Eu sou o monstro urbano, e por isso sou fagocitado por mim mesmo noite e dia, misturando a canção imortalizada por Frank Sinatra ao cheiro de ruas tristes que exala das grandes metrópoles.
Ninguém abre os braços para me oferecer afago, a revolução continuará não sendo televisionada porque o grande capital não tem interesse em exibir a voz das ruas.
Eu sou o monstro urbano e minha carne adveio da indiferença alheia. O meu sangue tem os coliformes fecais dos valões das favelas; a minha pele é tatuada pelos estilhaços das balas cruéis; os meus olhos são tristes e tortos de tanto ver a miséria subindo morros, balançando em trens e se arrastando no chão das marquises.
Eu sou o monstro urbano inerte diante de Soraia, uma jovem e linda menina fuzilada com um tiro na cabeça por causa de um iPhone. Eu sou o monstro urbano nocauteado quando debocham de Marielle, Anderson, Amarildo, dos cinco meninos do Chapadão, do sargento Robert, do soldado e dos batalhões de anônimos tendo suas vidas ceifadas por bosta.
Eu sou o monstro urbano que se atira dentro de latões de lixo para ter o que comer; sou o monstro urbano tão ameaçador para os ETs quando penduro minhas balas de açúcar no retrovisor do motorista. Monstro, monstro, monstro urbano com minha pele negra, meu cabelo duro, minha cara de paraíba e o nojo que os xenófobos sentem de mim.
Eu moro numa cidade sem Comissário Gordon, sem Homem-Morcego, sem Menino Prodígio e sem a Mulher-Gato; por isso, Jards Macalé não há de me redimir.
Eu sou o monstro urbano doidaço de crack debaixo de um plástico da Avenida Brasil. Eu sou o monstro urbano abominável que desce a Automóvel Clube em direção ao Morro do Juramento. Eu sou a selva de pedra e, disfarçado, ando pela Avenida Rio Branco, perto da Livraria Berinjela e do prédio que o BTG tarrou da Caixa, até chegar à Leiteria Mineira, pedir um misto quente com chocolate gelado, observando a rapidez dos garçons e um grupo de advogados reacionários gritando por uma intervenção militar, enquanto espero por Carlito Azevedo e Rubens Figueiredo.
Sim, eu sou o monstro urbano parido na Baía, indigno das pedras pisadas no cais da Praça XV, mas também poderia ser o horror nas famílias sofridas e abandonadas no Largo do Paissandu quando aconteceu aquele incêndio devastador, calcinando vidas humílimas.
"Os trechos dos livros que ainda não foram escritos", Paulo-Roberto Andel, Vilarejo Metaeditora, 2018, página 35
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