Monday, September 17, 2012

Algum coração da cidade

Somos batalhões de estranhos, uns alheios aos outros, vários alheios a tudo em pleno coração da cidade carioca. Era assim numa canção de Marcelo Nova.

As ruas estão abarrotadas, gente num ir e vir como se o mundo desse sua última volta do ponteiro. E tome filas, compras, vitrines, promoções ilusórias, fome, comida, malabaristas, animadores de rua, engraxates, mendigos, mendigos, mendigos, sucessos populares. E tome conversas importantes, pecaminosas, rústicas, papo furado. E tome rancor, discórdia, certa alegria, piadas, risos de uma vida da qual nada se leva.

Eu visto meu bermudão azul, chinelões de dedo feito aqueles que eu tinha medo quando criança, a camisa amarela que me faz lembrar de Ary Barroso e uso meu passaporte de transeunte. Um zé-ninguém, sem rumo nem plano, um ermitão em férias longe do melhor amor e cercado de pequenos amores empolgantes. E desço a avenida Chile, a Almirante Barroso e posso parecer um pobretão que incomoda as vistas dos bem-engravatados executivos, muitas vezes vistos nos restaurantes caros e cafés sofisticados - mas também em puteiros muito conhecidos da região.

Falta pouco para o inverno dar adeus. Já começam os dias quentes da primavera, mesmo que hoje em dia as estações do ano pareçam um pouco confusas por conta da destruição da natureza. Os casacos dormem nos armários, as camisetas estão de volta. Menos mal para os sofredores das ruas, tendo mais lugares para dormir e vivenciar a estranha miséria humana de um mundo cheio de dinheiro, poderes e pouquíssima solidariedade.

Turistas solitários, garotas apaixonantes, cocaína à vista, crack nas esquinas barra-pesada. Shopping centers cheios de gente fazendo papel de cachorros diante da frangueira de uma padaria. Love is not for sale! As bibliotecas vazias, não se diz o mesmo das charmosas recepções das livrarias de grande porte, normalmente cheias de candidatos à intelectualidade folheando livros que talvez nunca leiam – ou comprem. Nas bancas de jornais, nenhuma manchete empolgante. Ainda vivemos a dor de mais uma chacina imbecil, onde os jovens negros e pobres matam outros jovens negros e pobres sem qualquer outro sentido que não seja o de fortalecer bandidos poderosos – estes, muito longe do front de batalha.

Os travestis estão recolhidos e só ganharão as ruas à noite. As garotas de programa fazem a festa com os clientes na hora do almoço. Os moteis têm burburinho nas garagens. Cheios ou vazios, os bancos lucram. Perto da calorenta e amada Central do Brasil, o hospital Souza Aguiar continua não atendendo bem seus pacientes, como nos últimos trinta anos. Na Barão de São Félix, alguém fica louco com um cachimbo de crack, mas nem tudo está perdido porque o Sentaí tem uma lagosta admirável. Um corre-corre é comum na rua do Riachuelo. Alguém terá um infarto fulminante em minutos.

Tenho fome. Penso no almoço. Tenho sede. Ficará para depois. Leo manda uma mensagem no celular e reclama da fila de banco. Mais tarde, tomarei um café com Jorand. Tenho também sede de amor, mas isso é efêmero e desimportante. Logo virá uma tarde de inverno com a cara da primavera. Ir e vir, rir e sonhar, transitar do nada para lugar nenhum. Espiar as coxas das belas mulheres na avenida Rio Branco. Escutar a última história surreal de Alvaro Doria. Esperar os companheiros para a gravação do programa de futebol. Especular um novo livro. Não, Ursula não telefonará. Nem Juliana. Nem Taty. Antes de trabalhar, ouvir jazz. Quantos dias ainda restam para o último? Tomara que uma tonelada.

Tudo isso e muito mais ecoa no coração da cidade. A minha cidade.

É a primavera à espreita.


Paulo-Roberto Andel
@pauloandel

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