Wednesday, October 27, 2021

nuova normalità

antigamente eu gostava de ir à padaria. era a celebração de um novo dia. agora não é mais. deixa pra lá. 

desci e usei minha rua como pequena amostra. ela é uma importante via de corte do centro e acesso à zona sul. 

o novo normal: apesar do preço estúpido da gasolina, o número de carros tem aumentado no trânsito. carros. praticamente não há ônibus. o ponto está vazio. no máximo algumas bicicletas do itaú e grandes caixas de comida a domicílio. praticamente só.

na lateral da cruz vermelha, o velho cheiro insuportável de urina coletiva, porque a população em situação de rua não tem qualquer direito, imagine um banheiro. por isso o fedor é para todos. viva o neoliberalismo.

cem metros depois, a padaria. os frios são ruins. o pão é bom. as atendentes são atenciosas. sete pães, um sonho de creme, uma qualy pequena, uma coca-cola, vinte e seis reais.

desvio do fedor. há um silêncio constrangedor de rua triste. o brasil está muito triste, mas os carros não vão parar. não há ônibus porque não há trabalhadores. agora é falar com a turma na portaria, tentar rir de alguma coisa, ligar o computador, trabalhar, vender, escrever, ficar mais triste pela morte do tio do amigo e espiar a réstia nublada que escapa pelo pedacinho da cortina. 

ah, e tomar café. ainda há um sonho, nem que seja de creme. novo normal. novo normal. que merda: não era isso que o verão de 1988 prometia para tanto tempo depois. 

@p.r.andel

Tuesday, October 26, 2021

suddenly

O que eu fazia quando tinha dezessete anos? Procurava emprego que nem um louco em vão, tomando todas as portas possíveis na cara. Ficava apaixonado, desapontado e desapaixonava. Sofria todo dia por ver meu pai triste e bêbado. Minha alegria era o meu time, os acampamentos, as conversas na casa do Fred ou na calçada de casa, os sons do mar sentado na areia da praia, o rádio cheio de boas músicas, o jogo de botão. Era uma vida dura como a de hoje, descontadas as vantagens inevitáveis: eu ainda tinha todo o tempo do mundo pela frente, tinha minha família e achava que tinha amigos - de onde foi que eu tirei isso, senhor? E andava pelas ruas do meu bairro, o mesmo que os imbecis chamam de elite zona sul porque não conhecem suas vielas, suas quitinetes miseráveis, seus botequins cheios de mágoa e tristeza, suas favelas escondidas atrás de prédios belos e sujos, seus garotos pobres cheios de sonhos sentados na areia vendo o movimento da beira-mar. E chorava ao ver o sofrimento das pessoas debaixo das marquises - o que nunca mais passou. E sonhava em ter um emprego que permitisse que minha mãe nunca mais chorasse com medo do despejo. Eu me sentia feliz quando podia lanchar na rua um hamburguer e uma fatia de pizza. O vestibular, senhor, o que ia ser de mim? Vinte, trinta, cinquenta candidatos por vaga, eu não tenho chance, eu não fiz cursinho, eu não vou passar. Passei. Depois eu continuei pobre, beijei garotas lindas, senti um suicida bater em minha mão antes do corte final, corri muitas milhas, vi os veteranos chamando uns aos outros de maconheiros, aprendi coisas incríveis e fiz inimigos para sempre. Desde então, perdi todos os meus vínculos, nunca mais encontrei minha casa, minha família, meu amor e deixei que o tempo escorresse, porque não somos donos de nada, não temos controle sobre nada e não somos os autores do livro dos dias, no máximo personagens. Tenho ouvido vozes há muito tempo que gritam em inglês "doesn't have to be serious" ou "even better than the real thing". Muitas vezes me perguntei: será que um dia serei um escritor publicado? E será que vou ver um livro meu em prateleiras de livrarias? Nunca se sabe.

Thursday, October 14, 2021

cachorro-quente

Eu gosto muito de cachorro-quente. Sempre gostei, desde criança. Não precisava de nada especial: pão, salsicha, catchup e mostarda. Um gole de coca. Cachorro-quente de festa infantil, pequenininho. E um cachorro que sempre será especial para mim: o do Maracanã. 

Nos anos 1990 e 2000 eu e Bola comemos muitos. Na Afonso Pena, em Madureira e em Niterói. Eram tempos legais. Nos encontrávamos para conversar e rir. 

Muitas vezes fiz cachorros bem legais para meus pais e meu irmão. Todo mundo gostava. Eram pequenos momentos de felicidade que tínhamos. 

Atualmente há uma hamburgueria aqui perto de casa que tem um cachorro ótimo e simples, simples: pão, salsicha, mostarda e catchup, bem do jeito que eu sempre curti. Acabei de pedir dois, bem gostosos. Me senti 35 ou 40 anos mais jovem, lembrando de noites em Cascadura, Copacabana e Vaz Lobo. Lembrei de pessoas queridas que o tempo levou. Também senti tristeza porque sei que, neste exato momento, há centenas de crianças nas ruas do Rio de Janeiro, sem comida, sem casa e esperança. É algo inaceitável. 

Lanchando meus sanduíches, vendo o que restou do noticiário, pensando no descanso antes de ir trabalhar, sonhando com uma noite de paz, torcendo pelos meus amigos em apuros. Tudo isso sem a menor vontade de formar opinião, influenciar quem quer que seja ou ter "seguidores". 

Basta apenas um lanchinho de paz, em respeito à criança esperançosa que fui.

Monday, October 11, 2021

cinco da manhã no meio da guanabara

Cinco da manhã bem no meio da Guanabara, chove e faz frio. Os trabalhadores vêm de longe em transportes precários que os desrespeitam. Muitos são informais, sem direitos nem garantias. Pelo longo caminho dos trens e ônibus, há muitas e muitas luzinhas de barracos, ocupações e drama. Pelo mesmo longo caminho o que não falta é gente sem rumo nem chão, abandonada pelo que se chama sociedade. Cinco da manhã de segunda-feira, na véspera do feriado do Dia das Crianças. Há frio e dor para quem pensa no próximo, há uma cidade devastada e também idiotas que romantizam a situação, acreditando ser autênticos quando não passam de otários. Esta é uma cidade cheia de talhos sem pontos, de cortes profundos, de opressão. Ainda no azul quase escuro do céu, as gentes que ainda podem se deslocar caminham para a sobrevivência diária, às vezes sem saber se haverá jantar ou amanhã. Tudo indica uma segunda-feira cinzenta e chuvosa, fazendo sofrer ainda mais quem está ao relento - e são milhares, milhares. O poder público oferece respostas lacônicas e programadas, os poderes particulares celebram a cidade devastada e rachada, os imbecis comemoram a rachadura para se sentir mais importantes - mas não são nada. Marmitas tilintam nas mochilas e bolsas, míseros trocados ocupam os bolsos, a fé preenche os discursos para os corações sofridos, mas a verdade é que nunca fomos tão infelizes, nunca a indiferença foi tão grande, nunca o ódio foi tão dantesco. Daqui a pouco a TV transmitirá as próximas vítimas de balas perdidas, os novos desaparecidos, os novos presos por erro de quem prendeu, os esquartejamentos, as novas notícias violentíssimas. Resta uma bala de hortelã para distrair o amargo da boca. Cinco horas e vinte e cinco minutos numa cidade cheia de histórias tristes, mas que ainda guarda beleza em todos os seus recantos, embora esteja em dívida permanente com seus cidadãos. É segunda-feira, começa uma nova semana, os corações solitários carregam para si o gris da paisagem, há muita luta e sacrifício, há fome e cansaço, há a certeza de que as ações precisam superar discursos ocos, tudo enquanto o grande silêncio das ruas tristes ainda é o maior vitorioso.

Sunday, October 10, 2021

hits

Vendo o show do Leo Jaime no CCBB, bem divertido pela TV. Banda azeitadíssima e ele faz uma mistura do próprio repertório com covers bem legais. Apesar da chuva, o pessoal deve estar se divertindo com a apresentação. Outra coisa que é um barato: o Leo não está nem aí para aparência, sendo que foi um dos grandes dons juans daquela época. 

Gosto de ver mas carrego comigo um misto de sentimentos. A música é forte e te teletransporta. Aquele período que vai de 1985 até 1991, 1992, foi uma turbulência na minha vida. Tudo era difícil, mesmo que agora seja pior. E para mim mistura tudo: momentos bem legais com outros tristíssimos. Eu queria ter de volta as pessoas que se foram, o que é impossível, mas não exatamente voltar no tempo. 

Tinha escotismo, muita música, a casa do Fredão, a UERJ maravilhosa, corrida na praia, mas também a luta para trabalhar, a pobreza, o alcoolismo em casa, uma pressão enorme que, no fim das contas, até hoje não passou direito. Uma vida louca de Copacabana a Jacarepaguá, passando em Irajá, Madureira e Méier. Tudo de ônibus, claro. 

Naquele tempo eu já escrevia mas tinha vergonha de mostrar para os outros. Demorou muito até eu conseguir ser publicado, mas aconteceu e dali em diante não parou mais. 

Agora o Leo canta Legião. Dá para ouvir e lembrar das pessoas, dos amigos, seus risos e roupas. A gente comprava pão para lanchar com Alouette de ervas finas, e depois jogar cartas enquanto ouvia LPs. Quando sobrava um trocado, passeávamos de jardineira pela orla. O pessoal gostava de ir para a Zoom escutar o que o Gustavo tocava, mas eu não gostava de boate e danceteria - às vezes ficava sentado na areia sozinho, olhando para o horizonte do Atlântico Sul e pensando o que seria da minha vida, uma resposta que até hoje eu não tenho. 

Entre a saudade e a melancolia, é incrível como um set de músicas faz você voltar 35 anos como se fosse algo da semana passada. Tinha tristeza lá, tem tristeza aqui. Pouca gente sobrou para contar a história - essas linhas não falam de 0,001% do que aconteceu. 

"Fórmula do amor". O que será isso? 

Será que é o fim do domingo frio e tristonho que sugere uma aula na escola pela manhã? Ou uma corrida para o aeroporto rumo a Brasília? Tudo isso já era. 

Sobrou um monte de gente sofrendo, chorando, morrendo ao vivo. Tem muita dor e sofrimento. Tem também um monte de gente recalcada e infeliz com o pequenino sucesso de quem quer que seja, mas não se pode ser injusto: tem uma galera gigantesca que torce muito, joga junto, vibra e agradece. É isso que, dentro ou fora desta rede social, chamamos "vida".

Sunday, October 03, 2021

short cuts

Pegamos um táxi para o Humaitá, não havia Uber - o número de carros diminuiu drasticamente graças à economia bozista. Há muito tempo não íamos ao Restaurante A Mineira.

O carro desceu pela Avenida Chile e o motorista alertou "Na Senador Dantas tem manifestação do PT". Deu bandeira mas de resto foi afável, sem problemas. Aproveitamos para ver a militância e também a paisagem do sábado com solzinho. 

Com a pista livre, descemos a Rui Barbosa e rapidamente chegamos a Botafogo. De cara uma tristeza: Catarina fechada para sempre, no pé da Senador Vergueiro. Salgados imperdíveis, cheguei a lanchar com Leo algumas vezes. A crise, a maldição, o fim.  

Dez minutos depois, nossos planos foram frustrados. A Mineira fechada para sempre. A linda casa com entulho na entrada. Inacreditável. Quantas vezes rimos naquele lugar? Restou dar meia volta e buscar um refúgio seguro: kaftas e esfihas no Largo do Machado. 

Antes disso, na Voluntários da Pátria, bem na nossa frente, um ônibus 410 dá uma fechada tão grande em outro, da mesma linha, que este sobe a calçada e quase bate numa pequena árvore. Poderia ter matado alguém. Nos metros seguintes, o ônibus fechado perseguindo o fechador até que, perto do cinema, acontece o esperado: o motorista indignado põe o ônibus atravessado no meio da rua e vai tomar satisfações com o "colega" de trabalho. Este, por sua vez, foge num espaço mínimo de asfalto, avança dois sinais vermelhos e foge pela Praia de Botafogo. É claro que um policial bonachão viu tudo e nada fez. 

Metros antes de chegarmos à Galeria Condor, um caminhão tenta entrar em marcha a ré na garagem, sobe a calçada e quase esmaga uma banquinha de bijouterias.  As pessoas andam descontroladas demais. 

Saltamos, agradecemos o motorista e partimos para o almoço. Já que a Rotisseria estava lotada, comemos em pé mesmo. Marina ficou contente com as kaftas, o mate estava delicioso. Apesar das derrotas, ainda tem Rio.