... enquanto os respeitáveis
cavalheiros brindam com o chope dourado da felicidade no Paladino, o armazém
centenário que fica na esquina de Uruguaiana com Marechal Floriano. Sanduíches
apetitosos, finas iguarias, nenhuma modalidade de pagamento que não seja
dinheiro cash. Certa vez estive lá com Sheila, ela em grande forma, maravilhosa,
deliciosa, os sujeitos faltavam lamber as mesas para secar a baba enquanto fui seu escorte triunfante. Apesar do cash, pode
ser considerado um restaurante favorito - ainda que feche cedo - mas o fato é
que somos quase todos quarentões e não temos mais paciência para noites
alcoólicas intermináveis – ora, vamos beber o que basta.
Nos arredores, o esplendor continental
da avenida Presidente Vargas desemboca na beleza da igreja da Candelária,
marcada pela triste lembrança da chacina dos adolescentes moradores de rua há
vinte anos ou menos. A igreja ainda é linda, mas não há como não se pensar na
dor e morte que aqueles jovens sem futuro experimentaram apenas porque eram
pobres e negros, num pais que ainda trata seu racismo de forma despudoradamente
hipócrita. Somos tão respeitáveis e
andamos com nossas mochilas e malas cheias de pequenos objetos importantes,
tudo enquanto nas principais ruas do coração da cidade a diferença entre a
vida e a morte de mendigos pode ser resumida em um pedaço de pão. Muitos não dão
dinheiro: - Eu não sustento vagabundo. – Eles vão cheirar e beber tudo! – Não fui
eu quem fez o mundo assim. Pessoas são assustadoras quando defendem suas
posses.
Mais adiante, monumentos de
cultura. CCBB, Casa França-Brasil, Centro Cultural dos Correios, Justiça
Eleitoral idem, palácios de cultura e beleza nem sempre dotados do público que
merecem. São gratuitos, mas a sofisticação que oferecem naturalmente espanta e
constrange os mais populares, faz certo sentido. Eis um grande problema na
disseminação das artes plásticas: elas deveriam ganhar as ruas, os pobres, os
bons e não estarem limitadas aos pequenos guetos. Alguém dirá que os menos
abonados não têm condições de apreciar arte como devido e darei uma sincera
gargalhada: trata-se de xenofobia ignorante e mal-ajambrada. Nos centros
culturais pode-se ver artes plásticas, teatro, música, encontros, debates, ver
jovens garotas com roupas moderninhas e óculos retrô, as roupas disfarçando
muito bem as formas saborosas e a pele geralmente alva, geralmente acompanhadas
de rapazes com visual quase existencialista – e felizmente ninguém de cachecol
ou pulôver nesta primavera equatorial do Rio de Janeiro. Todos falam baixo e
parecem tão educados ou respeitáveis, mas penso que a qualquer momento possam
ser integrantes de surubas praticadas em casas especializadas, aquelas das casas
de swing que transbordam no bairro. Por cinco segundos cravados, torno-me um
tarado perverso dentro de meus pensamentos; depois, sou um cidadão pacato e
insignificante neste mundaréu de prédios e cores e gentes.
Na rua do Rosário, a
livraria-restaurante Al-Farabi é um baluarte da região. Seu gerente é meu amigo
Maurício Nascentes, velho amigo dos tempos da livraria Berinjela, subsolo do
edifício Marquês do Herval, tempos em que conversámos com o jornalista Álvaro
Costa e Silva – o Marechal, o poeta Carlito Azevedo, o advogado Daniel Veiga
entre outros intelectuais, misturando prosas com altos teores de reflexão e
outras que poderiam tentar traduzir a importância dos programas trash na televisão aberta do Brasil.
Maurício tenta treinar boxe nas horas de folga, demonstra certa irritação com a
hipocrisia cultural e jornalística que hoje paira pelos caminhos, nada vai ter
jeito, a vida é uma merda, mas ainda há tempo para pequenos goles e algumas
gargalhadas. Ficamos amigos num campeonato de botão que ele promovia, coisa de
1996, depois jogamos vários e eu não suportava o fato de alguns competidores
chegarem às mesas de jogo sem cumprimentar as pessoas – deve ser minha eterna
ojeriza ao pensamento republicano norte-americano, onde a figura do winner é essencial.
Nos tempos de Berinjela, Marechal
costumava fazer a dança do Siri-Patola, um tanto complicada e talvez impossível
de ser descrita em palavras, cabendo apenas a memória de muitos risos quando de
sua execução. Depois, o velho lobo jornalístico ia para o Tangará, boteco
encravado no peito da Cinelândia, esquina de Álvaro Alvim e Francisco Serrador,
academia da cachaça que perdurou por mais de sessenta anos até abaixar as
portas. Carlito Azevedo olhava e ria, enquanto pensava sempre em seu roteiro
tradicional pelas ruas da cidade: a Leiteria Mineira, o CCBB, as papelarias
onde se pudesse comprar um caderno caprichado e nele desenhar poemas
inimagináveis. Velhas rotinas dinâmicas, ora. Geralmente ao lado, a jornalista Kamille Viola
sabia dizer tudo sobre o que havia de mais moderno nas noites modernas onde os
jovens dançam, bebem e amam a valer, muito mais do que isso na verdade.
Mauricio fica num balcão baixo,
quase sem ser visto por transeuntes da rua do Rosário, enquanto o computador
reproduz música cubana ou jazz do Village Vanguard nos anos 60. Temos nos visto
bem menos do que antes, geralmente quando faço-lhe uma visita. Paramos de jogar
botão, está casado, eu quase, os tempos ficam escassos. – Sabe quem esteve
aqui? Raul Sussekind, num vistoso terno, almoçando com um amigo. – E como ele
está? - Parece bem, falou do Fluminense,
mora na Barra, reclama do trânsito. A cidade sofre com cada vez mais carros
pelas ruas e parece claro que a solução está na melhoria do metrô e dos trens,
mas quem realmente se importa com isso? Somos uma sociedade tão respeitável!
Atravessando a rua Primeiro de
Março, logo você vê um terreno vazio, proveniente de um hotel que desabou anos
trás, matando um casal de adúlteros e oferecendo notícias rodrigueanas aos
jornais. Logo a seguir, a loja Escuta Som, uma das heroicas sobreviventes no
mercado de CDs e LPs. O balcão central tem discos a dez reais, às vezes cinco,
sempre algumas boas oportunidades. Quem gosta realmente de música precisa do CD
e do LP como objetos físicos que são de um ritual: você deita na cama ou no
sofá, ou ainda numa confortável poltrona, talvez sua cadeira predileta, mexe no encarte, lê as informações,
letras, vê fotos e demais ilustrações, não é simplesmente um arquivo do tipo
2xde43g5 guardado em algum lugar do cérebro eletrônico.”
(segue)
paulorobertoandel04102012
E seguimos colocando conteúdo nesse livro de crônicas que já já vai pro prelo, né mesmo!?!? :)
ReplyDeleteAbração e SSTT!!!