Eis um fato que explica muito do que temos vivido: todas as latas de lixo públicas do centro da cidade estão empenadas, reviradas ou até destroçadas.
Não se trata de uma simples reação de vândalos, ao contrário do que muitos são capazes de imaginar, mas sim de um grande exército da fome que passou a ocupar as ruas: mendigos, famintos, desempregados, crackers e todas as demais categorias misturadas.
Sim, há muita gente entorpecida, mas até isso tem a ver com o disfarçar da fome.
Vivemos em uma cidade mendiga. Para alguns, ou muitos, a solução estúpida é o aparte, a reclusão, a remoção temperada com aquela velha conversa pueril – de fartum acre de sabão ordinário - você se lembra de "O cortiço"? – de que é preciso ensinar a pescar em vez de dar o peixe, quando, na verdade, boa parte dessa turma nunca pescou uma bota de borracha sequer num canto da Urca. Tudo em nome do desastre atual que chamamos de vida cotidiana.
As latas estão reviradas porque a cidade está muito pobre, em nada alinhada com sua pequena burguesia oca e sua minúscula alta sociedade: ambas nada veem além dos próprios umbigos.
Todas as latas de lixo públicas do centro da cidade estão arrombadas, como se tivessem sido assaltadas, porque a fome é um assalto da alma. O mais incrível disso tudo é a indiferença que cerca a questão, como se fosse possível viver neste mundo numa ilha deserta hi-tech com todo o conforto, sem precisar de mais nada ou ninguém, vomitando mentiras no facebook.
Todas as latas de lixo públicas do centro da cidade têm muito a nos dizer: basta refletir e espiar em volta, mas as pessoas lestão demasiadamente ocupadas na sala de jantar, ocupadas em nascer e morrer repetindo as mesmas bobagens da novela encomendada, do noticiário tendencioso e da opinião irrelevante.
Todas as latas de lixo públicas do centro da cidade são fotografias da nossa imoralidade social, da nossa incapacidade de equilibrar minimamente as condições de vida das classes sociais, do nosso egoísmo, da nossa escrotidão, da nossa escrotidão, da nossa escrotidão.
Então colocamos nossos fones de ouvido, ficamos hipnotizados pelas inutilidades na tela do iphone enquanto alguém pede esmola no metrô, fingimos não escutar nada e seguimos impávidos para construir a ordem e o progresso.
Lá fora, depois das entradas do metrô, a vida real contém famílias inteiras debaixo das marquises, pobres cachorros abandonados sonhando com um bife, transeuntes deprimidos e cabisbaixos tentando sobreviver a cada dia. Garotos ensandecidos pelo uso de substâncias proibidas, tentando respirar dentro da nossa asfixia social.
Uma velha letra de Lobão dá o tom do que temos visto nas ruas: "quem é que vai pagar por isso?".
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