Tuesday, June 27, 2023

uma noite de 1979

Meu pai chegou bem em casa. Triste ele sempre estava, mas não tinha bebido e aquilo foi um alívio para mim. Naquele tempo eu rezava e agradecia, tinha acabado de fazer primeira comunhão. 

Apesar da nossa relação tensa, volta e meia ele trazia algum pequeno presente para mim. Um botão. Um gibi. Eu tinha dez anos e, naquele tempo, os garotos da minha idade só brincavam e sonhavam. Ganhar uma caixa de Playmobil. Autorama, já pensou? 

Naquela noite ele devia estar duro de grana, mas não falhou. Trouxe para mim um pneuzinho. Na verdade era um anel de borracha que lembrava um pneu mas era liso, sem vincos. Eu gostei. Tínhamos um sofá vermelho, kitsch, cuja cabeceira tinha uma ondulação, aclive e declive. E o que precisava além daquilo para ser feliz? Nada, a não ser um gole de Coca-Cola ou um hambúrguer que minha mãe fazia em casa para o lanche. 

Então me esbaldei. O pneuzinho ia e vinha na cabeceira do sofá. Ele deve ter ficado contente, porque brinquei bastante. Uma hora ou mais. Depois parei para escutar um jogo do Fluminense em nosso rádio, um Telefunken grandão com luz esverdeada. Toda vez que penso naquele aparelho, invariavelmente me vem à tona os nomes de ídolos da minha infância, não os jogadores, mas os radialistas: Jorge Curi, Waldyr Amaral, João Saldanha, Mário Vianna, Kleber Leite e Loureiro Neto. Era como se eu os escutasse todo dia e ficasse o tempo todo esperando: lá vem o Fluminense. Durante o jogo, minha mãe fez o delicioso hambúrguer. 

Curiosamente não lembro da partida, pois geralmente guardo tudo. Não eram tempos fáceis, longe disso, mas aquela noite do pneuzinho foi muito legal, como a de uma criança feliz. Não lembro do jogo, mas o Fluminense era inesquecível: Wendell, Renato, Miranda, Tadeu, Moisés, Edinho, Carlinhos, Rubens Galaxe, Pintinho, Cléber, Mário, Cristovão, Toinzinho, Carlos Roberto - que jogava demais -, acho que já tinha Fumanchu e Nunes também. Qualquer partida na rádio era um épico. 

Depois daquele dia, vieram mais de 14 ou 15 mil noites. Em muitas, a vida não teve nada de fácil, mas eu sinto falta daquilo. De ganhar um presentinho do meu pai. De poder brincar no sofá. De tudo aquilo que vivia um garoto pobre à beira-mar em fins dos anos 1970. De lá pra cá, a única coisa que não se alterou foi essa coisa do Fluminense, que veio sempre comigo e que aumentou quando passei a escrever livros sobre o clube. Não sou exatamente um saudosista, as coisas precisam passar, mas o que me traz aquele tempo com tanta força é o maior tesouro que uma criança pode ter: futuro. As crianças, nem todas - e isso é muito doloroso -, têm o futuro pela frente. Era o que eu tinha. 

Muitos anos depois, escrevi sobre Saldanha e Edson Mauro, fiquei amigo do Mazella, entrevistei o Garotinho e fiz alguns programas de TV com ele, que honra. Também fiquei amigo do Vinicio Gama, que é sensacional e cujo trabalho me lembra o de Jairo de Souza. 

São quatro da manhã. Eu queria aquele hambúrguer, queria meus pais, queria Copacabana e também aquele Fluminense que eu vivi. Tudo está longe, mas o Flu continua por aqui. Hoje tem Maracanã cheio, é decisão de vaga.

Um hambúrguer da mãe, a preocupação com a aula, o Telefunken. O Fluminense, rapaz. Renato, Miranda, Moisés, Edinho e Carlinhos. Um pneuzinho. Um garoto brincando e contando as horas no mundo.

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