Friday, October 14, 2011

A GUERRA


1

Era um restaurante novo no meio do caminho e eu tinha pressa, por causa da vida corrida do trabalho. Corremos para trabalhar, para pagar as contas, para resolver problemas e o tempo escorre da mesma forma, sem poupar quem o desperdiça, principalmente no coração das grandes cidades. Lazer quase não há, tudo é falado com olho no relógio. Mas eu sonhava com um bife. Depois do almoço, meu objetivo era o de ver a loja de cds ao lado; às vezes, tinha alguma oportunidade interessante.

Fiz o pedido e, sem muita demora, veio o filé à Oswaldo Aranha, prato que considero impecável. A porção era generosa, para dois até, mas como era um glutão não deixei pedra sobre pedra. Gostei. Nas outras mesas, alguns engravatados que talvez me vissem como estorvo do ambiente. O ar-refrigerado moderado, sem esfriar a comida e sem deixar os clientes molhados de suor. Iniciativa pioneira numa região do Rio tão bela e tão degradada, agora ressurgida com ótimas oportunidades culturais, gastronômicas e a revitalização da Praça Tiradentes. Talvez a pressa, sempre ela, devesse ter me incentivado a comer no self-service também disponível ali, mas eu precisava de alguns minutos de calma. E um bife. Além do mais, o serviço foi veloz.

Enfim, uma refeição rápida e de qualidade. De toda forma, perdi alguns minutos que me custariam caro se os deixasse de lado, de modo que não fui ver os cds. Sim, eu ainda ouço cds, compro livros e freqüento exposições. É boa a sensação de ser um dinossauro contemporâneo.

2

Em casa, de longe, muito longe, ouvi gritos. Torci para que não fosse nada de grave com ninguém. Não dava para saber de onde vinha o eco. Eram oito da manhã; desci para chegar ao trabalho. Quando passei por um botequim da Cruz Vermelha, muitas pessoas olhavam atônitas à porta para a moderna televisão ligada. Alguém perguntou em voz alta quantos morreram.

Cheguei à minha sala de trabalho, acessei a Internet e soube que uma grande explosão havia ocorrido no centro do Rio, com mortos.

Em nenhum momento associei os gritos de longe ao que acontecia naquele instante.

A explosão aconteceu no restaurante Filé Carioca, o mesmo onde degustei apressadamente aquele Oswaldo Aranha. Uma única vez.

3

Pouco tempo depois, a CET-Rio liberou as imagens de sua câmera, onde se podia ver a pavorosa imagem da explosão. Um rapaz chamado Mateus dava tímidos passos sem a menor idéia de que seriam os últimos. Um rapaz com roupa de cozinheiro estava parado na porta conversando com alguém. De repente, uma verdadeira bomba atômica de horror e tudo foi pelos ares. As pessoas já não existiam mais. Ter visto esse vídeo me comoveu e preocupou a tal ponto de que não consegui mais pensar em outra coisa, talvez só por alguns momentos no jogo do Fluminense, horas depois, no Engenhão. Ainda assim, antes e depois do jogo, passei pelos canais de TV e lá estava o vídeo, sempre a apavorar e provocar reflexões.

Somos quase nada diante do mundo. Num estalar de dedos, a vida cessa. Eu deveria saber disso melhor do que ninguém quando abracei meus pais mortos em noites diferentes. Mas talvez não tivesse aprendido o suficiente. Pessoas com gestos ruins de um lado para outro, prejudicando, sacaneando, matando, torturando e tudo aí, pronto para ser explodido em qualquer restaurante no coração de qualquer grande capital. Risco igual ao que aconteceu, só pelo Rio deve ter em uns quinhentos endereços diferentes. No mínimo.

4

Acordo às seis e pouco da manhã, assustado.

Minhas últimas visadas antes de acordar me remetem a fogo, janelas caindo, destruição. Imediatamente, olhei para a tela da TV e ela estava apagada, prudente que fui – às vezes, esqueço de apertar o botão do timer e, nas madrugadas, Malafaia berra em minha direção porque não fiz ainda a minha contribuição. O Deus dele há de me perdoar; a grana anda curta.

O que não faltava aqui no trabalho eram coisas para se fazer de manhã. Pesquisar os efeitos do novo aviso prévio, atualizar o site, atender pessoas no telefone e no e-mail. Assim fiz até cerca de meio dia e meio sem parar.

Almoço no restaurante perto do trabalho, rapidamente. Precisava ir ao outro lado do Centro, receber um crédito há muito esquecido por quem deveria pagá-lo. Acontece que, por conta das obras do novo prédio da Petrobras, mais uma obra de rua na esquina da Vinte de Abril e a tragédia da Praça Tiradentes, o trânsito está completamente caótico. Então vou a pé.

Num momento, inevitável como transeunte passar pelo cenário de guerra.

A esquina está cercada. Os bombeiros, os mesmo que precisam ser valorizados à altura, realizam sua tarefa com dedicação. Uma janela do prédio afundou como se a fachada fosse realmente torta. O primeiro andar é um grande vão: tudo acabou. A loja de discos explodiu, desapareceu. Não há como qualquer pessoa de bem ver a imagem da destruição sem se alterar emocionalmente.

Numa hora de almoço qualquer, eu comi um filé à Oswaldo Aranha.

Tinha uma bomba atômica sob meus pés e nem sabia.

Pensei em quanto era importante estar vivo. Desisti de receber o crédito por ora. Dei meia-volta, retornei ao posto profissional. Não havia muito a dizer depois de ter testemunhado o rescaldo do desastre. 

Nessa hora alguma coisa me remete ao descaso. E descaso é indiferença.

Será que seremos eternamente uma sociedade condenada à indiferença do outro?


5

http://www.youtube.com/watch?v=Epgo8ixX6Wo&ob=av2e


2 comments:

  1. Foi horrivel, muito triste. Lamentável. Muito.E, assim como os bueiros, muitos outros poderão ir pelos ares.

    Negligência, omissão, irresponsabilidade do poder público.
    Chorei quando ouvi a história do cozinheiro.

    Beijos

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  2. Anonymous4:57 AM

    Triste, amigo. Parece que vivemos em uma trincheira...

    Bjs!!

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