Sunday, August 12, 2018

manhãzinha

o silêncio profundo na manhãzinha de domingo. um ônibus corta a cruz vermelha lentamente. os notívagos deixam a boemia da lapa para trás, caminhando lentamente. um ou outro carro passa.

do lado de fora da janela do quarto mora um silêncio. a réstia de luz escapa por dentro da cortina azul.

há mil domingos ou dois mil domingos, eu achava que era mais feliz. pão, presunto, queijo prato, um litro de leite em saco plástico, muitos jornais, a família batendo os talheres no ir e vir da minúscula cozinha. a esperança de um bom jogo no maracanã, de um belo show na praça do arpoador, de uma caminhada pela praia apaixonada de copacabana.

as pessoas sofriam, mas havia uma doce ilusão de futuro, o tal país do futuro, aquele que, ao que tudo indica, jamais chegará. era triste, mas diferente deste silêncio de desalento, de morte em vida. gente que virou número, quadro, objeto a ser descartado, lixo sem reciclagem condenado a morrer sufocado pelo próprio chorume.

onde foram parar os bêbados admiráveis que passavam do lado de fora da janela, cantando e espantando a dor às seis e meia de domingo?

do lado de fora da janela existe uma cidade fantasma, incapaz de impedir a agonia que alimenta seus suicidas miseráveis e tristes. a banca não tem jornais, a padaria não abre, os talheres estão imóveis, existe sofrimento e melancolia. ninguém espera um grande jogo no maracanã, nunca mais o arpoador abrigará um show especial.

ao quase longe, os miseráveis da cruz vermelha começam mais um dia de sofrimento em seus caminhos inevitáveis para a morte. não há nenhuma celebração. não há qualquer motivo para se festejar o que quer que seja. menos mal que, daqui a pouco, crianças vão chutar uma bola velha no asfalto da rua de lazer.

está me faltando coragem física para abrir a caixa do Tom Zé, o duplo do Bob Dylan 1966 e o box do Police. enquanto isso, o sol se torna mais vivo por trás da cortina azul. os filhos vão abraçar os pais, vão chorar por eles ou tentar entender este mundo de incompreensão e tristeza, onde é normal ver as pessoas jogadas na rua feito mascates da vagabundagem - eles estão lá porque querem, diz um comentarista primitivo do cotidiano.

ah, quem me dera pudesse voltar a jogar futebol com meus amigos, sonhar com um domingo feliz, sonhar com um país e um mundo que não são meus e, na verdade, revê-los como eles nunca foram.

às vezes os pais são muito felizes. noutras, eles são abraço e fé. noutras, eles são a lembrança da réstia de sol que penetra pelo meio da cortina azul, fechada. os filhos procuram os pais, o futuro repete o passado por alguns instantes, até que ronca o motor de um ônibus e é o único sinal de oposição numa estranha coalizão de fracassos. o que vem pela frente, ninguém sabe, ninguém.

@pauloandel

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