Monday, May 29, 2023

A última segunda-feira de maio

Chove. 

Começa a semana e chove. É o fim de maio que se avizinha numa segunda-feira cinzenta. A última segunda-feira de maio.

Há quem possa ficar em casa e também quem fique por não ter um níquel para ir à rua. O desemprego é um drama. 

Com a chuva tudo fica mais difícil. As pessoas se esbarram nas calçadas, os ônibus e trens ficam ainda mais alinhados, o trânsito se complica e, claro, logo se vê bueiros entupidos e pequenos alagamentos. Um deles é famoso no Centro por já existir há décadas, na esquina da Rua dos Inválidos com Henrique Valadares: basta cinco minutos de chuva razoável e o caos se instala. 

E naturalmente a chuva esvazia ainda mais as ruas já abandonadas do Centro. Fala-se de dez mil unidades fechadas entre salas e lojas, e aí pode se estimar cerca de cinquenta a sessenta mil pessoas, talvez cem mil pessoas a menos em circulação na região. Dois Maracanãs cheios. Por outro lado, muito se fala sobre o retrofit de prédios antigos, mas grande parte deles só têm um banheiro por andar - como fica a questão hidráulica para renovar as edificações? 

Na televisão da vitrine da loja de eletrodomésticos, a comoção pelo terrível assassinato do ator Jeff Machado, encontrado dentro de um baú concretado a dois metros de profundidade numa casa em Campo Grande. Novas informações parecem encaminhar o desfecho das investigações. E também pelo não menos doloroso assassinato de Lindaci Carvalho, envenenada com bombons por motivo de ciúmes. Cada vez mais a perversidade aumenta. 

Uma boa notícia: a cassação de Marcelo Crivella pela Justiça Eleitoral, tornando-se inelegível por oito anos por abuso de poder econômico. Crivella foi, sem dúvida, o pior prefeito da cidade do Rio de Janeiro em todos os tempos.

O Rio entra em estágio de alerta por causa do tempo. 

Os pontos de ônibus no Centro estão esvaziados. Há poucos veículos em circulação. 

Em compensação, as latas de lixo são o alvo dos desesperados catadores e famintos. É o que resta. 

Do outro lado da região, negócios imobiliários vão de vento em popa. A gentrificação vem com toda força e só os mais abobados terão vez. 

Completamente alheios aos acontecimentos, dois garotos que não se conhecem cruzam um o caminho do outro na Rio Branco, perto da Associação dos Empregados no Comércio. Um deles, descalço na chuva e com a camisa de um time de futebol estrangeiro, carrega uma caixa de Mentos para vender aos transeuntes. O outro, com um par de tênis humílimos, traz à mão uma caixa de engraxate. Ao mesmo tempo em que são desconhecidos, eles são tão semelhantes: dois garotos que deveriam estar estudando e brincando, mas ali estão lutando pela sobrevivência num país tão desigual que chega a ser desumano. 

Perto dali, na Padaria Boulos, alguns fregueses tomam café. As pessoas estão cabisbaixas, silenciosas. O frio traz certa melancolia mas não é só ele: o cenário carioca ajuda na depressão. Há mesas disponíveis. Numa delas, um senhor de talvez cinquenta e poucos anos deixa escorrer diversas lágrimas enquanto sorve uma caneca de café com leite. Talvez seja um homem doente ou solitário, quem sabe faminto ou à beira do suicídio? Quem sabe não seja nada disso. Ninguém sabe. 

Chove e o coração da cidade não abraça os batalhões de estranhos, que vêm e vão pelas calçadas cheias de indiferença e abandono. 

Ninguém liga. 

Monday, May 22, 2023

Lanchando no Opus

Saí da loteria, meu exercício direto de luta contra a miséria e, na Gonçalves Dias, me deparei com três lojas vizinhas fechadas. Acho que nunca tinha visto aquilo em minha vida no passado, mas a realidade é dura e, por mais que haja um esforço de recuperação, ainda falta muito para o Centro retomar o movimento de outrora. 

Bate a tristeza. Três e meia da tarde. Tenho fome também, mas a maioria dos restaurantes já era. Então viro à direita, cruzo a Ouvidor e vou em busca da justiça alimentar. Lá está o Opus, que desde os anos 1960 oferece delícias cariocas: sanduíches e porções. Salaminho, calabresa, pernil. Não existe erro. Ah, e ainda vende o refrigerante KS, que no passado se chamava garrafa de vidro. 

Fernando, o dono, extremamente atencioso, puxa o papo na tarde de bar e rua vazios, já a caminho do fim do mês, quando minguam o ticket refeição mais os limites do cartão de crédito e cheque especial. Então falamos das lojas fechadas, da pouca circulação de gente pelo Centro, da dificuldade em retrofitar prédios antigos na região - muitos foram construídos com apenas um banheiro por andar. Um cliente próximo, bravio, se irrita com as eternas roubalheiras em licitações e obras públicas.

Chega o sanduíche. Dos deuses. Sanduíche de pernil bem feito, crocante, pão macio, negócio de louco raro no Centro, digno da tradição do falecido Monteiro e do vivíssimo Paladino. Vale almoço e janta. Meu olho gordo quase especula um segundo lanche. 

Volta o Eduardo e fala de seu apreço pelos livros, que gostaria de ter um sebo e acho espetacular a simbiose, porque eu queria um Opus cheio de sanduíches maravilhosos - clientes, nem tanto. A conferir. Falei a ele para nos seguirmos no Instagram, depois ainda emendamos em outro assunto triste: o completo vazio das ruas na região da rua do Carmo, Ajuda e arredores. A Prefeitura já iniciou um plano de ocupação, tomara que dê certo. 

Gosto dos bares tradicionais. Gosto de pensar em quantas e quantas pessoas já sacaram sua sede e fome por ali. O Opus é de 1960, imagine quanta água do rio já passou pela vida e memória. Eu mesmo só cheguei em 1968 e dei meus primeiros passinhos pelo Centro em 1973, com cinco aninhos. Meu pai me puxava pela mão enquanto não estava em sua loja, uma importadora na rua Buenos Aires. A gente voltava a morar em Copacabana, depois de um período em Cascadura. Eu descobria a Cidade, era assim que chamavam. "Você vai à Cidade?". Era assim. 


Trabalhar é preciso. O maravilhoso sanduíche de pernil chega ao fim. Me despeço do Eduardo e da turma do balcão. Opus, Paladino, o saudoso Monteiro, ainda tem o espetacular Gaúcho na rua São José. É engraçado pensar que muito da minha vida carioca no Centro tem a ver com sanduíches. 


Depois do tchau, retomo o caminho pela Gonçalves Dias a caminho do VLT. Passa uma garota bonita, tão bonita que me lembra Gabriella. Voltemos ao sebo. 


Sunday, May 21, 2023

Almoço na Leiteria

Combinamos de almoçar na Leiteria Mineira, eu, Gustavão e Junior. Marcamos entre meio dia e meio dia e meia, por aí. Como já somos respeitáveis senhores, o trio chegou no horário estimado. Melhor assim. 

A Leiteria é um dos únicos lugares em que me sinto de verdade no Rio de Janeiro. É o que se pode chamar de uma instituição carioca. Ali foi casa de ídolos meus, de gente que me abriu as portas para a vida literária, de deliciosos mistos quentes com toddy geladíssimo no café, de ficar de frente para a rua no salão principal - meu amigo Luna é titular do segundo, nos fundos - e ficar dez ou vinte minutos espiando o ir e vir da vida carioca pela entrada de vidro. Gente que não acaba mais, apesar dos tempos bicudos que vive o Centro do Rio - basta ver a Praça Tiradentes completamente sem lojas. 

Sempre que posso, pelo menos uma vez por semana, tomo café ou almoço lá. É uma sensação de pertencimento que recomendo a todo mundo. 

Gustavo chegou antes, Junior depois. Ambos lembravam brevemente do ambiente, mas não compareciam há muitos anos ao recinto - o que achei um barato, porque foi uma redescoberta para os dois. E eu, que vivo por lá, me senti ainda melhor porque estava com meus amigos - o que nem sempre acontece. Geralmente a companhia titular é o Luna. O Diniz e o Edgard foram outro dia, o Flavão quando estava aqui antes de ir para São Paulo. Almoçar com tempo é bom, algo que me foi subtraído por muitos anos, durante o tempo em que trabalhei em escritório. Conversar à mesa é bom, trocar ideias, abstrair. Ultimamente se conversa muito pouco: as pessoas estão ocupadas com tanta coisa inútil que não conseguem escutar o outro. Trocam o bate papo por figurinhas. Nem toda modernidade é necessariamente melhor. 

Enfim, por pouco mais de uma hora, pudemos falar do Rio, do Brasil, do nosso Fluminense - e, claro do impiedoso 4 a 1 tricolor na final do Carioca 2023. Tudo se misturou agradavelmente enquanto os pratos alucinantes chegavam. Quarta-feira, a dobradinha é enlouquecedora. Noutros dias, para quem gosta, é difícil ter um bife de fígado acebolado tão bom quanto o da Leiteria Mineira. Muito difícil mesmo. 

Ficamos de marcar outras vezes. Pro Junior é tranquilo: é jovem aposentado com disponibilidade e está pertinho do Centro. O Gustavão, nem tanto: ele mora em Friburgo, estava resolvendo pendências no Rio e deve ter sido a primeira vez, desde que nos conhecemos, que nos vimos em duas semanas seguidas, a do almoço e, na anterior, durante o puro êxtase do Maracanã de Fluminense 5 x 1 River Plate. Uau! 

Depois da tradicional foto, dos abraços e das despedidas, me deu saudade imediata: algo que parece simples na verdade é um momento raro, que a gente nunca sabe ao certo quando se repetirá. O Junior foi para um compromisso, o Gustavão pegou um táxi para a rodoviária e eu fui para a estação do meu querido VLT. A caminho do Sebo X, me senti alimentado e experimentei muitas lembranças antigas da Leiteria, de tanta gente que se foi, de tantas frases bonitas que não se sustentaram, mas fiquei com o principal: um ótimo almoço com amigos num dos patrimônios do Rio. É bom lembrar às vezes as delícias de ser carioca. 


Thursday, May 18, 2023

one more day

começa o dia na cidade. os populares se amontoam no transporte público humilhante. nas mochilas, pequenos pacotes de biscoitos baratos substituem as marmitas. é impossível começar a jornada de trabalho sem cansaço. as notícias populares falam de pensões indevidamente em aberto, de problemas que se arrastam por anos a fio. as notícias de futebol falam de um time que simplesmente não existe, a não ser nos delírios de alguns jornalistas. aos poucos, os carros começam a fazer barulho numa grande avenida central. é a manhã, onde alguns procuram a beleza e a maioria apenas sobrevivência. menos mal que um garoto de são gonçalo consegue alta do hospital depois de ser baleado na cabeça - sim, isso é incrível e maravilhoso. menos mal que alguns ainda têm empregos e não correm risco de opressão, despejo e até suicídio: vivem o que é possível, a conta do chá, a miséria delicada. aos poucos. amanhece e muitos corações sonham com dias melhores. começa o dia na cidade e nuvens escuras vêm do mar a caminho do méier. enquanto isso, a linha amarela está abarrotada. logo mais, os mais ricos poderão ver o kraftwerk ao vivo, uma das mais importantes bandas da história. a polícia identificou um assassino covarde de niterói, depois de atropelar uma senhora de propósito - um assassino com quatro passagens pela polícia. começa o dia na cidade e então estendemos nossas mãos nas calçadas, buscando míseras esmolas de felicidade.

@pauloandel

Monday, May 15, 2023

Tempos modernos

Saí do trabalho com a missão de fazer a fé na Loto, pois organizo pequenos bolões com alguns amigos. Deixei o Sebo X e, em dez minutos, estava na minha agência lotérica preferida: rua da Relação, quase esquina com Gomes Freire. 

Umas três ou quatro pessoas na fila única (algo sempre difícil para os brasileiros respeitarem) e, ao lado, um simpático botequim. Nele, uma televisão grandona com imagem de cinema. 

Cinco e pouco da tarde. Leicester versus Liverpool. 

Dois clientes com os olhos arregalados diante de todos os detalhes do jogo. As três ou quatro pessoas da fila da loteria, também. Um garotinho de bicicleta para pra olhar. Futebol é um acontecimento, amigos. 

Falta para o Liverpool. No exato momento, com a fila parada, converso no WhatsApp com Catalano. Somos umas dez ou doze pessoas nos arredores da televisão. Todos estamos na espectativa do que vai acontecer. 

A câmera dá um close em Sala, o craque egípcio. É impressionante como as tevês de hoje têm definição de imagem espetacular. Bom, o craque balbucia algo para seu companheiro, na imagem seguinte sai uma cobrança de falta maravilhosa e um golaço do Liverpool. 

As pessoas riem, ficam felizes com a bela jogada. Ninguém é Liverpool ali. Só o Catalano, no WhatsApp, é Vasco, Vasco, Vasco e depois Tottenham e Internazionale de Milano. 

O gol faz bem às pessoas. Melhor ainda quando ali ninguém torcia para o time que levou o gol. 

Num susto a fila anda, falo com as garotas da lotérica sempre atenciosas, faço o bolão e saio. Hora de ir pra casa, depois de mais um dia de luta. 

Ainda dou uma espiada no botequim, vejo um ataque do Leicester, o Liverpool dá a resposta e, em poucos segundos, junto tudo aquilo e fico pensando em como a nossa maneira de acompanhar futebol mudou. Sou do tempo em que se colocava papel celofane colorido na tela da TV, para enxergar além de preto e branco. Internet? Nem pensar. WhatsApp? O máximo que tínhamos eram os narradores no radinho, fazendo das partidas verdadeiros épicos - felizmente o rádio está aí até hoje. Jogos de times europeus, a gente só sabia pela querida revista Placar. 

Antes de derramar uma lágrima, sonho em poder ver muitas e muitas partidas ainda. Hoje são tempos modernos, mas o amor é de antigamente. E falando em tradição, nessa terça tem o jogo da minha vida: Fla x Flu no Maracanã. Já são quase cinquenta anos acompanhando esse jogo que parece interminável, onde cada partida é apenas mais um capítulo. E lá vou eu fazer o velho caminho Presidente Vargas + Praça da Bandeira + Avenida Pelé até a roleta, a inesquecível rampa da UERJ e o campo dos sonhos. 

O tempo vai passando, mas seja numa linda TV de alta definição ou no Maraca, pertinho da grama, o futebol é bom demais. Não é só o jogo pelo jogo, mas muita coisa em jogo, feito aquela que hipnotiza os clientes da fila de uma lotérica com uma só imagem. 

@pauloandel

Sunday, May 14, 2023

Copacabana 23:44 pm

Meu bairro nunca termina. Hoje mesmo, em meio à pandemia e sua mistura kistch de realismo fantástico com pragmatismo, onde a miséria e a riqueza dividem a mesma calçada, fico sabendo de um ladrão preso por furtar a mochila de um tenente do Exército na altura da Rodolfo Dantas. Hum. Bom, até aí seria apenas mais uma das ocorrências policiais de Copacabana, que carrega livros de histórias e heróis ambíguos como Mariel Mariscott e Carbonelli. Ou delegadas e inspetoras gatas de arrepiar. A diferença está no fato de que o meliante não tinha mãos - isso, exatamente isso, não tinha as duas mãos, logo já se pode pensar que um furto desta natureza só poderia acontecer onde aconteceu. É a cara do bairro muitas vezes, onde o caos e a desgraça podem terminar em risadas. 

Lembro de outra história de muitos anos: quando existia o Banco Nacional na esquina da Avenida Copacabana com a Princesa Isabel,  hoje um Itaú - as grandes corporações se fagocitam! - nunca perdem! - os bandidos chegaram armados e com muita atitude. Limparam geral os caixas e deram no pé. Um carro os esperava na saída e parecia que o crime compensaria muito. Encheram o bagageiro de malotes e se mandaram em alta velocidade. Mas um segundo levou os criminosos bem sucedidos à bancarrota: em vez de virar à esquerda da UFRJ e voar baixo pelo Aterro do Flamengo, o motorista inventou de entrar à direita na Avenida Pasteur e avançou voado até a Praia Vermelha. Resultado: os sentinelas militares da região deram o papo na polícia e, quando os bandidos trapalhões perceberam que a única saída de fuga seria o Atlântico Sul, tiveram que se render. No dia seguinte, os jornais destacaram que a quadrilha foi muito pilhada na cadeia pelos outros presos, chamando-os de "burros pra caralho" (nenhum trocadilho com o governo vigente).

Quero voltar logo a Copacabana assim que os riscos diminuírem. Rever a praia, os amigos, tomar um guaraná gelado com Augusto Arromba e lembrarmos de grandes histórias infanto-juvenis com outros camaradas - onde estão? - e pensarmos na nossa vila querida que o progresso extinguiu para o metrô da Siqueira Campos. Tinha de tudo: boas casas, escola, futebol de asfalto com golzinho, garotas bonitas, a vida escorrendo a granel nas delícias da juventude. 

Ou passear pelo Centro Comercial de Copacabana com suas lojas dark side e um clima incomparável que só conhece quem já viu de muito perto - o tempo não passou lá. Valeria a pena ir com meu camarada Floriano Romano, professor e artista consagrado, para que lá ele pensasse em novas experiências sonoras avant-garde. Depois, naturalmente um chope. No prédio do CCC por muito tempo havia um sem par de maravilhosas garotas de programa, dezenas, com atendimento padrão: carinhoso e veloz. Todos os clientes jovens corriam o risco de gozação se encontrassem no elevador um dos condôminos famosos: o jornalista Ibrahim Sued. 

Um lanche na Sorveteria Bolonha, esquina de Batata Ribeiro com Constante Ramos, cinquenta anos de bons lanches e um mate delicioso. Hambúrguer de primeira, o velho Xuru adorava ir lá. O Epocler mora perto. 

Dizem que Copacabana está em decadência há décadas, e como tudo sobre o bairro tem pelo menos duas versões, pode se dizer que é verdade e mentira ao mesmo tempo. Sim, muitos herdeiros residentes no bairro não têm grana, a população envelheceu e sai menos de casa. E o bairro acumula uma imensa população em situação de rua. Mas o charme e a história são irresistíveis. Em que outro bairro do mundo uma travesti e um coronel reformado discutem futebol no elevador até que entra uma velhinha, escuta os dois e brada "Vocês são dos meus!", até que o trio chegue à rua e descubra que todos vão para o mesmo lugar: a feira. O jornalista Rodrigo Alves entende do riscado. 

Ivan Lessa, o cronista imortal, sacaneava Copacabana desde os tempos em que morou no prédio do antigo restaurante Transa. Mas ele jogou muita bola e botão nas esquinas, frequentou a praia incomparável - que já tinha a língua preta na areia em frente à Constante Ramos - e a experiência de morador do bairro temperou sua escrita impecável. A mesma Copacabana de tantos astros e estrelas internacionais, das noites loucas e baratas, dos puteiros provocantes, do ir e vir entre mil ônibus e um comércio de metrópole. 

Muita coisa mudou. Outras têm a vocação da eternidade: o Copacabana Palace e o Shopping dos Antiquários estão lá, o Meridien trocou de nome mas sempre será Meridien. O Pavão Azul, que era um boteco humílimo, virou uma potência gastronômica carioca na Hilário de Gouveia. Ali perto, o Restaurante A Polonesa mantém seu charme decenal. 

A Barbarella acabou de desistir, agora ocupa o imaginário erótico de Copacabana junto com La Cicciolina, Help, Erotika, Balcony e outras arenas do amor. A Miami Peep Show, que tragédia! 

O cineasta - e poeta - Luiz Carlos Lacerda pensando em casa sobre a poesia beat das esquinas cruas da madrugada do Rio, enquanto escreve um novo roteiro e mantém a paciência com os fãs que lhe pedem um livro de memórias, vital para se entender a cidade dos anos 1960 em diante. Num súbito, recorda madrugadas incríveis no down by law de Copacabana, conversas imperdíveis no Beco da Fome com sua amiga Leila Diniz - mito, realidade e beleza numa mulher que desafiou definições e lhe proporcionou um grande filme - até pensar também em poemas, frases e muitos achados que lhe trazem à tona os anos de sua juventude no bairro. Então interrompe a redação do roteiro, espia à mesa um livro de poemas de Maiakóvski traduzido por Boris Schnaiderman, encontra versos que falam de amor e liberdade, faz releituras por alguns instantes e num súbito, fecha o livro e volta a digitar o roteiro porque o cinema é como a vida - ação, câmera e hoje, porque não espera. 

Do outro lado da Baía de Guanabara, o poeta Jocemar Barros prepara haicais sobre Copacabana. Em Teresópolis, o poeta Felipe Fleury esculpe versos rebuscados e românticos, rasgantes, que remetem ao Leme, dorso de Copacabana. A mil e duzentos quilômetros de distância, o multi artista, herói do metal e intelectual Carlos Lopes é um digno representante da essência underground de Copacabana. Em Bonsucesso, o fotógrafo Silvio Almeida planeja um ensaio Gotham City bem nas barbas de Copacabana. E não há noite em que o lutador Antonio Carlos Gonzalez não atravesse o bairro com seu carro possante, encarando a paisagem da Babilônia carioca. 

São muitos nomes com seus olhares e miras em direção ao bairro que nunca termina, que nunca é derrotado mesmo quando os três dados caem com a face um. 

Não existe decadência num lugar que instiga artistas e arte de todos os lados. 

O que nos dizem as latas de lixo

Eis um fato que explica muito do que temos vivido: todas as latas de lixo públicas do centro da cidade estão empenadas, reviradas ou até destroçadas. 

Não se trata de uma simples reação de vândalos, ao contrário do que muitos são capazes de imaginar, mas sim de um grande exército da fome que passou a ocupar as ruas: mendigos, famintos, desempregados, crackers e todas as demais categorias misturadas. 

Sim, há muita gente entorpecida, mas até isso tem a ver com o disfarçar da fome. 

Vivemos em uma cidade mendiga. Para alguns, ou muitos, a solução estúpida é o aparte, a reclusão, a remoção temperada com aquela velha conversa pueril – de fartum acre de sabão ordinário - você se lembra de "O cortiço"? – de que é preciso ensinar a pescar em vez de dar o peixe, quando, na verdade, boa parte dessa turma nunca pescou uma bota de borracha sequer num canto da Urca. Tudo em nome do desastre atual que chamamos de vida cotidiana. 

As latas estão reviradas porque a cidade está muito pobre, em nada alinhada com sua pequena burguesia oca e sua minúscula alta sociedade: ambas nada veem além dos próprios umbigos. 

Todas as latas de lixo públicas do centro da cidade estão arrombadas, como se tivessem sido assaltadas, porque a fome é um assalto da alma. O mais incrível disso tudo é a indiferença que cerca a questão, como se fosse possível viver neste mundo numa ilha deserta hi-tech com todo o conforto, sem precisar de mais nada ou ninguém, vomitando mentiras no facebook. 

Todas as latas de lixo públicas do centro da cidade têm muito a nos dizer: basta refletir e espiar em volta, mas as pessoas lestão demasiadamente ocupadas na sala de jantar, ocupadas em nascer e morrer repetindo as mesmas bobagens da novela encomendada, do noticiário tendencioso e da opinião irrelevante.

Todas as latas de lixo públicas do centro da cidade são fotografias da nossa imoralidade social, da nossa incapacidade de equilibrar minimamente as condições de vida das classes sociais, do nosso egoísmo, da nossa escrotidão, da nossa escrotidão, da nossa escrotidão. 

Então colocamos nossos fones de ouvido, ficamos hipnotizados pelas inutilidades na tela do iphone enquanto alguém pede esmola no metrô, fingimos não escutar nada e seguimos impávidos para construir a ordem e o progresso.

Lá fora, depois das entradas do metrô, a vida real contém famílias inteiras debaixo das marquises, pobres cachorros abandonados sonhando com um bife, transeuntes deprimidos e cabisbaixos tentando sobreviver a cada dia. Garotos ensandecidos pelo uso de substâncias proibidas, tentando respirar dentro da nossa asfixia social. 

Uma velha letra de Lobão dá o tom do que temos visto nas ruas: "quem é que vai pagar por isso?". 


Tuesday, May 09, 2023

Rita Lee

(para o blog Língua Preta)

Rita Lee está na minha vida desde criança. Em 1979 e 1980 ela era onipresente no rádio e na TV, tocava o tempo todo e, claro, o sucesso era redundância. Fomos educados com "Lança perfume", "Baila comigo", "Atlântida", "Chega mais", "Final feliz" e a instigante "Mania de você" (que algumas meninas cantavam baixo, por causa dos versos). 

Mas muito antes da minha meninice, Rita já era um colosso. Afinal, em fins dos anos 1960 ela já era a voz e o - lindo - rosto dos Mutantes, banda que tardiamente ganhou o merecido respeito mundial. Uma "ídola" da Tropicália. Genial.

Falar o que todo mundo já falou é desnecessário. Todos sabemos da importância de Rita para a cultura popular brasileira, a luta contra a ditadura, o machismo e muito mais. Seu humor, sua verve, seu estilo único de letrista. Destaco a fala do multi artista Makely Ka, sobre o fato de Rita ser a maior compositora brasileira da segunda metade do século XX - e é isso mesmo. Suas músicas traziam a essência da Tropicália, numa verdadeira geleia geral que misturava circo, reinos perdidos, tesão, paixão e sorriso. 

Talvez, e só talvez, a maior façanha de Rita tenha sido fazer o pop rock ganhar o Brasil de verdade em todas as classes. Se mães e avós já se divertiam escutando e vendo novos artistas como os Titãs e os Paralamas do Sucesso, é porque já estavam adocicadas pelos hits de Rita desde os anos 1970 - e muitos deles ecoaram por todo o Brasil através das novelas, assobiados por milhões de fãs. Todo mundo cantava, todo mundo conhecia, era pop mas nunca perdia a pegada rock. Não há como deixar de lado seu grande parceiro de música e de vida, Roberto de Carvalho, corresponsável por um batalhão de sucessos eternos. 

Desde muito, muito tempo atrás, eu não sei o que é o cotidiano sem Rita Lee. Quando comecei a escutar música regularmente, ela já estava ali gigantesca. Lá se foram mais de quarenta anos. Hoje as cortinas se fecharam, mas para uma artista do tamanho de Rita Lee, uma vida intensa de 75 anos funciona como mera preliminar para uma eternidade esplêndida. 

Em tempo: os Mutantes foram espetaculares, mas não o seriam sem Rita Lee.

só o acaso

ainda é tão cedo, tão cedo. todos deveriam estar descansando bem agora, mas não estão. há quem não descanse nunca, por vários motivos. ainda é muito cedo, mas o dia já está aí. e com ele, tudo. lá longe, os trens estão cheios e os ônibus amassam as pessoas. cá perto, os mortos-vivos gastam suas lágrimas em vão. ainda é tão cedo mas tudo está sem sentido. a alvorada ainda está escondida pelo azul cobalto do céu. as padarias ainda nem abriram, mas a fome já se espalha pela promessa da manhã. alguns carros cortam o silêncio sepulcral. ninguém diz nada. não há o que ser dito por ora, exceto em frases mofadas no WhatsApp como "se cuida" e "fique bem", delicadas maneiras de se dizer "problema teu" ou "fod@-se" - não! hipócritas mesmo! mais um dia na história da sociedade que não tem o menor compromisso com o social, os sócios e as associações. mais um dia repleto de caras de paisagem, visualizações sem resposta, diálogos abandonados, opressão, melancolia, indiferença. "Se cuida". "Fique bem". é melhor ser surdo ou analfabeto. ainda é tão cedo que o verdadeiro descanso deveria ser universal, mas se trata de uma utopia: muita gente não descansa, mas desmaia. enquanto isso, corações perfeitos procuram amores destruídos em vestígios de redes sociais, o silêncio é uma distância incomensurável e, bem versado pelo poeta, só o acaso estende os braços a quem procura abrigo e proteção. só o acaso. só. 


@p.r.andel

Monday, May 08, 2023

Mapa astral na igreja

Via de regra, o grupo de escoteiros vivia sem grana e precisava se capitalizar. A festa junina da igreja parecia ser uma boa, mas era preciso fazer algo diferente a quinze dias do evento. 

Bom, diferente já era todo o cenário: um grupo de escoteiros que realizava suas atividades no pátio da igreja católica, o mesmo lugar onde a festa iria acontecer. A igreja, cercada por condomínios na altura do terceiro andar de um shopping center. A vizinha de baixo era uma termas com alucinantes GPs de arrepiar - GPs: garotas de programa. Outro vizinho: um teatro de malucos e com espetáculos consagrados na história da MPB e da ribalta brasileira. No térreo, um supermercado, lojas de brinquedos e botequins. Traduzindo: Copacabana. 

Os jovens chefes escoteiros adoravam o mé e batiam ponto toda noite em um dos botecos do shopping, o Sniff's. Aos pés da escada de acesso para o Teatro Teresa Raquel, e também para as Termas L'uomo, o bar era palco de várias reuniões de bate papo entre os tipos mais inusitados, de estudantes a intelectuais, passando por artistas, executivos, vagabundos, maconheiros de praia, jogadores de purrinha e, claro, os escoteiros. Dentre o cast de malucos, um nome reluzia: Eduardo Victor Visconti, o Seu Visconti, presença constante no Sniff's - sem jamais consumir - e multi homem: poeta, escritor, piloto de avião, filósofo, membro de academias de letras e astrólogo.

Entre refrigerantes, sucos de morango ao leite e cervejas, uma das escoteiras teve a ideia: e se o Seu Visconti fizesse voluntariamente mapas astrais durante a festa junina? Em plenos anos 1980, astrologia era a moda, mas era preciso acertar os detalhes com a patronesse do evento junino: a Paróquia de Santa Cruz de Copacabana. Afinal, não convinha ferir suscetibilidades religiosas. O filósofo, conhecido por sua excentricidade, topou ajudar o grupo numa boa.  

Dias depois, uma comissão dos escoteiros reuniu-se com o pároco, Padre Ítalo Coelho, também fundador do próprio grupo no ano de 1963. As coisas se assentaram sem maiores problemas; afinal, a igreja - que tem um maravilhoso formato de base lunar - era conhecida por não ter imagens de santos, afora os cochichos em pleno pós-ditadura sobre o apelido do padre: "Vermelho". Os mais conservadores não engoliam a seco a ideia de irem à missa rezada por um padre comunista, mas em nome de Deus e com o balanço frenético de Copacabana, tudo se resolvia - muitas vezes com abraços entre santos, pecadores e diabos. O fato é que Padre Ítalo deu a benção ao projeto astrológico. 

Duas semanas depois, começou a festa. Gente pelo ladrão, literalmente, subindo e descendo os três andares do shopping center, por meio de uma bela rampa circular. Churrasquinhos, batidas, jogo da lata, pescaria, canjica, tinha de tudo. Gatinhas a valer, marmanjos na azaração, gays alertas. Era o evento de Copacabana em junho. 

Nos fundos da igreja, os escoteiros montaram uma grande barraca de acampamento para o atendimento de Seu Visconti aos clientes. E o que se esperava ser um reforço de caixa acabou se tornando a maior arrecadação da história do grupo em todas as festas. Nos três dias de comemoração, a barraca de mapa astrológico foi um sucesso, com uma fila a valer repleta dos típicos personagens do bairro: dondocas, gatinhas, naturebas, os próprios escoteiros, suas mães, amigas, os atores do Teresa Raquel e até às garotas das Termas L'uomo! Todo mundo em busca dos mistérios do futuro, das alegrias e decepções à frente, dos amores e tudo que pudesse valer a pena. Depois da festa tinha fila de espera para consultar Seu Visconti, que foi o verdadeiro popstar junino. 

Dias depois, os escoteiros comemoravam o sucesso da festa no balcão do Sniff's: a grana dos mapas deu para comprar barracas novas para os acampamentos. No terceiro andar do shopping, Padre Ítalo agradeceu o donativo para as obras sociais da igreja, ainda que nenhuma imagem de santo testemunhasse. Alguém jura que duas garotas das Termas L'uomo largaram a labuta e encontraram os amores milionários de suas vidas, tudo previsto nos mapas astrais de Seu Visconti. Uma dondoca abriu sua cabeça na barraca e depois fundou uma ONG para combater a fome e a miséria.  Um respeitável empresário desbundou, pediu o divórcio e assumiu sua sexualidade com um parceiro trinta anos mais jovem. E tudo começou numa conversa de botequim com a breve ideia de uma adolescente. 

Seu Visconti já era respeitado no balcão do Sniff's, mas depois do sucesso dos mapas astrais ele experimentou a sensação de ser uma celebridade local, o que lhe fez muito bem em termos de humor. Até Paulinho Cana, seu vizinho, bebum e rival histórico nos debates de boteco, o aplaudiu sem rancor.  

Sunday, May 07, 2023

Lancheiro

Outro dia passou uma postagem pelo Facebook, algo como "Em que você queria trabalhar quando era criança?". Respondi "lancheiro". Uns amigos riram, mas era a pura realidade. 

Meu sonho era trabalhar de atendente no Boni's de Copacabana. Meu pai me levava lá nos anos 1970 para lanchar. Naquela época, a máquina de refrigerante era uma novidade. Vinha o copo com deliciosa espuma e o misto quente sequinho, com queijo derretido e pão de forma brilhando. Era gostoso demais, tão gostoso que eu pensava em trabalhar na lanchonete, não somente para fazer sanduíches deliciosos mas também por achar, pela natural ingenuidade de criança, que acabaria sobrando um ou outro misto quente para mim. É um trabalho digno, honesto e correto, mas também sacrificante - você fica muitas horas em pé, o salário é sempre menor do que suas necessidades básicas, enfim. De toda forma, era o que eu sonhava. 

Tempos depois, eu queria ser PM. Morava perto do quartel e o coronel liberou meu amigo Fred e eu para jogarmos numa máquina de pinball que havia por lá. Nós nos divertíamos e pensávamos: se você for PM, além de poder jogar de graça, ainda tem quadra de futebol de salão no trabalho. Ah, e todo soldado tinha um carro legal, bem legal - eles ficavam estacionados na nossa rua. Vinte e tantos anos depois, caímos na gargalhada vendo "Tropa de Elite" juntos: o filme explicava a incrível matemática que une soldos baixos a carrões. 

Também pensei em ser piloto de Fórmula 1. Quando criança, eu gostava de carros, das corridas e achava o máximo aquela velocidade. Tempos de Alan Jones, Carlos Reutemann, Ronnie Peterson, Jacques Lafitte e de Nelson Piquet, antes de se prestar aos ridículos atuais. Mas como seria um piloto? Eu não tinha dinheiro nem pro lanche, quanto mais pra ir morar fora. Impossível. 

Depois passei a adolescência sonhando com um emprego de carteira assinada, o que só viria muitos anos mais tarde. No resto, uma exploração só. Fui camelô - assim como agora -, caixa, office boy, professor particular, e passei a década de 1980 penando, tão ruim quanto é agora para os jovens. Só fui descobrir o que era um emprego estável no meio dos anos 1990, com direitos trabalhistas e tal, mas depois de ser rapinado como estagiário por anos e anos. Depois de tanto tempo, era legal ter uma sensação de pertencimento, salário legal e tal. Ajudei minha família até o fim. 

Fico pensando hoje nos garotos desesperados, lutando para trabalhar, lutando para estudar, sonhando em ajudar seus pais, tentando buscar um espacinho nesse mundo tão escroto e cruel, sem direito algum, a maioria com uma bicicleta alugada, levando comidas para as pessoas, mas sem poder comer o mesmo prato. Outro dia alguém se assustou quando eu disse que é comum ver muita gente a caminho da Central do Brasil, por volta das cinco da tarde, comendo biscoitos baratos na rua para aliviar a fome do almoço que não aconteceu, e que nunca acontece porque a maioria das pessoas não têm dinheiro para almoçar. 

Só o que me resta são saudades da minha ingenuidade de criança: eu queria que todo mundo pudesse comer um ótimo misto quente. O bom de ser criança é que invariavelmente você tem fé, seja nas pessoas, nas firmas ou nas causas. Depois a gente cresce e finalmente entende o que dizia Vinicius de Moraes: "Na vida, poucas coisas valem a pena". É uma dura e imprescindível verdade que só pude constatar depois de uma longa e dolorosa caminhada. 

Quando passo em Copacabana, gosto de espiar o Boni's. Nunca mais fui lá, vi que foi todo modificado. De toda forma, ali está um pedacinho meu de quando eu ainda iria descobrir o mundo. 

Há um outro motivo, triste e engraçado também: na esquina da Siqueira com Avenida Copacabana, por muitos anos houve a figura do Sr. Bolinha, que era bem pequenininho devido a uma doença de nascença. Ele ficava em cima de uma caixa de sapatos ou algum papelão pedindo dinheiro. Mesmo diante de um enorme sofrimento, o Sr. Bolinha estava sempre rindo e ainda fazia brincadeiras com os outros, cutucando os pés dos transeuntes e se arriscando por isso. Meu amigo Xuru dizia que, se ficasse rico, iria adotar o Sr. Bolinha porque achava ele muito maneiro. Não tenho dúvidas: se tivesse enriquecido, Xuru faria isso mesmo. 

O Sr. Bolinha ria muito, em pleno sofrimento. Um dia sumiu. Ninguém fala mais dele. Morreu provavelmente. Quem se preocupa com alguém que sofre na rua? Pensar em sua risadinha acaba sendo um alívio para este fim de domingo com futebol na TV, desesperos e certa melancolia, porque o fim do domingo nos lembra que daqui a pouco começa tudo outra vez, a roda do sistema nos atropela e preferimos que tudo passe rápido para podermos descansar daqui a alguns dias, isso para quem pode descansar. 

@pauloandel

Tuesday, May 02, 2023

Maio

Meia noite na cidade, a terra de tantos bons homens anônimos e desaparecidos, de tantos amores perdidos, de tantas lágrimas derramadas sem que ninguém percebesse. 

Então começa maio de vez. 

Daqui a poucas horas muitos estarão de pé para lutar pela sobrevivência, que não é fácil em meio a tanta miséria, violência e desprezo, mas ainda procuramos fagulhas de esperança.

[Essa terça-feira com cara de segunda sonolenta

Enquanto há artes e amores, podemos crer na luz no fim do túnel. 

Ao mesmo tempo, precisamos lutar contra as inflações: a inflação de alimentos, a inflação de egoísmos, a inflação de indiferença.

[No coração do Rio o silêncio sepulcral é uma bandeira deitada em berço esplêndido

[Pelo menos o WhatsApp espanta um pedaço da solidão, ainda que minúsculo

[Ao longe, longe demais, penso no sofrimento dos meus pais, a minha única herança

[Um carro em alta velocidade corta o silêncio da rua e ninguém sabe dizer se é apenas por pressa

Maio tem desejo, amor e fome. Tem injustiça e melancolia supremas. Maio tem vida e é tudo verdade, o que nem sempre é bom. 

Daqui a quinze horas ou dezessete, jovens trabalhadores vão almoçar pacotes de biscoitos baratos, nas imediações da Praça Tiradentes e da Central do Brasil. Vão se apertar nos trens lotados até chegarem às suas casas.

Vai ter um grande jogo no Maracanã. 

Vai ter vida e morte, alegria e tristeza. Vai ter vida. É uma terça com cara de segunda. 

Em algum lugar do Rio, um garotinho conta os trocados da féria de engraxate vai sonhar com o futuro: um hambúrguer bem grande, quem sabe um sorvete. 

A moça passa chorando pela calçada mas todos são ninguém nessa hora, logo nessa hora. 

A gente só precisa de um pouco de dignidade. 

Ainda estão rolando os dados. 

Monday, May 01, 2023

Cesare

Nós ficamos amigos anos atrás, em 2007. O primeiro contato não foi dos mais pacíficos para mim, mas deu tudo certo: estávamos no Alla Zingara, um bar favorito da esquina de Belford Roxo com Ministro Viveiros de Castro, quando minha amiga Kátia me pediu para que buscasse alguma coisa em sua casa, então bem em frente. Peguei o molho de chaves e atravessei a porta. Quando a abri, conheci meu novo amigo rangendo os dentes, mas em paz absoluta. 

Cesare era um buldogue clássico e, nos primeiros momentos, fiquei tenso, mas logo nos tornamos amigos, amigos mesmo. Ele era bem pesado e tinha um visual assustador, mas também era um doce. A única coisa que não aceitava de jeito nenhum era se, dentro do carro, alguém tentasse falar com a Kátia pela janela do motorista - dava super latidos perturbadores. 

Durante alguns anos, Kátia trabalhava para um executivo que tinha um enorme apartamento em Copacabana, gigantesco literalmente, e lá fizemos encontros, jantares e tal. Cesare virou integrante da turma, mesmo sem dar uma palavra. Performático, ele vinha caminhando de longe, atravessava a imensa sala, chegava bem devagarinho e aí eu me sentia feliz demais: girava seu corpanzil, encostava em minha perna direita e então me cutucava com o dorso, pedindo carinho. 

Um dos nossos momentos inesquecíveis no apartamento foi numa tarde em que marcamos um almoço com a turma da escola. Cheguei mais cedo para ajudar na cozinha. Quando deixamos tudo pronto e o pessoal ainda não tinha chegado, Kátia resolveu dar um banho em Cesare, mas cadê o buldogue? Sagaz e percebendo que ia rolar banheira, ele simplesmente sumiu no gigantesco imóvel. Meia hora depois, reapareceu perto da sala, que era muito longe do banheiro. Ao nos ver, fingiu ter desmaiado ou dormido, virou a pança para cima e ficou na dele. Como era pesadíssimo, tivemos que arrastá-lo lentamente - e isso com o sem-vergonha fingindo estar desacordado. Um maravilhoso cara de pau. A muito custo, conseguimos empurrá-lo até a banheira e subi-lo. Ele aceitou o que considerava uma traição, mas não movia sequer a pata. Tivemos um trabalhão mas foi divertido demais. 

Nascido na Itália, Cesare tinha natural afeição pelas cores de sua bandeira. Logo se tornou um fanático torcedor do Fluminense. Corria e pulava nos gols tricolores, levando a rivalidade a sério: se fosse um gol do Flamengo, dava latidões assustadores. 

Um dia Cesare se foi. Tinha chegado a hora. Fiquei triste e chorei. Nunca me esqueci de como ele era carinhoso comigo, mesmo quando eu parecia ameaçador com a proposta de banho. Lá de longe, vindo devagarinho até bater o dorso em minha perna direita e pedir um abraço do jeito dele, com a dignidade que só os cães têm. Não esquecia de mim, mesmo quando ficávamos semanas e até meses sem nos ver. Penso nele sempre. 

Agora tenho o Ship e o Xou. Marina me manda vários vídeos e fotos deles, são legais demais. Nunca os vi de perto, mas é como se morassem comigo. Quando estou sozinho, os vejo no smartphone e me sinto melhor. Eles não sabem, mas eu os amo demais. A vida é assim: amor, amizade e lembrança.