApp. 

Melhor assim. 

Nada de mexer em belas histórias.

Hamas x Israel

Pensei em escrever sobre a tragédia no Oriente Médio, mas desisti. 

Salvo as honrosas e valorosas exceções de sempre, o que sobra é um mar de malabarismos retóricos sem lógica, com análises de conjuntura internacional feitas por quem nunca leu um livro sequer a respeito, afora uma mistura sarapatélica de religião, ou que não tem a menor ideia do que acontece por lá há décadas. 

Nem é culpa do futebol, mas é deprimente o que vários brasileiros fazem, agindo como torcedores. Escolhem um lado como se fosse um time e fazem tudo que o torcedor faz, especialmente com a passionalidade. Curioso é que o mesmo tipo de eleitor brasileiro fica de um lado só no Oriente... Santa coincidência, Batman. 

Depois do monte de b0sta que escrevem e falam, postam figurinha de amor ao próximo, aos animais, feliz primavera. Difícil saber o que é ignorância, burrice e/ou hipocrisia...

Mas, pensando bem, para quem ainda apoia quem ajudou a matar mais de um milhão de brasileiros com deboche, descaso e negação da ciência, não constitui surpresa. 

É a lógica do picareta, que se diz patriota mas quer que boa parte de sua população morra, simplesmente porque é pobre. São os mesmos que pregam o assassinato das "sementinhas do mal" mas fazem vista grossa para crimes cometidos por parentes.  

A turma da "meritocracia", desde que você esteja dois metros à frente de todo mundo na largada da "competição".  

@p.r.andel

Monday, October 09, 2023

Postagens desagradáveis

São importantes. São fundamentais. A vida não se limita a sorrisos de Photoshop, posses, bens e vitórias ocasionais. A realidade da vida na Terra é extremamente cruel, injusta e violenta. Então é natural que muitas pessoas se incomodem com a arte que lhes desafia, seja a foto que estampa a barbárie, a crônica ou o conto que revelam o ódio e a dor, a música que toca a alma, a ilustração que atordoa. Tudo isso é um verdadeiro horror para os simplistas, especialmente os que tentam fugir do mundo real, próprio ou geral. A hipocrisia é sempre mais fácil do que a reflexão, o egoísmo é muito mais simples do que o senso coletivo. Quando a eschrotidaum é denunciada, o primeiro passo do eschrotum é se incomodar. O simplista sempre tem a solução para tudo, desde que com a janela fechada porque, se olhar para a rua, sua tese desaba feito farinha. Geralmente se trata de quem sempre teve facilidades e, por isso, tende a minimizar e mesmo desprezar a dor alheia. E todo simplismo é hipócrita e perverso: objetiva incutir no outro que ele é "fraco", que "não se esforça", que "reclama à toa porque há gente em condição pior". Verdadeiro desprezo à matemática, seja no Rio de Janeiro, no Brasil e no mundo: basta pensar que há muito menos escolas, casas, hospitais, áreas de lazer, transporte de massa e postos de trabalho do que o mínimo necessário para uma vida saudável, então é lógico que a maioria é oprimida, esmagada e humilhada. Basta ver e raciocinar. O simplista odeia postagens desagradáveis porque geralmente elas o lembram de sua condição eschrota. A verdade dói feito soco no queixo. As saídas do simplista são patéticas: fulano não se dedica, beltrano não tem fé, sicrano não é de família. Olhe para o lado e veja se não tem ninguém exatamente assim na sua lista de contatos. Este é um perfil de postagens desagradáveis, com o objetivo de fugir do senso comum, com o objetivo de fazer pensar no próximo, na sociedade e na vida coletiva. Ninguém faz nada sozinho. Tudo é coletivo. Sem coletividade você não bebe um copo de água, não come um prato de feijão, então achar que suas eventuais vitórias são fruto exclusivo de mérito pessoal é, no mínimo, falta de inteligência. Lembre-se: este é um perfil desagradável para egoístas, indiferentes e mesquinhos, para falsos e traidores, para mentes rsd. Enquanto ele existir, a única saída é o botão "Deixar de seguir", que pode significar alívio para você, mas muito, muito mais para mim. Uma ótima semana para quase todos e muita perturbação para os egoístas e hipócritas.

@p.r.andel

Sunday, October 08, 2023

Fim do domingo

As noites de domingo têm certa melancolia. Vem a manhãzinha de segunda, volta o sufoco, a pressão. Muitos de nós sonham com a chegada da sexta-feira para ter dois dias de descanso ou alívio, mas nem sempre acontece. Por exemplo, embora tenha ficado trancado três dias, não consegui descansar. Também trabalho de casa e os problemas são uma espécie de guilhotina armada contra o pescoço. Dói tudo, da cabeça aos pés. Os jogos de futebol e programas de TV ajudam a ocupar a cabeça, mas ninguém consegue descansar direito sem tranquilidade, com armas imaginárias apontadas para a cabeça. Não dá para ler direito, nem para escrever direito. Às vezes ouvir música. Às vezes, conversar com algum colega do Whatsapp - amigo é outra coisa. Às vezes, pensar, sonhar. Mas tudo passa rápido, a segunda não espera, a opressão está por toda parte e tudo aí está sem dó. A gente começa a semana procurando pela nossa paz, o bem mais precioso e raro. Mas será que pode haver paz em meio a tanta miséria, violência, doença, despejo, descaso e arrogância? Será que com tanta guerra, fuzilamentos e bombardeios é possível encontrar um punhado de paz? E talvez o pior: a maioria sofre, luta, se dedica, se esforça, sacrifica mas é tudo em vão. No fim mudamos pouca coisa: a maioria dos grandes defeitos que testemunhamos aí está há tempos, tempos. Por isso que a arte, a cultura, o esporte e o lazer são tão importantes: eles servem de bálsamo contra as dores da vida. É o que nos resta nesta grande república federativa cheia de árvores e gente tão nova dizendo adeus - nossos amigos e colegas por sinal. Vamos pedir esmolas de paz, esmolinhas de dignidade humana, é o que resta. Continuo nervoso paca, continuo desesperado, continuo verdadeiro. Só os falsos e hipócritas são felizes o tempo inteiro. Daqui a pouco é segunda e volta a terrível vida normal. Boa semana a todos. 

@pauloandel

Dia do Gordo

(Originalmente publicado em 20/09/2020)

Confesso a decepção. Um único amigo me deu parabéns pela data. Esperava mais, muito mais, mas solidariedade não é o forte de uma parte dos brasileiros, entendo. 

Sou bem gordo. Isso não me impediu de ser sexy, atraente e interessante, pude comprovar através dos tempos. Não perdi nenhuma mulher por isso - muitas magras e outras saborosamente gordas -, mas sim por situações realmente tóxicas. Que tal o fundamentalismo religioso, por exemplo? 

Nem sempre foi assim. Eu era um garoto gordinho, até que comecei a crescer. Aí, na chatice chamada de adolescência, começam a te sacanear o tempo todo como se isso fosse bom. Um dia me encheram tanto o saco que botei um par de tênis e fui para a praia correr. Resolvi que ia perder peso, 1986. Eu detestava correr sem ser para jogar bola. Subitamente me apaixonei para sempre.

Na primeira semana, duzentos metros. Depois, quatrocentos. Depois oitocentos. Em poucas semanas eu já corria três ou quatro quilômetros. Cinco. Sete. Perdi 15 quilos em três meses sem mexer num hambúrguer. Em pouco tempo ia do Bairro Peixoto ao Vidigal e voltava. Comecei a sonhar em disputar a São Silvestre, virar o ano correndo, era o máximo. 

Entrei pra faculdade, as garotas eram lindas, riam das besteiras que eu dizia, às vezes eu tinha coragem de mostrar algo que escrevi. E dava certo. Mas num belo sábado de sol, brincando de goleiro no grupo de escoteiros, ao fazer um defesaço no ângulo, desci com o pé virado no solo. Fui direto para o Miguel Couto, não quebrei mas foi uma tremenda entorse, doía demais e veio o fim da minha carreira de atleta. Não tratei direito, não tinha dinheiro nem plano, não havia SUS. Manquei por muito tempo, chorei e isso me tirou do futebol na faculdade - tanto Egídio tirando onda de craque, eu jogaria fácil. 

Engordei um pouquinho quando passei a ter o direito de almoçar, depois de conseguir um estágio e, posteriormente, meu emprego por 26 anos. Houve um tempo em que eu trabalhava demais e quase não saía para almoçar. Por sua vez, o ticket refeição era um bom reforço para sustentar a família em casa. Devo ter ficado uns quatro anos sem almoçar direito, o que destruiu meu metabolismo. Aí, passei dos 100 kg e tive outros problemas de saúde. 

Depois, quando a família se foi, voltei a almoçar. Meu peso não é somente por causa dos problemas: eu também gosto de comer. Gosto de comida e fartura, gosto de refrigerante - e já sei que tudo faz mal, como quase tudo na Terra. Lembro de quantas vezes queria ter almoçado e simplesmente não pude por falta de dinheiro, mesmo sendo um trabalhador. E fiquei pesado.

Só tem uma coisa: isso é apenas uma constatação, não um problema. Não tenho nada que me incomode em ser gordo, exceto que minha saúde poderia ser melhor se eu tivesse menos peso. Mas tem tanta coisa que as pessoas fazem contra a saúde, e que eu não faço...

Em alguns momentos, recebi comentários ridículos contra mim, sem contar declarações gordofóbicas que são tão estúpidas quanto as racistas ou homofóbicas - o problema é que a gordofobia é por demais introjetada na sociedade, fazendo do gordo um safado ou sem vergonha por causa de seu peso. 

Vou repetir: o gordofóbico é tão escroto quanto o homofóbico e o racista. 

Hoje penso: sou tão legal, já ajudei tanta gente, já fiz tanta coisa legal, não posso ser limitado por causa de minha barriga - aliás, quando estou de camiseta, várias pessoas dizem que emagreci muito, quando na verdade eu uso é roupa grandona - que sempre gostei desde que vi David Byrne num terno grandão. Minha literatura, meus atos, minha inteligência e meu carinho são muito mais importantes do que o tamanho da minha barriga, e penso o mesmo de qualquer pessoa. Cresci na Copacabana dos anos 1980, onde todos os tipos eram respeitados. Tudo era normal. E como funciona o cérebro de quem vê a barriga alheia como motivo para preconceito e ódio? 

Vi por décadas que um dos homens mais inteligentes do país era um gordo. Dois dos maiores cantores de rock, também. Quem se lembra do genial Edvin, super percussionista gordo da banda de Alceu Valença? Algumas das mulheres mais atraentes que conheci são chamadas de gordas. Sem nenhum machismo: pra mim são gostosíssimas. Agora, por causa desta estúpida gordofobia, muita gente desenvolveu traumas poderosos, outros até caíram pelo suicídio. Quase ninguém fala disso. 

Ninguém é obrigado a sentir tesão por ninguém. Que cada um viva do seu jeito e tenha paz. Que as pessoas se encontrem e vivam seus desejos, sem alimentar recalque e ódio. Eu encontrei o meu caminho e não me arrependo. 

Não quero ter o corpo de fulano, a barriga de sicrano, a perna de beltrano. Quero é ter momentos de paz, comer meu sanduíche e tomar meu guaraná numa boa. Pagar minhas dívidas e sobreviver. Fazer coisas legais e o bem. Quem define quem é "gordo" ou "gostoso"? Quem define o feio e o bonito? E o sexy? 

Que as pessoas se respeitem é o mínimo que se pode exigir. Fora, gordofobia! 

É isso. Tchau. 

@pauloandel

Sunday, October 01, 2023

Sobre "A alma aflita das ruas"

Há motivos para o que se considera uma produção literária frenética de minha parte, com 40 livros em 13 anos, na verdade 14 porque o primeiro estava quase escrito desde o ano anterior. O principal deles foi a morte repentina dos meus pais, que me levou a mergulhar vertiginosamente para tentar ocupar a cabeça - e não adiantou nada. Em menor escala, minha vontade de ser publicado desde os anos 1990, o que acabou acontecendo somente em 2010. Também conta o fato de poder produzir meus próprios livros, sem os vícios preconceituosos que costumam povoar a mente de boa parte dos editores, lutando para tornar o livro um objeto hermético. 

Agora, um grande motivo para essa correria desenfreada foi o medo da morte. Não exatamente o medo, porque ela é inevitável, mas o medo de morrer sem ter escrito um conjunto de livros que considerasse razoável. O medo de que não desse tempo. Hoje ainda me falta muita coisa, claro, mas era inimaginável o número de 40 há 13 anos e ele foi alcançado. Alguns venderam milhares de cópias, outros venderam centenas e provavelmente os melhores não venderam nada, mas tudo bem - o autor quer ser lido mas não faz um pacto de plateia antes de escrever. Só lamento que meu trabalho como autor "carioca" fique à margem do trajeto no futebol - do qual me orgulho muito mas não não sou 100% dependente. De toda forma ele existe e pode ser lido há anos no Correio da Manhã e no meu blog, "otraspalabras!". 

Vivi e vivo com medo. Sempre foi assim, havia e há muito sofrimento. Por muitos motivos, achava que minha vida seria curtíssima - e quase foi mesmo -, o que se acentuou quando alguns colegas meus morreram jovens. Então acabei chegando aos 55 anos, que para muitos ainda é uma réstia de juventude nos tempos modernos, mas me tem pesado com enorme cansaço. A luta pela sobrevivência, a sensação da velocidade do tempo, as perdas e danos mais a certeza da ruindade da maioria dos humanos aumentam a fadiga. Só que eu não paro, nem sei por que motivo. Então continuo escrevendo e produzindo livros de terceiros, enquanto sigo cumprindo minha pena por aqui - nada que se compare às verdadeiras penas aplicadas em presídios, mas também longe de ser fácil. 

Meu novo livro estará pronto em duas semanas mais ou menos. Ele se chama "A alma aflita das ruas" e é uma brincadeira com o craque João do Rio, inspirada em meu amigo Luiz Carlos Lacerda - poeta e consagrado diretor de cinema -, dado que algumas pessoas veem semelhança entre o que tenho feito e a produção avassaladora dele. Obviamente não cabe comparação: João foi o maior cronista de seu tempo, inaugurou a ABL e seu talento venceu as décadas. O que faço é tentar registrar alguns cenários do Centro do Rio para que, no futuro, alguém os ache numa garrafa que atirei no mar da internet. "Alma" é um livro de humanidade, de minha incapacidade em desprezar o próximo, e está alinhado com todos aqueles que veem o Rio de Janeiro com amor mas sem hipocrisia, entendendo a verdadeira tragédia que nos cerca há anos. Vários de seus textos foram produzidos durante a pandemia ou depois de suas consequências, portanto não são leves. Contudo, não se trata de um livro fúnebre, como a primeira vista sugere a capa, mas sim sobre a vida real, que é feita por aqui de descaso, indiferença, desprezo, falsidade e mau caratismo, tudo devidamente varrido para debaixo do tapete do Facebook. Um livro sobre a opressão, naturalizada pelo neoliberalismo e tolerada com candura por certa esquerda cheia de discurso, mas pouca ação prática no sentido coletivo. 




Os interessados em "A alma aflita das ruas" podem encomendá-lo pelo WhatsApp 21 99634-8756. A princípio ele não terá um lançamento. Venderá pouco e é para poucos mesmo - os que nele acreditam. Nenhum problema para quem não acreditar: a recusa e o desprezo fazem parte do jogo literário. Porém, até segunda ordem, não há mau resultado financeiro que me faça parar de escrever. É uma causa e, como disse Borges, "aos verdadeiros cavalheiros só interessam as causas perdidas. 

Enquanto isso, vamos esticando a corda até onde der. 

@pauloandel